Pesquisando/V/Tese/dissertação

Tese/dissertação

A tese de doutoramento é a modalidade mais importante e mais antiga de trabalho científico. Sua origem está diretamente relacionada com o surgimento das primeiras universidades na Europa, no começo do século XII. Depois que passou o longo inverno do vazio cultural da Alta Idade Média, época que vai do século V d.C. (fim do Império Romano do Ocidente) até o século XI (o início das Cruzadas, que romperam o bloqueio árabe dos portos do Mediterrâneo) e começou a primavera da Pré-Renascença europeia, a atividade intelectual tomou um novo impulso. A disputatio acadêmica tornou-se a sucessora da maiêutica socrática, do método dialético de Platão e do racionalismo silogístico de Aristóteles. Os que aspiravam a ocupar um cargo de docência em alguma faculdade de Filosofia ou de Teologia, as primeiras e mais importantes áreas de conhecimento então cultivadas, deviam apresentar uma tese, uma nova doutrina ou teoria, a ser definida perante uma banca examinadora que arguia o candidato apresentando argumentos contrários (a antítese). Se a defesa fosse vitoriosa, ele conseguia a aprovação anunciada pela famosa expressão doctorem habemus (temos um novo doutor). Esta modalidade de trabalho acadêmico varou os séculos e é viva até hoje, conforme comprova a sigla PhD (Philosophy Doctor), usada nos países anglo-saxônicos para designar qualquer pesquisador que defendeu tese nas ciências humanas.

É preciso não confundir esse doutoramento stricto sensu, fruto da pesquisa de docentes universitários ou conseguido após um curso de pós-graduação, do doutoramento como término das atividades discentes de um curso de graduação. Na Itália, por exemplo, não existe distinção entre bacharel, licenciado e doutor. Todo mundo sai de uma faculdade já laureado, com o diploma de doutor, porque, após o término dos exames exigidos, o aluno é obrigado a defender uma tese de fim de curso, indispensável para obter a láurea. Mas, geralmente, trata-se de uma pesquisa modesta, correspondendo, mais ou menos, às monografias para Licenciatura ou ao TCC (Trabalho de Conclusão de Curso) exigido por algumas Faculdades no Brasil. Não é preciso, porém, ridicularizar os italianos quando eles dizem “siamo tutti dottori” (somos todos doutores), porque a impropriedade terminológica é ainda pior entre nós: chamamos de doutor ao médico, ao advogado, ao político, ao coronel, embora nenhum deles tenha defendido tese.

O termo doctor, segundo o étimo latino, significa aquele que sabe, designando a pessoa que tem um conhecimento profundo sobre um assunto e deu prova deste seu saber excepcional mediante a realização de um trabalho sério, original e inédito, conseguindo a aprovação de especialistas num concurso público. O que tem criado muita celeuma é o problema da originalidade da tese de doutoramento. É bom deixar claro que originalidade não é sempre sinônimo de invenção, de descoberta, de algo de novo num sentido absoluto. Como salienta Salomon (17, p. 179), o próprio nome significa retorno à origem, à fonte primeira, ao arquétipo, à verdade essencial esquecida pelo passar do tempo. Os antigos romanos diziam nihil novi sub sole (nada de novo debaixo do sol), ditado cujo sentido se aproxima da famosa lei de Lavoisier, cujo valor ultrapassa os limites da química:

“Nada se cria e nada se destrói: tudo se transforma.”

De modo geral, a função de uma tese é rever sob uma óptica diferente, guiada pela reflexão pessoal, novos aspectos sobre determinado conhecimento. No campo das ciências humanas, a “descoberta”, que confere valor científico a um trabalho de tese, pode ser uma nova técnica de análise e de interpretação de um texto literário, a publicação de um manuscrito que lança nova luz sobre a biografia de um autor, a sistematização de ideias que se encontravam dispersas em vários textos, a divulgação em nosso meio cultural de obras estrangeiras importantes por meio de uma boa tradução acompanhada por uma introdução esclarecedora e comentários críticos, etc. (cf. Eco, 8, p. 2). Se o tema já foi explorado anteriormente, a originalidade da tese deve residir no arranjo crítico do material, pelo qual se coloca em evidência tópicos ou ângulos novos, contribuindo para uma melhor compreensão do assunto.

A nosso ver, a preocupação com a originalidade muitas vezes tem desvirtuado a finalidade essencial de um trabalho de tese que é sua contribuição para o melhoramento da vida em sociedade, por meio da aquisição de novos conhecimentos que nos ajudem a compreender nós mesmos e o mundo em que vivemos. A utilidade dos resultados de um trabalho de pesquisa fica prejudicada pelo temor de não satisfazer às exigências dos membros da banca examinadora: no afã de ser original a qualquer custo, o pesquisador gasta longos anos de trabalho estudando um assunto de pequena relevância apenas porque não foi anteriormente explorado, cuidando mais da apresentação técnica do que da importância do conteúdo. Consequência disso é que o trabalho de tese, após sua defesa, por ser excessivamente técnico e pormenorizado, não oferece possibilidade de publicação, ficando sua divulgação restrita a um diminuto círculo de especialistas no assunto. Será que vale a pena gastar tanto tempo, fosfato e dinheiro por parte do pesquisador, do orientador e do órgão financiador para a realização de um trabalho de tese destinado a ficar engavetado?

