Os meus primeiros conhecimentos foram-se paulatinamente afastando de mim. Laje da Silva, desde que me vira de botas rotas e esfomeado, passara a cumprimentar-me friamente, superiormente; Leiva tratava-me bem ainda, mas marcando distância, desde que se fizera repórter; e o próprio Michaelowsky esquecera-se da maneira que nos conhecêramos e tratava-me com a brandura que usava com todos os inferiores. Só o Plínio Gravata, mais por sistema do que por qualquer outra coisa, continuava a dispensar-me a consideração de igual. Fora ele que me explicara a questão do empréstimo da Prefeitura. Era verdade que o título não era bom; mas a questão não girava só em torno disto. O pomo de discórdia residia na comissão do lançamento do empréstimo, e sendo esta avultada, perto de mil e tantos contos, permitia gordas gorjetas aos jornalistas e políticos. O governo queria o corretor Machado, mas organizara-se um sindicato no intuito de obtê-lo para o banqueiro Rodrigues. Aires d’Ávila, ocultamente, fazia parte do partido de Rodrigues e o dr. Ricardo, que já de há muito antipatizava com o Machado, foi por ele convencido que devia combater com todas as forças a operação projetada. Raro era o dia em que na folha não saíssem algumas linhas tendentes a contrariar o lançamento do grande empréstimo interno. Todos colaboraram para esse fim. Aires d’Ávila, sempre na estacada, desovava argumentos no seu artigo diário, escrito num estilo de exercício de classe; Michaelowsky escrevia os soltos, sueltos, curtos, breves, mas fortes, cheios de injúrias, atrevidos; Floc, nas suas esforçadas crônicas literárias ou teatrais, dava alfinetadas; mas quem ia desmoralizando a operação era Losque com as quadrinhas satíricas das "Brotoejas". A cidade inteira sabia-as de cor e pelos bondes, nas confeitarias, nos cafés, nas escolas, nas estancas, nas casas mal afamadas, por qualquer coisa se dizia o estribilho com que elas acabavam: - "e dinheiro não virá". Se alguém perdia no jogo e era jocoso, ao apostar segunda vez, dizia: "e dinheiro não virá". Em conversa de família, se qualquer pessoa queria referir-se ao gorado casamento rico de um desembargador, que partira para Paris à caça de uma herdeira, comentava: ele vai e... "o dinheiro não virá". Era bastante que em qualquer momento, fosse como fosse, se encaixasse o estribilho, para se obter um franco sucesso de riso.

A atitude do governo era curiosa. Às vezes ostentava-se forte, mandava dizer pelos seus jornalistas que o lançaria pelo corretor que entendesse. Os artigos rompiam, mostrando as vantagens da operação, mas Loberant, ou alguém por ele, atirava no dia seguinte um artigo descompassado, pesado de descomposturas, e os adversários esfriavam. Neles não se raciocinava, não se ia adiante dos argumentos dos adversários. Afirmava-se e insultava-se o contendor com alguns palavrões do calão do Quinhentos ou de Seiscentos. E essas palavras ressuscitadas eram de efeito seguro. A multidão guardava-as de cor, procurando-lhes a significação e o sentido.

Nos "apedidos" do Jornal do Comércio, era interessante o combate. Havia artigos sisudos, cheios de citações, Léon Say, Leroy-Beaulieu, versos de Racine; havia epigramas, ligeiros e ágeis que nem um torpedeiro, e venenosos que nem uma cascavel; o mais notável, porém, eram as verrinas, alusões a vícios e maus hábitos dos adversários. Causava pasmo o esforço de imaginação despendido em se obter circunlóquios bastante claros para serem compreendidos no seu verdadeiro sentido por toda a gente e bastante velados para não haver impedimento na sua publicação. O diretor era alvejado com encarniçamento; não se incomodava, mas nos artigos fingia-se ferido, desgostoso. Aires d’Ávila recebia também um bom quinhão. Veio até publicado um epitáfio seu, em verso, terrivelmente sarcástico, que era atribuído a um poeta famoso pela perfeição dos seus versos, pelo seu humor boêmio e veia satírica. Dizia assim:

P.R.

(A.A.)

