Um dos amigos morava na Rua dos Ciganos, que era, como sabem, o nome antigo da atual Rua da Constituição. Quis a sua fortuna que em casa desse encontrasse o outro amigo, e que uma só narração bastasse para unir as lágrimas deles às suas. Lágrimas é figura.
Ernesto Guimarães chamava-se o dono da casa; o segundo acudia ao nome de Martins. Tinham ambos pouco mais ou menos a mesma idade, trinta anos. Martins era baixinho, cheio de corpo, buliçoso e alegre. Era menos alegre e menos buliçoso Ernesto Guimarães; media um palmo mais que o outro, e era além disso um bonito rapaz, coisa que se não podia dizer do Martins, e muito mais naturalmente elegante do que este.
Luís Fonseca achou-os a folhear um álbum de dançarinas de Paris, lembrança que o Martins trouxera da sua viagem à Europa alguns meses antes. Com o louvável desejo de que Ernesto Guimarães admirasse os portentos coreográficos da grande cidade, o alegre viajante saíra de casa com o álbum e foi dá-lo de presente ao amigo. A chegada de Luís Fonseca foi saudada com estrepitosas manifestações, que ficaram no meio, ao verem os dois a cara transtornada do filho do desembargador.
— Que temos de novo? perguntou Ernesto.
— Há arenga no beco? inquiriu Martins.
— Estás arrufado com a Lúcia, aposto.
— Ou perdeste a carteira.
Luís Fonseca deu um grande golpe com o punho cerrado em cima da mesa, e esta resposta explicou aos dois amigos que o assunto era mais sério do que nenhum dos que eles supunham, motivo pelo qual Ernesto Guimarães fechou o álbum, Martins tirou o charuto da boca, e ambos assumiram o ar interrogativo que o caso pedia e a sua curiosidade lhes indicava.
Luís explicou em poucas palavras a situação. A impressão dos dois amigos foi diferente; Martins achou que o caso era para rir e que o desembargador apenas merecia compaixão.
— Teu pai, disse ele, está caduco... ou doido.
Ernesto Guimarães estava de acordo em que a exigência do desembargador era pelo menos um despropósito, mas nem o achava doido ou caduco, nem via que Luís pudesse facilmente esquivar-se ao casamento. O bacharel teve ímpetos de pegar o chapéu ao ouvir semelhante opinião. Ernesto insistiu:
— Não vejo que possas fugir ao casamento, se ele insistir, salvo se rasgadamente lhe desobedeceres, o que me não parece bom.
— Parece-te bom que me case contra a vontade, só para obedecer a um capricho?
— É um sacrifício, convenho.
— Uma impossibilidade.
— Eu assim penso, confirmou Martins.
— Tu estás ainda debaixo da impressão da conversa com teu pai. Achas que o casamento é detestável, e eu penso do mesmo modo, mas não vejo praticamente um meio de lhe fugir. Há certamente um; é recusares; mas teu pai com certeza põe-te na rua, e eu não vejo que haja muita gente disposta a perder as suas coisas, só com o fim de te encher as algibeiras. É sacrifício de que não há exemplo. Além de que, seria uma coisa muito feia e que te faria mal, o saber-se que teu pai te expulsara de casa, ainda mesmo não tendo razão.
Estas palavras deixaram de boca aberta os dois ouvintes; a substância delas e o modo com que foram ditas, tudo era novo para eles, que até então conheciam em Ernesto Guimarães um rapaz como eles, e nunca esperavam ouvir um tal sermão de lágrimas. Martins aventurou a idéia de que Ernesto estava peitado pelo desembargador, e Luís achou a idéia tão alegre que não pôde deixar de rir.
Até às nove horas da noite foi o casamento de Luís assunto da conversa entre os três amigos, que àquela hora foram dar uma vista d’olhos ao Alcazar. Uma pessoa, de quem já se falou neste capítulo, deu-lhes a honra de cear com eles, e afirma um entregador do Jornal do Comércio que os viu sair do hotel às três horas e meia da noite. Valha a verdade: Ernesto entrou em casa às quatro horas.
— Vamos lá, dizia ele consigo na ocasião em que abria a porta, é preciso salvar o Luís. Hei de achar algum meio que salve tudo, pensarei nisto amanhã.