Poesias (Bernardo Guimarães, 1865)/Poesias diversas/A orgia dos duendes

A ORGIA DOS DUENDES

I.


Meia-noite soou na floresta
No relogio de sino de páo;
E a velhinha, rainha da festa,
Se assentou sobre o grande giráo. 11

Lobishome apanhava os gravetos
E a fogueira no chão acendia,
Revirando os compridos espetos,
Para a cêa de grande folia.

Junto d’elle um vermelho diabo
Que sahíra do antro das phócas,
Pendurado n’um páo pelo rabo,
No borralho torrava pipócas. 12

Taturana, 13 uma brucha amarella,
Resmungando com ar carrancudo,
Se occupava em frigir na panella
Um menino com tripas e tudo.

Getirana 14 com todo o socego
A caldeira da sôpa adubava
Com o sangue de um velho morcego,
Que alli mesmo co’as unhas sangrava.

Mamangava frigia nas banhas
Que tirou do cachaço de um frade,
Adubado com pernas de aranhas,
Fresco lombo de um frei dom abbade.

Vento sul sobiou na combuca, 15
Gallo-preto na cinza espojou;
Por tres vezes zumbio a matruca, 16
No cupim o macuco 17 piou.

E a rainha co’as mãos resequidas
O signal por tres vezes foi dando,
A cohorte das almas perdidas
D’esta sorte ao batuque chamando:

«Vinde, ó filhas do ouco do páo,
Lagartixas do rabo vermelho,
Vinde, vinde tocar merimbáo,
Que hoje é festa de grande apparelho.

Raparigas do monte das cobras,
Que fazeis lá no fundo da brenha?
Do sepulcro trazei-me as abobras,
E do inferno os meus feixes de lenha.

Ide já procurar-me a bandurra, 18
Que me deu minha tia Marselha,
E que aos ventos da noite susurra,
Pendurada no arco da velha.

Onde estás, que inda aqui não te vejo,
Esqueleto gamenho e gentil?
Eu quizera acordar-te c’um beijo
Lá no teu tenebroso covil.

Gallo-prelo da torre da morte,
Que te aninhas em leito de brasas,
Vem agora esquecer tua sorte,
Vem-me em torno arrastar tuas azas.

Sapo-inchado, que moras na cova
Onde a mão do defunto enterrei,
Tu não sabes que hoje é lua nova,
Que é o dia das dansas da lei?

Tu também, ó gentil Crocodilo,
Não deplores o succo das uvas;
Vem beber excellente restilo
Que eu do pranto extrahi das viuvas.

Lobishome, que fazes, meu bem,
Que não vens ao sagrado batuque?
Como tratas com tanto desdem,
Quem a c’rôa te deu de grão duque?»

II.


Mil duendes dos antros sahírão
Batucando e batendo matracas,
E mil bruxas uivando surgirão,
Cavalgando em compridas estacas.

Tres diabos vestidos da rôxo
Se assentárão aos pés da rainha,
E um d’elles, que tinha o pé coxo,
Começou a tocar campainha.

Campainha, que toca, é caveira
Com badalo de casco de burro,
Que no meio da selva agoureira
Vai fazendo medonho susurro.

Capétinhas 19 trepados nos galhos
Com o rabo enrolado no páo,
Uns agitão sonoros chocalhos,
Outros poem-se a tocar marimbáo. 20

Crocodilo roncava no papo
Com ruido de grande fragor;
E na inchada barriga de um sapo
Esqueleto tocava tambor.

Da carcassa de um secco defunto
E das tripas de um velho barão,
De uma bruxa engenhosa o bestunto
Armou logo feroz rabecão.

Assentado nos pés da rainha
Lobishome batia a batuta
Co’ a canella de um frade, que tinha
Inda um pouco de carne corrupta.

Já resôão timbales e rufos,
Ferve a dansa do cateretê; 21
Taturana, batendo os adufos,
Sapatêa cantando — o le ré!

Getirana, bruxinha tarasca,
Arranhando fanhosa bandurra,
Com tremenda embigada descasca
A barriga do velho Caturra.