Quando ele se viu sozinho
Da cova na escuridão,
Surripiou de mansinho
Os bordados do caixão

Apesar disso tudo, ambos se mantinham inalteráveis e calmos. Aquilo era como um torneio de xadrez e eles o estavam jogando calmamente a fumar um charuto. A população é que vivia inquieta, ora pendendo para aqui, ora para ali, mas sempre tendo em vista a opinião d’O Globo. Havia, porém, nesse torneio um prêmio, um grande prêmio, de mil e tantos contos, dos quais algumas dezenas iriam parar às algibeiras de Aires d’Ávila e de Laje da Silva, cujas visitas ao ventrudo jornalista eram assíduas e prolongadas. O antigo padeiro de Itaporanga continuava no seu semimistério, mas sempre solícito, bem relacionado, procurando um e outro. Ultimamente explorava uma casa de divertimentos na Lapa, "Folies Bergères", onde se dizia haver jogo oculto. Não havia estréia de uma cantora que não mandasse convites individuais para o pessoal de todos os jornais. Ele sabia os nomes de um por um, desde a redação até à administração, passando pelas oficinas, revisão e expedição.

A batalha, entretanto, não se decidia. As duas hostes em luta não ganhavam terreno. Um dia era da gente do prefeito; outro dia, era dos adversários. Vinha um assassinato, um incêndio, havia uma trégua. O governo temia um fracasso e esperava. Surgiu, porém, a questão dos sapatos obrigatórios que precipitou os acontecimentos. É de pouco tempo esse motim e muitos dos meus leitores ainda se recordam perfeitamente os acontecimentos. Escrevendo agora estas páginas, eu tenho escrúpulos. Parece-me que vou acusar o dr. Loberant de ter movido essa sangrenta arruaça e ser culpado da morte de algumas dezenas de cidadãos nas barricadas improvisadas. Não é o meu fito esse, pois estou bem certo de que ele, como ninguém, não é capaz de medir e avaliar as múltiplas reações que as nossas palavras podem operar nos outros quando transmitidas. Seria ignóbil que eu o quisesse acusar. Ele foi, por assim dizer, um benfeitor meu e todos menos eu podem fazê-lo e têm esse direito que me escapa. Contudo, embora possam ser tomadas nesse sentido as minhas palavras dirão fielmente o que vi e o que senti.

Nascera a questão dos sapatos obrigatórios de um projeto do Conselho Municipal, que foi aprovado e sancionado, determinando que todos os transeuntes da cidade, todos que saíssem à rua seriam obrigados a vir calçados. Nós passávamos então por uma dessas crises de elegância, que, de quando em quando, nos visita. Estávamos fatigados da nossa mediania, do nosso relaxamento; a visão de Buenos Aires, muito limpa, catita, elegante, provocava-nos e enchia-nos de loucos desejos de igualá-la. Havia nisso uma grande questão de amor-próprio nacional e um estulto desejo de não permitir que os estrangeiros, ao voltarem, enchessem de críticas a nossa cidade e a nossa civilização. Nós invejávamos Buenos Aires imbecilmente. Era como se um literato tivesse inveja dos carros e dos cavalos de um banqueiro. Era o argumento apresentado logo contra os adversários das leis sumptuárias que apareceram pelo tempo: "A Argentina não nos devia vencer; o Rio de Janeiro não podia continuar a ser uma estação de carvão, enquanto Buenos Aires era uma verdadeira capital européia. Como é que não tínhamos largas avenidas, passeios de carruagens, hotéis de casaca, clubes de jogo?"

Laje da Silva, farejando o que continha de negociatas nos melhoramentos em projeto, propugnava-os com ardor. Nas suas conversas na redação constantemente dizia:

— Que são dez ou vinte mil contos que o estado gaste! Em menos de cinco anos, só com as visitas dos estrangeiros, esse capital é recuperado... Há cidade no mundo com tantas belezas naturais como esta? Qual!

Aires d’Ávila chegou mesmo a escrever um artigo, mostrando a necessidade de ruas largas para diminuir a prostituição e o crime e desenvolver a inteligência nacional.

