Pesquisando/VII/Intertexto

O intertexto

A análise intertextual visa a situar o poema Ulisses na série poética publicada por Fernando Pessoa sob o título de Mensagem, dividida em três partes: Brasão, Mar Português e Encoberto. Os títulos já sugerem que se trata de uma poesia altamente patriótica, que exalta as figuras ilustres de Portugal e sua maiores façanhas. Essa série, com outras coletâneas (Cancioneiro, Poemas Dramáticos, Poesias Coligidas, entre outras), pertence à produção poética ortônima assinada pela próprio Fernando Pessoa, com seu nome verdadeiro, diferenciando-se de mais três séries poéticas, assinadas com nomes fictícios, os heterônimos Ricardo Reis, Alberto Caeiro e Álvaro de Campos.

Fernando Pessoa tornou-se imortal não apenas pela beleza de seus versos e pela acuidade de seus pensamentos críticos sobre a vida e sobre a arte, mas especialmente por ter inventado, pela criação dos heterônimos, personalidades poéticas distintas de si próprio: não se limitou a assinar seus poemas com nomes fictícios, mas inventou, para cada nome, uma entidade humana e poética com biografia, cosmovisão e tendências literárias prórias. A heteronomia, portanto, é um processo de desdobramento de personalidade: da aparente unidade psíquico-intelectual de Fernando Pessoa emanam e se substancializam diferentes modos de sentir o mundo e a poesia. O poeta português, autodefinindo-se “um novelo embrulhado parao lado de dentro”, procura desembrulhar-se, colocando para fora de si as diversas tendências filosóficas, artísticas, humanas, que se encontravam confusas em seu espírito:

“Multipliquei-me, para me sentir,

Para me sentir, precisei sentir tudo,
Transbordei, não fiz senão extravasar-me,
Despi-me, entreguei-me,

E há em cada canto da minha alma um altar a um deus diferente.”

A coexistência de várias pessoas, de “vozes” diferentes no mesmo ser, cria um tormento no espírito do poeta: daí a necessidade de quebrar “a cadeia de ser um”, de libertar-se do sofrimento dos contrastes acumulados dentro de si. O fundamento psíquico da criação heterônima reside na complexidade do ser humano: o espírito é um “pseudossimplex”, a unidade do ser não passando de um mito ou preconceito. Cada um de nós encerra dentro de si uma pluralidade de vozes, de tendências, de desejos, de ideias, de sentimentos que, muitas vezes, por serem contraditórios, provocam uma angústia existencial. Fernando Pessoa conseguiu superar artisticamente essa contradição, imaginando a coexistência de vários seres dentro de si, cada qual indicando uma faceta peculiar de sua personalidade. Foi assim que ele pôde:

“Sentir tudo de todas as maneiras,

Viver tudo de todos os lados,
Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo,
Realizar em si toda humanidade de todos os momentos

Num só momento difuso, profuso, completo e longínquo.”

Entre os vários heterônimos ou alter egos criados pela fértil imaginação do singular poeta português, destacamos os três citados anteriormente que, com o ortônimo, formam as quatro maiores personas poéticas de Fernando Pessoa. Já vimos que a poesia do “ele próprio”, o ortômimo, representa a voz do saudosismo português. O heterônimo Ricardo Reis que, como Fernando Pessoa, poetiza de forma tradicional, usando esquemas estróficos, rímicos e rítmicos consagrados, exprime toda a herança clássico-pagã presente no espírito do poeta lusitano.

