O intratexto
Para o estudo do poema citado, deveríamos seguir a démarche que consideramos mais racional: primeiro, a análise dos elementos internos do texto artístico; a seguir, a relação que esse produto poético estabelece com outros textos do mesmo autor; enfim, sua relação com o mundo exterior, na tentativa de apresentar nossa interpretação, isto é, captar alguns sentidos possíveis. Todavia, esse caminho, como veremos, às vezes pode sofrer bifurcações, precisando misturar análise com interpretação, elementos internos com dados do mundo exterior, lançando mão, ao mesmo tempo, de vários tipos de enfoques.
Começando pela abordagem intratextual, verificamos que o nível gráfico ou óptico do poema, em seu aspecto fenomenológico, evidencia a presença de um título e de três estrofes, cada qual composta de cinco versos, sendo o último verso de cada quinteto mais curto que os demais. Trata-se, portanto, de uma forma poemática peculiar, pois não tem uma estrutura estrófica tradicional, como um soneto, por exemplo. Em sua configuração, o título representa a cabeça e as estrofes o corpo do poema. O título, geralmente, é indicativo do tema, antecipando o sentido geral da obra ou revelando a personagem principal ou fornecendo importantes determinações espaciais ou temporais. Assim, por exemplo, o título do romance cíclico de Érico Veríssimo, O Tempo e o Vento, já sugere que se trata de uma longa narrativa, um vasto painel diacrônico sobre a saga de duas famílias gaúchas, cujas paixões são fustigantes como o vento das estepes.
No poema em tela, o título apresenta um referente extratextual: o personagem Ulisses é uma das grandes figuras da mitologia greco-romana, imortalizado em numerosas obras de arte. A literatura, a escultura, o teatro, o cinema, ao longo dos séculos, têm-se servido do mito de Ulisses como material para a construção de obras de alto valor estético e humano. Portanto, sem o conhecimento dos principais dados acerca dessa biografia fantástica, cujo nome aparece no título, a interpretação do poema seria impossível. Faz-se necessária, então, logo no início, a saída do texto para o extratexto, porque um elemento externo, do mundo mitológico, passou a integrar o objeto poético, fazendo parte de sua estrutura interna. O crítico deve investigar tratados de mitologia greco-romana e lendas sobre as origens do povo português. O resultado de tal pesquisa levaria o estudioso ao seguinte conhecimento:
Narra o mito que Odisseu (o nome grego do latino Ulisses) nasceu como consequência de uma dúplice artimanha preparada pelos dois homens mais inteligentes da Grécia pré-histórica: Sísifo, rei de Corinto, para vingar-se de Autólico que lhe roubara o rebanho, seduziu sua filha Anticleia; mas era o que o próprio Autólico tinha planejado, pois era seu desejo ter um neto que herdasse a astúcia de seu rival Sísifo. A moça Anticleia, abandonada por Sísifo e grávida de Odisseu, desposou Laertes, rei de Ítaca, que assumiu a paternidade da criança. O jovem Ulisses, educado pelo sábio centauro Quirão, na idade de contrair núpcias, apaixonou-se por Helena, a mulher mais bonita da Grécia; mas por serem uma centena os pretendentes, desistiu da competição e casou-se com Penélope, prima de Helena. Declarada a guerra da coligação grega contra a cidade de Troia para a reconquista de Helena, esposa do rei Menelau, raptada pelo príncipe troiano Páris, Ulisses foi obrigado a participar do assédio de Troia, vítima de um pacto por ele mesmo estabelecido: os concorrentes à mão de Helena comprometiam-se a respeitar a vontade da moça na escolha do esposo e a defender a união do casal. Depois de dez anos de cerco e de lutas, Troia foi expugnada pelo ardil da construção do famoso cavalo de madeira, invenção do próprio Ulisses, que, oferecido aos troianos, continha em seu ventre soldados helênicos. Daí a expressão proverbial “presente de grego”. Após a guerra, o herói iniciou a viagem de retorno a Ítaca, onde o esperavam a fiel esposa Penélope e o devotado filho Telêmaco. A vingança de Vênus, porém, deusa do amor e protetora dos troianos, fez com que a viagem de retorno demorasse mais de dez anos. O herói precisou superar tempestades marítimas, naufrágios, sereias sedutoras, ciclopes antropófagos, o amor de Circe, de Calipso e de Nausica, até conseguir aproar em sua ilha, onde ainda foi obrigado a lutar ardilosamente para vencer os poderosos próceres que aspiravam ao reino e à mão de sua esposa.
