CAPITULO VI


A VOLTA



No dia seguinte, á hora de acender o lampião, o visconde apareceu, todo cheio de si, e disse:

— Descobri tudo. Descobri o ladrão, ou a ladrona da sombra de tia Nastacia. Aposto que ela hoje está sem sombra nenhuma.

— Quem é? Quem foi? indagaram todos.

O visconde olhou para Emilia, que estava de labios apertados e olhinho duro. Quis dizer que era ela, mas não teve coragem. Por fim, como dona Benta insistisse, não teve remedio.

— E' a senhora dona Emilia, a ladrona da sombra! declarou ele, corajosamente.

Foi um espanto geral. Todos se voltaram para a boneca, que apenas sorriu com superioridade e respondeu com uma pergunta.

— Dona Benta, disse ela, explique ao visconde o que é roubar.

— Roubar é tirar uma coisa que pertence a outra pessoa sem autorização dessa pessoa, ensinou dona Benta.

— Muito bem, exclamou Emilia. Mas se a coisa roubada continua no poder da dona, alguem pode afirmar que houve roubo?

— Não, está claro que não. Mas que tem isso com o caso?

— Muita coisa, replicou Emilia — e voltando-se para tia Nastacia : — Acenda o lampião e veja se está mesmo roubada.

Tia Nastacia acendeu o lampião e, com grande surpresa, viu que sua sombra se projeta va inteirinha na parede, como antigamente.

Todos arregalaram os olhos.

— Vejam que sherlock das duzias é o tal senhor visconde ! gritou Emilia, dando uma risada ironica. Acusou-me de ter furtado uma coisa que não foi furtada! A sombra de tia Nastacia está direitinha como sempre foi.

Era a pura verdade. Todos se aproximaram da parede para examinar o estranho caso. Viram que de fato a sombra fora cortada em numerosos pedaços, mas que havia sido remendada de novo. As costuras estavam visiveis.

— Bom, disse dona Benta. Desde que a sombra voltou, não vale a pena insistirmos nisso, mas Emilia que não repita a brincadeira. A sombra grudou muito bem. Mas se não grudasse? Se a pobre tia Nastacia ficasse aleijada para toda a vida? Não e não. Basta de tais reinações. Com sombra a gente não brinca.

Em seguida tomou assento em sua cadeira de pernas serradas e anunciou o fim da historia de Peter Pan e Wendy.

— Depois da derrota do capitão Gancho, disse ela, os outros piratas levaram a breca, isto é, morreram afogados. Só se salvaram dois, um de nome Smee e outro de nome Starkey.

Smee era um pirata irlandês, não tão ruim como os outros; conseguiu nadar até a praia, salvou-se e acabou marinheiro, muito bem comportado num navio de guerra inglês.

— E Starkey?

— Starkey nunca havia derramado sangue humano, apesar de ser um grande patife. A sorte o poupou. Foi aprisionado pelos Peles Vermelhas e posto lá na tribu como ama seca dos indiozinhos. Para pirata não podia haver castigo maior.


— E na casa dos pais dos meninos ?

— Lá foi uma tristeza sem conta, como vocês podem imaginar. O senhor Darling, como castigo de não ter posto mais tento nos meninos, resolveu viver na ensinha da cachorra Nana, como se fosse cachorro. Todos os dias, depois de voltar do escritorio, ia deitar-se lá e até fazia au ! au ! Era um homem muito esquisito — ou "excentrico", como dizem os ingleses.

— Excentrico quer dizer esquisito? indagou Pedrinho.

— Excentrico quer dizer fóra do centro. Aplicado ás pessoas quer dizer que uma pessoa é um tanto fóra do comum, um tanto diferente das outras. Os ingleses são muito diferentes de nós, porisso nós chamamos os ingleses de excentricos.

— E a senhora Darling? quis saber a menina.

— A senhora Darling andava inconsolavel. Já se haviam passado varias semanas e os meninos nada de darem sinal de si. Os jornais trouxeram artigos sobre o curioso acontecimento e publicaram o retrato dos tres, com promessa duma boa recompensa para quem lhes indicasse o paradeiro. Tudo inutil.

Certa tarde a infeliz senhora estava ao pé da lareira, muito triste e desanimada, pensando nos filhos perdidos dum modo tão misterioso, quando ouviu um rumor de vôo na rua — um rumor que não era de vôo de coruja, nem de zeppelin. Parecia vôo humano. Mas não deu importancia áquilo e continuou na sua tristeza. Logo depois ouviu uma voz no quarto das crianças, que dizia : Mamãe !

