No fim de uma ausência de quatro meses, voltou Daniel ao Rio de Janeiro.

A viagem foi uma verdadeira restauração. Daniel achou-se como sempre fora, tendo perdido o menor vestígio do parêntese que se dera em sua existência.

A falar verdade, Daniel achava agora que fora ridículo durante os dias em que se sentiu apaixonado por Augusta. O caráter indiferente do rapaz, por um momento agitado, voltou a ser o que era.

Entrou em casa de noite, e não tendo prevenido a ninguém, ninguém foi esperá-lo à chegada.

Ao entrar em casa, não pôde deixar de olhar para a casa de Augusta. Ignorava se ainda ali moravam ou se haviam partido para a província. A casa estava silenciosa.

O criado, que o recebeu, deu-lhe notícia de que a família de Augusta ainda morava na mesma casa.

— Mas quem te perguntou por isso? disse Daniel.

— Eu lhe digo, meu amo; é que, de quando em quando, mandavam saber de lá quando é que meu amo chegava.

— Sim?

— É verdade. E há coisa de três dias recebi uma carta com ordem de entregar-lha apenas chegasse.

— Uma carta?

— Sim, senhor; está no seu gabinete.

— Deixa-me ir descalçar as botas.

Noutro tempo, Daniel teria ido ver a carta primeiro; agora, preferia descalçar as botas. Sirva isto de termômetro; quando um homem procura antes de tudo ler uma carta, ama; quando descalça as bota antes, já não ama. É receita que lhes dou de graça.

Descalçadas as botas, Daniel foi ler a carta.

Era de Augusta.

Dizia assim:

“Apenas chegar, peço-lhe que venha à nossa casa. Desejo falar-lhe.

Augusta”.

— Olé! disse Daniel em voz alta; dar-se-á caso que a menina mudasse de opinião? Que diabo me quererá ela? Se vem falar de amores, estou disposto a não admitir conversa neste ponto; é capítulo acabado. Amanhã veremos a coisa.

E reparando que o criado ouvira este solilóquio, voltou-se para ele rindo:

— João, ouviste o que eu disse agora?

— Eu só ouço o que meu amo quiser; respondeu o criado sorrindo maliciosamente.

— Ainda bem. Dá-me de comer.

Daniel comeu tranqüilamente como um homem que chega de uma viagem de recreio.

— Veio alguém procurar-me?

— Veio o Sr. Valadares duas vezes. Parece que tem graves acontecimentos para comunicar-lhe.

— A mim?

— Disse-me isto.

— Vai dizer-lhe que eu voltei e o espero hoje mesmo.

O criado saiu.

Daniel releu o bilhete de Augusta, e não podia furtar-se ao espanto que lhe causava a sem cerimônia da moça, escrevendo e assinando um bilhete que podia comprometê-la.

— Tudo é natural naquele gênio excêntrico, dizia ele consigo.

Cerca de uma hora depois, chegou Valadares.

Depois de um apertado abraço de boas-vindas, Valadares sentou-se e pediu a Daniel a sua mais profunda atenção.

— Estava ansioso por ver-te, disse ele.

— Aqui estou. Tua mulher?

— Não me fales dela.

— Por quê?

— Quero propor ação de divórcio.

— Eu já contava com isso, disse Daniel tranqüilamente. Dizem que dois gênios iguais não fazem liga; parece que o adágio é certo, visto que vocês ambos eram o tipo da frivolidade...

— Daniel!

— Desculpa a franqueza; é um direito de amigo. Até hoje não descobri outro mérito num amigo senão o de dizer coisas desagradáveis ao outro amigo, sob pretexto de que a franqueza é um dever do coração. Portanto, sustento que vocês dois não se podiam ligar, pois eram e são dois espíritos frívolos.

— E tu, queres passar por um homem grave?

— Deus me defenda! Eu não sou grave, nem frívolo, sou indiferente. São dois extremos. Eu estou entre estes dois pólos do espírito humano. O caráter é como a gravata; uns usam por gravata uma fitinha preta, são os frívolos; outros um lenço de dois palmos de altura, são os graves. A primeira constipa, a segunda sufoca; eu uso gravata regular.

Valadares soltou do peito um ruidoso suspiro.

— Bem; esquece os meus defeitos para atender somente aos meus infortúnios... Não posso viver com Amélia, devo separar-me a todo custo.

— É resolução assentada?

— É.

— Então o meu conselho é inútil.

— Nem eu te peço conselho. Quero simplesmente que me defendas quando me acusarem.

— Isso não!

— Por quê?

— Não quero intervir em negócios de família.

A resposta de Daniel foi tão fria que Valadares não achou objeção razoável.

— É a tua última palavra? perguntou ele.

— A última.

Seguiu-se a isto um longo silêncio.

Valadares levantou-se, deu alguns passos, acendeu um charuto enquanto Daniel punha em ordem alguns papéis.

— Como te foste de viagem? perguntou Valadares.

— Bem.

— E quando eu penso que podia ter ido contigo... A propósito, continuou Valadares, que me querias tu dizer na carta que me mandaste e que eu não entendi?

— Ah! queria dizer que não podia esperar.

— Mas há certas palavras...

— Isso não vale a pena. Tua mulher leu a carta?

— Leu. Ah! se eu tivesse ido contigo! Mas aquilo por lá é muito aborrecido?

— Conforme, disse Daniel; para quem gosta da corte e da Rua do Ouvidor, deve ser aborrecido; eu acomodo-me bem em toda a parte.

— É verdade que se eu fosse perdia muita coisa.

— Sim?

— Coisas do arco-da-velha. Sabes que temos gente nova?

— Onde?

— No Alcazar. A rapaziada agora anda muito animada. Eu estreei ontem este paletó num grande jantar na Tijuca... jantar de Citera. Como achas o paletó?

— Acho bom.

— Manda fazer um, porque a moda é isto agora. Tenho pena de não ter trazido os figurinos; os cortes das calças são excelentes. Estas que eu tenho já passaram da moda; trouxe-as, porque vim depressa e é noite. E os padrões?

Valadares continuou neste gosto até que bateram dez horas. Daniel alegou que estava cansado e precisava dormir. Valadares saiu, prometendo voltar no dia seguinte, a fim de ver se obtinha uma resposta dele.

— Sobre o divórcio ou sobre as calças?

— Uma e outra coisa, disse Valadares descendo a escada.