O extratexto

As formas e os conteúdos poéticos, até agora revelados pela análise dos elementos internos do texto de base Ulisses (o poema em si = o intratexto) e das relações que ele estabelece com outras obras de Fernando Pessoa (a poesia dos heterônimos = o intertexto), devem ser examinados no contexto de uma série cultural mais abrangente, que ultrapassa a figura do poeta português, atingindo o universo estético e ideológico da época em que ele viveu. Nossa intenção, neste estágio final de análise que envolve o mundo externo à obra de arte, é investigar sua vida e os movimentos filosóficos e artísticos das primeiras três décadas do século XX, no afã de distinguir o que é comum ao momento histórico e o que é específico de Fernando Pessoa. Como já dissemos antes, procurar estabelecer semelhanças e diferenças é o único método eficaz para o conhecimento profundo de uma realidade material ou espiritual, científica ou artística.

Os principais dados biográficos de Fernando Pessoa podem ser assim resumidos: nasceu em Lisboa em 1888, completou os estudos secundários na África do Sul, familiarizando-se com a literatura anglo-americana: Milton, Byron, Keats, Poe foram os poetas mais lidos. Em 1905 voltou definitivamento para Portugal, vivendo ora sozinho, ora na companhia de uma tia espírita, exercendo a profissão de tradutor. Entrou em contato com as modas estéticas do restante da Europa, especialmente com os simbolistas franceses e os futuristas italianos. Mas foi a tradição poética portuguesa que mais atraiu sua atenção: Antero de Quental, Camilo Pessanha e Teixeira de Pascoais exerceram influência fundamental na produção poética ortônima.

Com Mário de Sá-Carneiro, José Régio e outros poetas exponenciais da época, publicou poemas e artigos teóricos em três revistas literárias, sucessivamente – Águia, Orpheu, Presença –, que tentavam uma renovação da poesia e da cultura lusitanas. Fernando Pessoa morreu em 1935, na mesma cidade natal, deixando-nos uma riquíssima produção poética, além de vários escritos em prosa sobre teosofia, esoterismo, crítica literária. O que faz dele um poeta singular, porém, é a criação dos heterônimos, cuja produção artística está reunida nas chamadas Ficções do Interlúdio.

A capacidade de sentir dentro de si várias entidades ao mesmo tempo, de desdobrar sua personalidade ou, para usar um seu neologismo, de se “outrar”, manifesta-se em Fernando Pessoa desde a infância: com apenas 6 anos de idade cria o primeiro heterônimo, Chevalier de Pas, em cujo nome “escrevia cartas dele a ele mesmo”. A produção dos poemas em língua inglesa da juventude, entre 1903 e 1909, é atribuída a Alexander Search. Mas é a partir de 1914, ano em que imagina ter andado “viajando a colher maneiras-de-sentir”, que o poeta português inventa os três heterônimos mais bem-acabados, atribuindo-lhes a autoria das Ficções do Interlúdio. A nosso ver, para a gênese dos heterônimos concorreram vários fatores:


1) A constituição biopsíquica de Fernando Pessoa, que se autodefiniu como um “histérico-neurastênico”. Admitimos que seu caráter excessivamente sensível contribuiu para que se ensimesmasse, se olhasse mais para dentro do que para fora, cultivasse poucas amizades, tivesse uma grande dificuldade em se relacionar afetiva e sexualmente com mulheres e procurasse no álcool a fuga da realidade. A introversão induz à introspecção, fazendo com que o poeta descobrisse, analisasse e desse vida própria às contradições que o habitavam, configurando fantasias interiores. Mas daí a sustentar a tese da gênese patológica dos heterônimos a distância é grande. Como revelou Octavio Paz, enquanto o neurótico é súcubo de suas obsessões, o artista as domina e as transforma em objetos estéticos.