Além da tese de doutorado, em algumas universidades, especialmente na rede pública de ensino superior do Estado de São Paulo (USP – Unicamp – Unesp), ainda existe a exigência da defesa de outra tese para o concurso de livre-docência, se o professor quiser galgar mais um degrau da carreira universitária. Em princípio, o trabalho de pesquisa para este fim deve ser mais profundo, mais especializado e de maior fôlego, se comparado com a tese de doutoramento. Várias vezes questionamos nos órgão colegiados de nossa universidade, a Unesp, a utilidade dessa outra tese e do próprio concurso nos moldes em que vem sendo realizado. O conceito e a prática da livre-docência pertencem a algumas universidades da Europa, onde especialistas, que não integram o corpo docente permanente, são convidados para ministrar cursos paralelos às disciplinas obrigatórias ensinadas pelos professores de carreira (catedráticos e seus assistentes). Tal tipo de docência é chamada de “livre” porque o curso ministrado não pertence ao rol das disciplinas curriculares, não é oferecido regularmente e o aluno não tem obrigação de participar. Ora, se nada disso tem a ver com a realidade de nosso ensino universitário, por que fazer um concurso para uma função que não existe?

Se for para estimular a produtividade do docente, por que não substituir tal concurso, como também o de adjunto e o de titular, por exames de julgamento de memorial periodicamente, a cada três ou cinco anos? Anulando-se a distinção burocrática entre cargo e função, a carreira universitária ficaria totalmente aberta: após o concurso de ingresso para professor assistente (com exigência mínima de título de mestre), o docente teria apenas a obrigação de defender a tese de doutorado. Em seguida, respeitando os prazos prefixados, poderia solicitar a apreciação de suas atividades de docência, de pesquisa e de prestação de serviços, mediante a defesa e o julgamento de seu memorial por uma banca examinadora. Se aprovado, passaria do nível de doutor I para o de doutor II e assim sucessivamente até a aposentadoria, recebendo um aumento financeiro para cada grau galgado, substituindo-se, assim, as gratificações por anos de serviço pela produtividade.

Essa nova forma de carreira, já adotada em algumas universidades federais, facilita a vida dos docentes universitários e estimula mais seu trabalho, pois evita a obrigatoriedade de concursos anacrônicos e maçantes, estando cada professor livre para exercer as atividades que considerar mais úteis para o desenvolvimento cultural seu e da comunidade. As qualificações de docente livre, adjunto e titular não têm sentido: além de pecar contra a semântica, são entraves para a universidade alcançar sua verdadeira finalidade, que é a busca da verdade, o progresso das ciências e das artes, o melhoramento da vida em sociedade. É penoso participar da banca examinadora de um concurso para professor titular: um colega nosso, como mais de 30 anos de carreira, já com idade de se aposentar, é submetido a uma prova didática para demonstrar que sabe dar uma aula! Alguém já pensou no vexame que o docente e a universidade sofreriam se houvesse reprovação? A instituição deveria admitir que sustentou por tantos anos um educador de gerações de alunos que não sabia ministrar uma aula decente! A exigência da prova didática tinha sua lógica na época da fundação da Universidade de São Paulo, a primeira de nosso país, quando os professores estrangeiros que quisessem aqui ficar e efetivar-se no ensino público como catedráticos, além de naturalizarem-se brasileiros, deviam provar que sabiam comunicar-se na língua portuguesa. Mas hoje não tem mais sentido: a prova didática deve ser uma exigência de início e não de fim de carreira!

Quando será que a universidade pública brasileira vai acabar de vez com os anacronismos, os entraves burocráticos, a má gestação dos parcos recursos destinados à educação, a prática da politicagem, da luta interna pelo poder? Causa estranhamento o fato de que o meio universitário, no qual se produz e se irradia o saber, não cultive o hábito da reflexão sobre si mesmo e a prática do bom senso, convivendo com normas e costumes absurdos, dignos da ficção kafkiana! Há coisa mais ridícula, por exemplo, do que a colação de grau, o uso da beca, o ritual da formatura? Que dizer, então, do ritual cruel da recepção dos calouros? São ainda resquícios das cerimônias da investidura medieval, satirizadas por Cervantes em seu Dom Quixote, especialmente no episódio da consagração do herói como cavaleiro, quando lhe é colocada na cabeça uma bacia de barbeiro pelo dono da estalagem. O aluno que terminou um curso, sendo aprovado em todos os exames exigidos, não poderá receber o diploma se não lhe for posto na testa o chapéu mágico, símbolo da transmissão do saber! É interessante notar que essas e outras instituições folclóricas medievais, já em desuso nas milenárias universidades europeias, ainda são cultuadas nos países novos, onde a universidade quase não tem história!

Pedindo perdão pelo desabafo, voltamos à análise dos vários tipos de pesquisa. Além das teses examinadas, outro trabalho acadêmico é a dissertação para a obtenção do título de mestre. Atualmente, mestrado e doutorado são dois momentos dos cursos de pós-graduação, instituídos para preparar os formados em faculdades que pretendem iniciar carreira universitária ou simplesmente continuar seus estudos no seio de uma universidade para adquirir conhecimentos mais profundos nas áreas de sua predileção. O que distingue os dois tipos de trabalho é apenas o nível; a natureza é a mesma: de modo geral, a dissertação de mestrado é de menor fôlego (uma média de 150 páginas) e não requer originalidade. Dissertar significa tratar com conhecimento de causa e de maneira metodologicamente correta um tema ou ponto doutrinário. Do mestrando não se exige uma descoberta, uma tese para defender, mas apenas (o que não é pouco) a demonstração de que ele sabe pesquisar, pois conhece e utiliza razoavelmente os elementos estruturais do trabalho científico, conforme vimos anteriormente: a escolha de um tema exequível e interessante; a metodologia adequada e o processo dialético de desenvolvimento; a busca e a organização do material; a redação clara e o uso correto das fontes bibliográficas. O trabalho de mestrado está ainda vinculado à fase de iniciação à ciência, sendo a primeira grande manifestação dos dotes do pesquisador, de sua vocação para a intelectualidade e de sua capacidade de fazer exercícios de reflexão pessoal sobre o assunto tratado.