O mito de Ulisses foi criado pelos gregos para exaltar sua expansão marítima e afirmar o triunfo de um povo civilizado sobre a força bruta de povos bárbaros e sobre os percalços do destino. O grego Odisseu representa ainda: o poder da inteligência, pois o apelido de astuto define muito bem sua personalidade, porque, como vimos, a capacidade de preparar ardis o acompanha do nascimento à morte; o triunfo final do amor conjugal sobre as relações extramatrimoniais; a dedicação à terra de origem em relação às vicissitudes no estrangeiro; o sentimento de fidelidade da esposa Penélope; a devoção filial de Telêmaco; a gratidão dos escravos da corte; enfim, a afirmação dos ideais cívicos e morais.
Outro referente extratextual presente no poema em estudo, desta vez de forma implícita, é Lisboa e, em geral, o povo português. Na segunda estrofe, o advérbio de lugar “aqui” só pode referir-se à terra do autor, Fernando Pessoa, elemento do mundo da realidade. A mesma coisa acontece com o pronome “nos”, que se encontra antes dos verbos “bastou” e “creou”, indicando os portugueses. E isso, porque, segundo outro mito, Luso, filho do deus Baco, teria sido o fundador do povo português (daí o adjetivo “lusitano”). Ulisses, durante suas andanças nas proximidades das Colunas de Hércules, os rochedos de Gibraltar e de Ceuta, que ladeiam o estreito entre a África e a Europa, onde os antigos pensavam que o mundo acabasse, teria desembarcado na extrema ponta do continente europeu e dado origem à cidade de Lisboa. Tal lenda encontra sua justificativa na etimologia do nome: Lisboa é um derivado fonético de Ulissipona, ‘a cidade de Ulisses’. E é a palavra Uissipona que se encontra estampada no frontispício da coletânea de poemas enfeixados no livro Mensagem, a que pertence o texto que estamos analisando.
A explicação do título Ulisses é necessária para a compreensão do poema também por outro motivo: quando o ciclope Polifemo perguntou a Ulisses qual era seu nome, o herói grego astutamente respondeu: “Meu nome é Ninguém.” Assim Polifemo quando, cegado por Ulisses, ao pedir a ajuda dos outros ciclopes, gritou “Ninguém me cegou, Ninguém quer me matar”, não foi atendido pelos colegas, que pensaram que ele estava brincando. Ora, como veremos, o poema todo está fundamentado num jogo de palavras, na relação dos termos contraditórios do ser e do não ser, ao mesmo tempo.
Começando propriamente a análise da estrutura do texto, na primeira estrofe, o poeta nos dá sua definição do mito mediante uma oração predicativa, em que se encontram identificados dois termos contrários: “O mito é o nada que é tudo.” O sintagma evidencia uma figura retórica chamada de oximoro (quase sinônimo de antítese ou paradoxo), que consiste na predicação de um termo contrário ou contraditório, em relação ao sujeito da oração. Trata-se de um metassemema, a figura de sentido presente no poema todo, sobre o qual está centrado o potencial estético e semântico do texto. O primeiro verso apresenta duas formas oximóricas encadeadas:
- a. “O myto é”, que exprime a existência, e sua predicação “o nada”, que indica a não-existência;
- b. “nada”, que exprime uma totalidade negativa, e sua predicação “tudo”, que indica uma totalidade positiva.
Para entendermos a figura retórica, o tropo de sentido, é preciso distinguir as duas escalas de valores. Uma, em que o mito pode ser considerado um nada, e outra em que pode ser um tudo. O mito é nada do ponto de vista da realidade histórica, porque é fruto da imaginação popular que inventa histórias fantásticas acerca de seres sobrenaturais, na tentativa de explicar a origem das coisas ou padrões de comportamento; o mito é tudo do ponto de vista espiritual, porque nenhum povo pode viver sem crenças que lhe expliquem a causa dos fenômenos e lhe determinem as regras de conduta.
Ainda na primeira estrofe, notamos outra forma oximórica: o “Sol”, que é considerado também um mito (o símbolo do renascimento diário), tem como aposto “o corpo morto de deus / / vivo e desnudo”. A oposição de corpo de Deus morto e vivo, ao mesmo tempo, pode ser entendida da seguinte maneira: Deus é visto como morto porque coisificado num astro e vivo porque é a sua luz que dá calor e possibilita a existência da vida no universo.
A segunda estrofe refere-se à ação de um mito específico, o de Ulisses, que chega à costa atlântica e dá origem ao povo lisboeta. “Este”, do primeiro verso, está ligado anaforicamente a Ulysses, título do poema; o advérbio de lugar “aqui” indica a proximidade com o sujeito da enunciação, que nesse caso deve ser identificado como o próprio autor, Fernando Pessoa, cidadão de Lisboa, assim como “nos” se refere ao povo português. Como se pode observar, o conhecimento da realidade exterior é indispensável para a compreensão da estrutura interna do poema: texto e extratexto se entrelaçam!