O assunto do presente texto sobre metodologia nos impede de apresentar uma visão completa da poesia deste e dos outros heterônimos. Apenas como exemplos de intertextualidade, transcrevemos alguns trechos que nos possam dar uma ideia das coordenadas estéticas e dos valores ideológicos presentes na obra poética atribuída a Ricardo Reis, a Alberto Caeiro e a Álvaro de Campos. De Ricardo Reis, cujos traços pseudobiográficos o apresentam como jovem de família abastada, educado num colégio jesuíta, latinista e helenista, o seguinte poema reafirma o tema do carpe diem, tratado pelo poeta epicurista Horácio, que se tornou um tópico da poética clássica: a exortação ao gozo dos prazeres da vida em vista da fugacidade do tempo e da imprevisibilidade da morte:

“Como se cada beijo

Fora de despedida,
Minha Cloe, beijemo-nos, amando.
Talvez que já nos toque
No ombro a mão, que chama
À barca que não vem senão vazia;
E que no mesmo feixe
Ata o que mútuos fomos

E a alheia soma universal da vida.”

Alberto Caeiro, considerado por Fernando Pessoa como mestre dos outros heterônimos e de si próprio, foi o alter ego a se esboçar por inteiro no espírito do poeta português. Na biografia imaginária traçada para esse heterônimo, Fernando Pessoa apresenta Caeiro como um jovem loiro, de olhos azuis e infantis, que nasceu em Lisboa em 1889, mas viveu toda sua vida no campo, na companhia de uma tia, morrendo de tuberculose em 1915. Sua formação escolar não passou do curso primário e sua poesia pretende ser como sua vida: simples, espontânea, instintiva, inspirada pelo cotanto direto e imediato com a natureza:

“A minha poesia é natural
Como levantar-se o vento.”

Ele é o poeta da realidade objetiva, porque descreve o que vê e o que sente, longe de qualquer elucubração mental, inimigo de todas as filosofias. O poeta Alberto procura susbtituir o pensamento pelas sensações, o subjetivo espiritual pelo real, a reflexão pela visão direta das coisas. A matéria de sua poesia é o mundo que o circunda: árvores, sol, ovelhas, flores, etc.:

“Eu nunca passo para além da realidade imediata.
Para além da realidade imediata não há nada.”

O cão-guia de Alberto Caeiro não é nem o cérebro nem o coração, mas a visão:

“Eu nem sequer sou poeta: vejo.”

Este heterônimo, além de negar a possibilidade de o homem filosofar (porque, segundo ele, não existe uma “constituição íntima das coisas”, sendo os seres e o objetos apenas fenômenos da natureza) e de injetar qualquer subjetivismo (que levaria à distorção da realidade objetiva), ele também recusa todo tipo de estética, aproximando a poeisa da prosa, da linguagem cotidiana:

“Por mim escrevo a prosa dos meus versos

E fico contente...”

“Não me importo com as rimas. Raras vezes

Há duas árvores iguais, uma ao lado da outra.”

No próprio momento em que se confessa antifilósofo e antipoeta, porém, Alberto Caeiro, paradoxalmente, se revela como um dos maiores artistas da palavra e um exímio pensador. Refletindo bem, no próprio ato de negar a filosofia, Caeiro está fazendo filosofia, visto que seus versos são gerados sob o signo da dialética e da polêmica com os cultores do pensamento especulativo. O mesmo acontece em relação à estética literária: no momento em que se opõe e critica o modo da poesia tradicional, feito de fidelidade aos cânones métricos e retóricos, ele cria uma nova estética (especialmente por isso é considerado “o mestre”), a do “versolivrismo”, da pobreza lexical, da repetição, do polissíndeto, da aproximação de termos e conceitos opostos, do “sensacionismo”. Sua aversão, portanto, ao pensamento teórico, à poética formal e a qualquer tipo de cientificismo, mais do que pertencer à estrutura de sua personalidade, configura-se como uma atitude mental proposital, que funciona como contraponto às linguagens poéticas e às cosmovisões de Fernando Pessoa ortônimo e dos outros heterônimos.