O Caturra era um sapo papudo
Com dous chifres vermelhos na testa,
E era elle, a despeito de tudo,
O rapaz mais patusco da festa.

Já no meio da roda zurrando
Apparece a mula-sem-cabeça,
Bate palmas a sucia berrando
— Viva, viva a Sra. condessa!...

E dansando em redor da fogueira
Vão gyrando, gyrando sem fim;
Cada qual uma estrophe agoureira
Vão cantando alternados assim:

III.
TATURANA.

Dos prazeres de amor as primicias,
De meu pai entre os braços gozei;
E de amor as extremas delicias
Deu-me um filho, que d’elle gerei.

Mas se minha fraqueza foi tanta,
De um convento fui freira professa;
Onde morte morri de uma santa;
Vejão lá, que tal foi esta peça.

GETIRANA.


Por conselhos de um conego abbade
Dous maridos na cova soquei;

E depois por amores de um frade
Ao supplicio o abbade arrastei.

Os amantes, a quem despojei,
Conduzi das desgraças ao cumulo,
E alguns filhos, por artes que sei,
Me cahírão do ventre no tumulo.

GALLO PRETO.


Como frade de um santo convento
Este gordo toutiço creei;
E de lindas donzellas um cento
No altar da luxuria immolei.

Mas na vida beata de assetico
Mui contricto rezei, jejuei,
Té que um dia de ataque apopletico
Nos abysmos do inferno estourei.

ESQUELETO.


Por fazer aos mortaes crua guerra
Mil fogueiras no mundo ateei;

Quantos vivos queimei sobre a terra,
Já eu mesmo contal-os não sei.

Das severas virtudes monasticas
Dei no emtanto piedosos exemplos;
E por isso cabeças fantasticas
Inda me erguem altares e templos.

MULA-SEM-CABEÇA .


Por um bispo eu morria de amores,
Que a final meus extremos pagou;
Meu marido, fervendo em furores
De ciumes, o bispo matou.

Do consorcio enjoei-me dos laços,
E anciosa quiz vêl-os quebrados,
Meu marido piquei em pedaços,
E depois o comi aos bocados.

Entre galas, velludo e damasco
Eu vivi, bella e nobre condessa;
E por fim entre as mãos do carrasco
Sobre um cepo perdi a cabeça.

CROCODILO.


Eu fui papa; e aos meus inimigos
Para o inferno mandei c’um aceno;
E tambem por servir aos amigos
Ténas hóstias botava veneno.

De princezas crueis e devassas
Fui na terra constante patrono;
Por gozar de seus mimos e graças
Opiei aos maridos sem somno.

Eu na terra vigario de Christo,
Que nas mãos tinha a chave do céo,
Eis que um dia de um golpe imprevisto
Nos infernos cahi de boléo.

LOBISHOME.


Eu fui rei, e aos vassallos fieis
Por chalaça mandava enforcar;
E sabia por modos crueis
As esposas e filhas roubar.

Do meu reino e de minhas cidades
O talento e a virtude enxotei;
De michélas, carrascos e frades,
De meu throno os degráos rodeei.

Com o sangue e suor de meus povos
Diverti-me e criei esta pança,
Para emfim, urros dando e corcovos,
Vir ao demo servir de pitança.

RAINHA.


Já no ventre materno fui boa;
Minha mãi, ao nascer, eu matei;
E a meu pai por herdar-lhe a coroa
Em seu leito co’as mãos esganei.

Um irmão mais idoso que eu,
C’uma pedra amarrada ao pescoço,
Atirado ás occultas morreu
Afogado no fundo de um poço.

Em marido nenhum achei geito;
Ao primeiro, o qual tinha ciumes,

Uma noite co’as colchas do leito
Abafei para sempre os queixumes.

Ao segundo, da torre do paço
Despenhei por me ser desleal;
Ao terceiro por fim n’um abraço
Pelas costas cravei-lhe um punhal.

Entre a turba de meus servidores
Recrutei meus amantes de um dia;
Quem gozava meus regios favores
Nos abysmos do mar se sumia.