Os três versos medianos são formados por três oximoros de contraditoriedade: Ulisses existiu e não existiu, foi e não foi suficiente, chegou e não chegou. Também aqui, para entendermos o metassemema, é preciso distinguir duas escalas de valores diferentes: Ulisses não existiu no plano histórico, da realidade física, porque é um mito; mas ele existiu no plano espiritual, porque a crença numa origem sobrenatural estimulou o povo português a imitar as façanhas de seu fundador, aventurando-se no mar para a descoberta e a conquista de novas terras.
A última estrofe tem como momento ideológico a proliferação do mito: este fecunda a realidade e se espalha entre os povos. A oposição da parte espiritual, alimentada pelo mito, e de sua parte material, expressa pelo advérbio de lugar “em baixo”, é apresentada mediante um dúplice oximoro de contrários: vida versus morte e metade versus nada. Pela semântica comum, nada, como é uma totalidade negativa, não poderia ter uma metade. Mas a linguagem poética supera esse paradoxo: o poeta, tendo definido o mito como um nada-tudo, a vida, metade de nada, passa a ser também metade de mito. Quer dizer, a vida humana é regida, de um lado, pela força do mito, e, de outro lado, pela força da realidade. O que morre no ser humano é sua parte material, que é perecível, ao passo que o elemento mítico, por ser espiritual, perpetua-se continuamente no seio da humanidade, sendo fator de seu progresso civilizacional.
À margem da análise semântica do poema, notamos o estreito paralelismo existente entre a forma da expressão e a forma do conteúdo, percebível especialmente pelo uso do léxico (escolha das categorias gramaticais): o poeta, na primeira estrofe, quando quer apenas definir o mito de uma forma geral, usa só substantivos (que indicam a essência ou a existência das coisas) e adjetivos (que qualificam os seres), com a presença de verbos apenas na forma copulativa é ou na forma adjetiva que abre; na segunda estrofe, para salientar a ação do mito, usa exclusivamente verbos indicadores do fazer, com a ausência total de substantivos e de adjetivos; na terceira estrofe, para indicar sua proliferação, troca o masculino mito pelo feminino “lenda”, gênero marcado para sugerir o ato da procriação.
Elemento estrutural relevante é também o paralelismo fonossemântico. As relações entre som e sentido concorrem para conferir um valor estético ao conteúdo ideológico. O poema é composto de três pentásticos, cada estrofe sendo formada por quatro heptassílabos e um verso mais curto, de quatro sílabas, com rima alternada de esquema ABABA. Cada estrofe apresenta um campo sonoro fechado, mas próprio, pois não se repete nos outros dois quintetos, para marcar a diferença de conteúdo que distingue as três partes do poema.
A primeira estrofe, pela rima final, estabelece um chamamento fônico entre as palavras tudo – mudo e desnudo, que qualificam o mito, e os substantivos céus – Deus, o nome genérico da divindade e sua localização tradicional. A leitura vertical do primeiro pentástico, portanto, apresenta o entrelaçamento sonoro entre os elementos disfóricos do mito (uma totalidade sem voz e sem forma visível) e seus elementos eufóricos (uma entidade espiritual que vive numa esfera superior).
Na segunda estrofe, a relação sonora que liga entre si os três verbos aportou – bastou – creou sugere a ação progressiva do mito na terra portuguesa; e a chamada fônica da rima dos outros dois verbos de ação existindo – vindo reforça a ideia da chegada do mito como quintessência da vida. Na última estrofe, enfim, a rima entre os verbos que se referem à lenda, escorre – decorre – morre, indica seu nascimento, propagação e transformação; enquanto a concordância sonora realidade – metade repete fonicamente o conteúdo semântico mais importante do poema: o mito-lenda, ao transcender o mundo material, torna-se o elemento espiritual que sustenta o sonho humano de alcançar a imortalidade.
Acabamos de fazer uma rápida leitura interna do poema, interrogando o próprio texto para que apresentasse alguns sentidos possíveis, mediante a análise de seus vários níveis: gráfico, fônico, lexical, sintático. Mas, como já dissemos várias vezes, apenas a abordagem intrínseca é insuficiente para dar conta de toda a riqueza semântica da obra de arte literária. Como vimos, existem, no próprio texto, referências ao mundo histórico, à realidade material e cultural que, se ignoradas, impossibilitam qualquer interpretação inteligente. Mesmo se o texto não apresentasse referentes extratextuais explícitos, o recurso ao conhecimento da vida do autor, do gênero literário a que se filia e do ambiente cultural em que foi produzido é indispensável para a compreensão mais ampla da obra. Daí a necessidade de prosseguirmos a análise, avaliando o poema Ulysses no conjunto da obra poética e do mundo cultural de Fernando Pessoa.