2) O interesse pela teosofia, alquimia e ciências ocultas. É sabido que Fernando Pessoa, como outros poetas de sua época (Novalis, Poe, Baudelaire, Yeats), interessou-se pelos fenômenos parapsicológicos e pelas doutrinas místicas, que proliferavam na Europa no começo do século XX, com o intuito de combater o racionalismo e o materialismo dominantes. A convivência com uma tia médium levou Fernando Pessoa a participar de sessões espíritas. Além disso, traduzindo para a língua portuguesa livros encomendados pela Sociedade Teosófica, acabou familiarizando-se com a doutrina simbólica da ordem rosa-cruciana. Descobriu em si faculdades mediúnicas, chegando a praticar a escrita automática e a imaginar de comunicar-se com o mundo dos espíritos. Paralelamente, o estudo da astrologia levou-o a admitir a influência dos astros no destino humano, tanto que, a certa altura de sua vida, teve a intenção de profissionalizar esses conhecimentos e abrir um consultório de astrólogo. Enfim, o conhecimento da alquimia fez-lhe estabelecer uma comparaçao entre o processo de criação e a atividade alquimista:

“O gênio é uma alquimia. O processo alquímico é quadruplo: a) putrefação; b) albação; c) rubrificação; d) sublimação. Deixam-se primeiro apodrecer as sensações; depois de mortas embranquencem-se com a memória; em seguida rubrificam-se com a imaginação; finalmente se sublimam com a expressão”.

As experiências mediúnicas e os conhecimentos das ciências ocultas induziram certa crítica biográfica a admitir a hipótese de serem os heterônimos “cristalizações de eus superterrestres” no ser real de Fernando Pessoa. Tal hipótese é insustentável se se atentar quer para a grande lucidez mental do poeta português, quer para o lado materialista de seu espírito, quer para a unidade humana e poética de sua personalidade, apesar da diversidade das facetas em que ela se nos apresenta. A criação heterônima deve ser considerada, essencialmente, ficção, fingimento artístico, drama íntimo, jogo cerebral e poético. Qualquer relação que se possa estabelecer entre a gênese dos heterônimos e a vida real do escritor português está fadada a ser uma mera conjectura, mesmo quando estiver fundamentada nos próprios escritos de Fernando Pessoa. Devemos acreditar nele, por exemplo, quando afirma, em carta a Casais Monteiro, que apenas num dia (8 de março de 1914) escreveu de pé e a fio, trinta e tantos poemas, com o título de O Guardador de Rebanhos, sob o nome de Alberto Caeiro, e mais seis poemas da coletânea Chuva Oblíqua, assinada por seu nome verdadeiro? Não esqueçamos que Fernando Pessoa chamou o poeta de fingidor e nele é difícil estabelecer limites entre a realidade e a fanstasia, entre a vida e arte. O poeta português “ele mesmo” não é mais real ou menos ficcional do que qualquer outro heterônimo. A nosso ver, os seres imaginários que diz o habitarem não são senão as várias posições estéticas e ideológicas que o poeta viveu ao longo de sua vida, independentemente de qualquer “inspiração” momentânea ou influxo sobrenatural que possa ter sofrido como pessoa fisica. A criação heterônima é fruto de longa maturação humana e poética de que seu autor tem plena consciência.