Entrando um pouco no campo da análise extratextual, a poesia de Caeiro pode ser vista como reação a quase todas as orientações filosóficas e estéticas da época: opõe-se ao saudosismo português que exaltava o passado; ao decadentismo francês que cultivava o vago e o imaginário; ao futurismo italiano que enaltecia a vida mecanizada; a toda sorte de psicologismo, subjetivismo, humanitarismo. A indiferença de Caeiro perante o sofrimento é uma denúncia da impostura dos ideais filantrópicos apregoados por cristãos e humanitaristas. Para esse heterônimo, os seres humanos, como os elementos da natureza, são imutáveis, cada qual devendo seguir seu curso e seu destino, não havendo possibilidade nem necessidade de modificações. Os entes naturais são como são porque são assim. Se quisermos atribuir um “ismo” à poética de Alberto Caeiro, o que mais lhe convém é o “sensacionismo”: a poesia deve descrever, numa linguagem clara e precisa, os seres e os objetos assim como são apreendidos pelos sentidos. E nada mais! Se quisermos encontrar um fundamento filosófico para tal estética devemos recorrer à doutrina fenomenológica de Edmund Husserl: a verdade dos seres e dos objetos está em sim mesmo e é apreendida pela experiência que deles temos.

O outro heterônimo, Álvaro de Campos, também é imaginado como discípulo de Alberto Caeiro, só que de formação e tendência opostas às de Ricardo Reis, com o qual trava constantes lides acerca do ideal de vida e do modo de poetar. Esse heterônimo expressa a faceta de Fernando Pessoa voltada para o mundo moderno, a civilização industrial, o universo das máquinas, de que sente o fascínio e a repulsa, ao mesmo tempo. Entre o mundo da natureza sempre presente no mestre Caeiro colocam-se seus dois principais discípulos: um, Reis, voltado para o passado, cultor da tradição clássica; outro, Campos, olhando para frente, o poeta do Futurismo.

Pela biografia ficcional inventada por Fernando Pessoa, sabemos que Álvaro nasceu em Tavira, em 1890, filho de judeus portugueses, e estudou na Escócia, tirando o diploma de engenheiro naval pela universidade de Glasgow. Acusou as influências literárias de Walt Whitman, poeta norte-americano, em sua época considerado escandaloso, quer pela forma de sua poesia (verso livre e vocabulário de baixo calão), quer pelo conteúdo (exaltação da sensualidade impudica), e de Marinetti, poeta italiano fundador do futurismo. Em verdade, mais do que whitmaniano ou futurista, Álvaro de Campos é o poeta das sensações, não instintivamente vividas como queria o mestre Caeiro, mas esteticamente expressas. Poderíamos considerar o “sensacionismo” como o filão português da vanguarda europeia.

O conteúdo pragmático da poesia desse heterônimo, centrado na exteriorização das sensações, de qualquer tipo que elas sejam, é realizado por uma estética que adapta a forma ao material: à liberdade que goza a substância do conteúdo corresponde a mesma liberdade na forma da expressão. Diferentemente da do heterônimo Ricardo Reis e da de Fernando Pessoa ele próprio, a poesia de Álvaro de Campos, como a do mestre Caeiro, compõe-se de verso livre, sem divisão estrófica regular, sem metro, sem rima. O ritmo corre livre, sem os artifícios dos esquemas e das imagens retóricas da poesia tradicional, adequando-se ao rápido progresso da vida moderna. A esse hetorônimo devemos algumas das mais belas páginas da poesia portuguesa do século XX: Opiário, Ode Marítima, Tabacaria, Poema em Linha Reta, Datilografia, Ode Triunfal. Deste último poema, transcrevemos uma estrofe, apenas parea saborearmos a poética do heterônimo Álvaro de Campos:

Ó fábricas, ó laboratórios, ó music-halls, ó Luna-Parks,

Ó couraçados, ó pontes, ó docas flutuantes –
Na minha mente turbulenta e incandescida
Possuo-vos como a uma mulher bela,
Completamente vos possuo como a uma mulher bela que não se ama,

Que se encontra casualmente e se acha interessantíssima.