No banquete infernal da luxuria
Quantos vasos aos labios chegava,
Satisfeita aos desejos a furia,
Sem piedade depois os quebrava.

Quem pratica proesas tamanhas
Cá não veio por fraca e mesquinha,
E merece por suas façanhas
Inda mesmo entre vós ser rainha.

IV.


Do batuque infernal, que não finda,
Turbilhona o fatal rodopio;
Mais veloz, mais veloz, mais ainda
Ferve a dansa como um corrupio.

Mas eis que no mais quente da festa
Um rebenque 22 estalando se ouvio
Galopando através da floresta
Magro espectro sinistro surgio.

Hediondo esqueleto aos arrancos
Chocalhava nas abas da sella;
Era a Morte, que vinha de tranco
Amontada n’uma egua amarella.

O terrivel rebenque zunindo
A nojenta canalha enxotava;
E á esquerda e á direita zurzindo
Com voz rouca d’esta arte bradava:

«Fóra, fóra! esqueletos poentos,
Lobishomes, e bruxas mirradas!
Para a cova esses ossos nojentos!
Para o inferno essas almas damnadas!»

Um estouro rebenta nas selvas,
Que recendem com cheiro de enchofre;
E na terra por baixo das relvas
Toda a sucia sumio-se de chofre.

V.


E aos primeiros albores do dia
Nem ao menos se vião vestigios
Da nefanda, asquerosa folia,
D’essa noite de horrendos prodigios.

E nos ramos saltavão as aves
Gorgeando canoros queixumes,
E brincavão as auras suaves
Entre as flôres colhendo perfumes.

E na sombra d’aquelle arvoredo,
Que inda ha pouco vio tantos horrores,
Passeando sózinha e sem medo
Linda virgem scismava de amores.

11 Girdo. É uma palavra brasileira, que significa um leito grosseiro de páo, armado entre os ramos das arvores.

12 Pipócas. Grãos de milho torrados ao borralho.

13 Taturana. Especie de lagarta felpuda; ha de diversas côres e figuras; se nos passa pelo corpo deixa na pelle uma irritação caustica assaz incommoda, mas que se desvanece em pouco tempo. E’ um verme vulgarmente conhecido pelo nome de bicho cabelludo.

14 Getirana, ou Getiranaboia. Insecto raríssimo, que se encontra nos sertões do Brasil. Sua fórma é singularissima, e só um desenho poderia dar d’ella uma idea precisa. E’ uma grande mosca de uma até duas pollegadas de comprimento. Tem azas como as da cigarra, porém excedendo muito ao tamanho do corpo, que é oblongo como o da borboleta. Sua cabeça, que é quasi um terço do total do corpo, tem a fórma da cabeça de uma serpente. Tem um ferrão ou tromba que se dobra por baixo do ventre, como um canivete no cabo. Dizem que é cego, e quando desprende o vôo, parte direito como uma setta com o terrível aguilhão estendido como uma baioneta calada, e desgraçado do ente vivo em que toca!... Cahe immediatamente fulminado.

Este lindo e quasi fabuloso insecto existe portanto. Sómente ignora-se se é mesmo destruidor e venenoso como dizem os sertanejos, ou se é apenas uma bella e innocente borboleta, sendo aquella tromba, que tanto pavor espalha, apenas destinada a sugar o alimento necessario, como pretendem outros. Não sei se algum entomologista já terá feito um exame acurado sobre algum individuo d’essa curiosissima especie.

15 Combuca. Cabaça ôca.

16 Mutuca. Grande mosca do matto, que incommoda o gado com suas mordeduras.

17 Macuco. Grande ave das florestas, que pia de noite.

18 Bandurra. Viola pequena.

19 Capetinha. Synonymo de diabretes ou demonios.

20 Marimbáo. Pequeno instrumento de ferro, que collocado entre os dentes produz certas vibrações monotonas; é mais um brinquedo de crianças do que verdadeiro instrumento musical.

21 Catereté, batuque. Dansas populares do interior do Brasil.

22 Rebenque. Chicote, guasca, latego.