3) Os antecedentes culturais: a partir do início do século XX, pela influência da filosofia existencialista, pela difusão das várias correntes psicanalistas e pelo progresso das teorias científicas sobre a relatividade, o dogma antigo da personalidade una e compacta entra em crise. Vários escritores procuram expressar em forma de arte literária a multivocidade do ser humano. O tratamento dessa tese pode ser encontrado em filósofos, dramaturgos e poetas. Kierkegaard, o pai do existencialismo, desdobrou-se em vários autores pela necessidade de se manter imparcial diante do desenrolar de seu pensamento dialético; o pensador francês Renan, em seu Diálogos Filosóficos afima que, quando refletia, tinha a impressão de ser o autor de um diálogo entre os dois lóbulos do cérebro; o poeta Unamuno coloca na base do sentimento trágico da vida a luta, dentro do mesmo indivíduo, entre a inteligência (as forças racionais) e a vida (o instinto natural), considerando o vital irracional e o racional antivital; o russo Evreinoff, no drama O Teatro da Alma, considera as personagens como várias subindividualidades componentes desse pseudossimplex que se chama espírito; o poeta francês Valéry revela que, quando procurava a solução de um problema estético, sentia-se um double, como se fosse duas pessoas distintas; Antonio Machado inventa “os poetas apócrifos” para transformar-se em outro eus. Mas é o dramaturgo italiano Luigi Pirandello que, a nosso ver, melhor se aproxima de Fernando Pessoa na concepção da pluralidade existente no ser humano. A personagem “Pai” da famosa peça Seis Personagens à Procura de um Autor afirma claramente a plurifacetação da personalidade:

“O drama para mim está todo nisso: na convicção que tenho de que cada um de nós julga ser um, o que não é verdade; porque é muitos; tantos quantas as possiblidades de ser que existem em nós: 'um' com este; 'um' com aquele – diversíssimos! E com a ilusão, etretanto, de ser sempre 'aquele um' que acreditamos ser em cada ato nosso. Não é verdade!”

Estes testemunhos demonstram que na época de Fernando Pessoa a personalidade humana já não era considerada como algo coerente, monolítico e indivisível, reputando-se o espírito como um agregado de sensações e ideias diferentes e contraditórias. Tal concepção nova da personalidade, que pairava no ambiente cultural das primeiras décadas de nosso século, deve ter influenciado o poeta português na criação de seus heterônimos, sem todavia tirar-lhe o brilho da genialidade, quer porque em nenhum outro escritor a despersonalização foi sentida tão fortemente, quer porque foi expressa artisticamente de modo todo peculiar. Só em Fernando Pessoa a heteronímia chegou ao ponto da dramatização, pois ele soube transformar as várias correntes humanas e estéticas, que existiam dentro dele, em seres autônomos em constante conflito.


4) A intelectualização dos sentimentos: a poética moderna diferencia-se da romântica pelo fato de que o poeta, mais que sentir-se um inspirado, opera como um artífice, um construtor de seus versos, e distingui-se da poética clássica pela atitude crítica do autor perante a gênese e o processo de sua construção artística. Fernando Pessoa, como T.S. Eliot, E.A. Poe, P. Valéry, Mayakovski e outros grandes poetas, é, ao mesmo tempo, criador e crítico de sua poesia. A análise do processo da criação poética e a preocupação crítica procedem paralelamente à construção da obra de arte, no intuito de arrancar a poesia do mito do mistério e da inspiração divina (a figura da musa inspiradora é posta de escanteio) e apresentar o poético como um produto do homem para o homem, realizado na plenitude da consciência. O conhecido verso de Fernando Pessoa

“O que em mim sente, está pensando”

expressa bem a tomada de consciência do poeta em face do ato da criação artística.

Pensamento e sentimento, faculdades do espírito que por longo tempo foram consideradas antitéticas, cada qual estando ao centro de duas estéticas divergentes – a clássica e a romântica --, encontram sua conjunção e sua simbiose nos melhores poetas modernos. Hoje, a expressão corrente para denominar essa nova poética é a inteligência emocional. O pensamento sentido e o sentimento pensado enformam a matéria da poesia dos maiores escritores, entre os quais se destaca Fernando Pessoa. Nele, poética e estética andam de braços dados. À medida que cada heterônimo é a encarnação de uma tendência literária, ele funciona também como crítico da corrente contrária, personificada por outro heterônimo. Assistimos, então, dentro do mesmo poeta, a um drama vivido por artistas da palavra. Segundo Fernando Pessoa, o poeta dramático é o melhor de todos, porque só ele consegue despersonalizar-se, pondo para fora e expressando em forma de arte os diferentes modos de ver o mundo e de sentir a poesia.