— "Que será isto, Deus do ceu? exclamou ela. Estarei sonhando?

Levantou-se precipitadamente e correu ao quarto... e viu os tres meninos nas suas caminhas, exatamente como outróra. Certa de que era sonho, esfregou os olhos com toda a força. Olhou outra vez. Lá continuavam eles. Não era sonho, não! Os seus tres filhinhos em carne e osso ali estavam novamente...

Ninguem pode descrever a felicidade da boa mãe. Abraçava um, beijava outro, chorava, ria. Uma perfeita doida. Levou tempo assim e só sossegou quando Wendy pôs-se a contar tudo quanto havia acontecido na maravilhosa Terra do Nunca, e a feiura e ruindade do Capitão Gancho, e a valentia de Peter Pan, e o amor que os meninos perdidos tinham por ela.

— "E onde estão esses meninos? perguntou a senhora Darling.

— "Ai na rua, perto da janela.

A boa senhora os fez entrar e sabendo que não tinham mãe declarou que dali por diante ela viraria a mãe de todos. A casa não era muito espaçosa, mas havia de dar jeito de acomoda-los muito bem.

A unica dificuldade foi com Peter Pan. Embora tivesse gostado muito da senhora Darling, o estranho menino de modo nenhum se resignava á ideia de ficar morando num mundo onde as crianças crescem e viram desenxabidissimas gentes grandes.

— "Não posso ficar, disse ele. Não acho graça em crescer. Vou voltar para minha querida Terra do Nunca, onde viverei sozinho com as fadas.

E depois :

— "Mas ficarei muito contente se Wendy e os meninos forem todos os anos passar comigo uma semana da primavera. A senhora consente?

A senhora Darling vacilou, mas como a meninada batesse palmas e fizesse uma enorme gritaria, exigindo o seu sim, ela não teve remedio — consentiu.

— "Muito bem, disse. Fica assentado isso. Todos os anos, pela primavera, Wendy e os meninos irão passar uma semana inteira na Terra do Nunea. Está satisfeito?

Começaram as despedidas. Peter Pan fez uma recomendação a cada qual dos seus antigos companheiros e beijou Wendy na testa. Depois, prrrr !... lá se foi pelos ares. Ia triste e alegre ao mesmo tempo. Triste por ter perdido a companhia de Wendy, e alegre por ter resistido á tentação de virar um menino como qualquer outro — dos que crescem, criam buço e depois bigode, e acabam "adultos", ou gente grande. Não, não e não. Havia de conservar-se menino sempre.

— E que aconteceu depois? quis saber Narizinho.

— A senhora Darling a primeira coisa que fez foi vestir decentemente os meninos perdidos. Estavam todos enfiados em roupas de piratas e ainda com cheiro da Hiena do Mar. Lavou-os, penteou-os, mandou cortar-lhes o cabelo e por fim os botou na escola.

— E eles se acostumaram com a nova vida?

— Custou um pouco. No fim da primeira semana já estavam arrependidos e com saudades de Peter Pan. A senhora Darling percebeu isso e, com medo que fugissem, pôs a Nana no quarto, a tomar conta deles. Cada vez que faziam menção de voar, Nana latia. Por fim como fossem perdendo aquela faculdade de voar, não pensaram mais em fugir. Certa vez em que Assobio trepou á cama, ergueu os braços e experimentou voar, esborrachou-se no tapete, tal qual Miguel no primeiro dia.

— Bem feito! exclamou Emilia. Quem manda...

— Quem manda o que, Emilia? Você parece idiota...

— Quem manda trocar a mais linda das terras, terra de piratas, de lobos famintos, de indios que fogem como lebres, de sereias de casca de prata, por essa sengracice que deve ser Londres? Bem feito. Bem feitissimo.

— Eu tambem penso assim, disse Pedrinho. No dia em que me pilhar na Terra do Nunca, será para sempre. Ando enjoado deste mundo.

— E tinha coragem de deixar aqui a sua avó? perguntou dona Benta.

— Isso, não. Levava a senhora tambem. Levava todos. Mudava o sitio para lá...

— Continue, vovó, pediu a menina. Que aconteceu depois?

— Depois? Nada. Isto é, nada durante um ano. Quando no outro ano chegou a primavera, Peter Pan apareceu para levar Wendy e os meninos á Terra do Nunca. Encontrou-os já bastante crescidos, como era natural. Só ele se conservara do mesmo tamanhinho.

Wendy estava ansiosa de recordar as passadas aventuras, mas Peter Pan fingia não lembrar-se de nada e só falava de novas proezas, que a menina desconhecia. Quando ela se referiu ao Capitão Gancho, Peter Pan fez cara de ponto de interrogação.

— "Quem é esse Gancho? perguntou ele franzindo a testa.

— "Não se recorda? exclamou Wendy, muito admirada. Aquele pirata que você mesmo matou, a bordo da Hiena do Mar!...

— "Eu esqueço sempre os meus inimigos, depois de vence-los e mata-los. Não sei mais quem é esse tal Gancho.

Depois Wendy falou na fada Sininho e Peter Pan veio com a mesma coisa.

— "Fada Sininho? repetiu ele. Que vem a ser isso?

— "Oh, Peter! murmurou Wendy, profundamente chocada. Então não se lembra daquela bola de fogo que nos servia de guia nos vôos e que tinha tanto ciume de mim? Será possivel que você haja esquecido de quem salvou sua vida, Peter?

Peter Pan tentou lembrar-se mas não conseguiu.

— "Ha tantas fadas na Terra do Nunca! disse ele. Com certeza essa tal já morreu. As fadas têm as vidinhas muito curtas. Umas vivem um minuto; outras vivem uma hora; outras, um ano. Não me lembro dessa Sininho...

— Era prosa dele, observou tia Nastacia. Lembrava, sim, mas estava fingindo, para atrapalhar dona Wendy. Esses meninos magicos são levadinhos da carépa.

— E depois, vóvó?

— Wendy, muito desapontada, chegou á casinha e lá dormiu. No dia seguinte, porém, Peter Pan não apareceu, nem durante a semana inteira.

— Tinha esquecido dela, com certeza. E' o cumulo ! murmurou Narizinho, danada com a má memoria de Peter Pan. E depois?

— Wendy ficou sem saber o que pensar.

— "Quem sabe se está doente? advertiu Miguel.

— "Não pode ser, disse a menina. Peter Pan munca fica doente.

Miguel refletiu, refletiu e disse:

— "Quem sabe se ele não existe, Wendy? Quem sabe se não é sonho nosso?

Wendy quasi chorou a essa ideia; por fim voltou para casa, muito triste.

Mais um ano se passou e ao chegar a primavera, nada de Peter Pan aparecer. E assim durante varios anos.

— Por que seria que ele abandonou Wendy?

— Porque ela estava crescendo. Peter Pan só queria saber de gentinha da sua idade e tamanho, mas como as crianças crescem, ele vivia mudando de amigos e esquecia completamente os velhos.

— E depois?

— Passaram-se anos. Wendy cresceu, ficou uma jovem encantadora e casou-se.

— Com quem? berrou Emilia.

— Não importa com quem. Casou-se com um homem e teve uma linda filhinha que recebeu o nome de Lillian. Certo dia de primavera, quando tinha seis anos de idade, estava Lillian sozinha em sua nursery quando Peter Pan apareceu, do mesmo jeitinho que muitos anos atrás havia aparecido para Wendy, e do mesmo tamanhinho.

Foi um acontecimento. Lillian já sabia a historia dele porque a senhora Wendy todas as noites lhe contava um pedaço. Porisso não se assustou. Ao contrario, ergueu-se da cama com muita naturalidade e teve com ele a mesma conversa que já contei no começo deste livro. Por fim Peter Pan convidou Lillian para voar, e Lillian voou e foi parar na Terra do Nunca — e se eu fosse contar tudo que aconteceu dava outro livro ainda maior do que este.

— E depois?

— Depois Lillian voltou e cresceu e casou-se e nunca mais soube de Peter Pan, até que teve uma filhinha que recebeu o nome de Jane. E um belo dia de primavera Jane viu Peter Pan aparecer em sua nursery, tudo igualzinho como havia acontecido com sua mãe e avó. Peter Pan levou-a para a Terra do Nunca e tambem lá tudo se repetiu como dantes. Depois...

— Já sei! berrou Emilia. Depois Jane cresceu e casou com um homem e teve uma filha de nome Margaret, que, etcetera e tal. Mas que significa isso, afinal de contas?

— Significa, disse dona Benta, que Peter Pan é eterno, mas só existe num momento da vida de cada criatura.

— Em que momento?

— No momento em que batemos palmas quando alguem nos pergunta se existem fadas.

— E que momento é esse?

— E' o momento em que somos do tamanhinho dele. Mas depois a idade vem e nos faz crescer — e Peter Pan, então, nunca mais nos procura...


Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.