E os da frente, os cinco mil de cima, esforçavam-se por obter as medidas legislativas favoráveis à transformação da cidade e ao enriquecimento dos patrimônios respectivos com indenizações fabulosas e especulações sobre terrenos. Os Haussmanns pululavam. Projetavam-se avenidas; abriam-se nas plantas squares, delineavam-se palácios, e, como complemento, queriam também uma população catita, limpinha, elegante: cocheiros irrepreensíveis, engraxates de libré, criadas louras, de olhos azuis, com o uniforme como se viam nos jornais de moda da Inglaterra. Foi esse estado de espírito que ditou o famoso projeto dos sapatos.

Ao ser apresentado, ninguém lhe deu importância, mesmo porque dias antes houvera um crime sensacional que prolongara a atenção da cidade.

Eu tinha feito o serviço de dia e ia sair. Seriam cinco para as seis horas, quando o Lemos, repórter de polícia, entrou ofegante e deslumbrado. Chegou e falou o secretário, nervoso de contentamento, com a palavra entrecortada, oprimido de felicidade:

— Um crime! Um grande crime!

— Onde?

— Em Santa Cruz, nos campos de S. Marcos... Uma mulher e um homem foram encontrados mortos a facadas e decapitados... Vestiam com luxo... Parecem pessoas de tratamento... Um mistério!

Todos os circunstantes ouviram estuporados a breve narração do repórter. Depois de um curto silêncio, choveram as perguntas. Lemos nada sabia; recebera a notícia de Teixeira que estivera na polícia, onde pouco mais sabiam. A notícia viera de Santa Cruz pelo telégrafo... Leporace, que raramente saía de sua natureza de celentério, pôs-se nervoso e começou a dar as providências, a regular o caso:

— Já um boletim... Já!

E logo rapidamente, Adelermo começou a traçar em letras garrafais a notícia que o Lemos trouxera. Eu fui pregá-lo à porta; da sacada, Leporace avaliava o efeito. O primeiro curioso que passou, parou e quedou-se a ler. Vieram outros e em breve uma multidão estacionava em frente do jornal. A notícia espalhou-se rapidamente, com uma rapidez de telégrafo, com essa rapidez peculiar às notícias sensacionais que nas grandes cidades se transmitem de homem a homem quase com a velocidade espantosa da eletricidade. O doutor Loberant entrou, atravessando a custo por entre a multidão. Tinha ouvido qualquer coisa e correu ao jornal. Que houve? perguntou. Contaram-lhe. A sua fisionomia abriu-se risonha, sorridente e feliz. Ia vender mais mil ou dois mil exemplares. Chegou à janela e viu a multidão crescer sempre. Veio até à sala da redação e perguntou com império:

— Quem está fazendo a "cabeça"?

"Cabeça" se chama nos jornais às considerações que precedem uma notícia. Feita com a moral de Simão de Nântua e a leitura dos folhetins policiais, a "cabeça" é a pedra de toque da inteligência dos pequenos repórteres e dos redatores anônimos. No Despacho havia um especialista nesse gênero jornalístico que era tido por gênio.

— Não há como o Matoso! Que felicidade! Que rapidez! Escreve trinta tiras em uma hora! diziam os colegas.

Isto lhe valia uma fama e um conceito, entre os seus, superior à que o Conselheiro Rui Barbosa goza em todo o Brasil. É preciso saber-se que as tiras no jornal são menores e levam menos palavras que as redigidas por qualquer pessoa não afeita ao ofício. São escritas com grandes intervalos entre as linhas e grandes espaços entre as palavras, para facilitar a composição.

Demais eram as banalidades, os conceitos familiares sobre o crime e os criminosos que ele desenvolvia com a convicção de quem estivesse fazendo um estudo profundamente psicológico e social. Oh! A vaidade dos desconhecidos da imprensa é imensa! Todos eles se julgam com funções excepcionais, proprietários da arte de escrever, acima de todo o mundo. Não reconhecem que são como um empregado qualquer, funcionando automaticamente, burocraticamente, e que uma notícia é feita com chavões, chavões tão evidentes como os da redação oficial. Quase todos os repórteres e burocratas dos jornais desprezam a literatura e os literatos. Não os grandes nomes vitoriosos que ele veneram e cumulam de elogios; mas os pequenos, os que principiam. Estranha ignorância de quem, por intermédio dos artigos dos que sabem, copia os processos dos romancistas, as frases dos poetas e deturpa os conceitos dos historiadores, imitando-lhes o estilo com uma habilidade simiesca...

Leporace, apanhado em falta, respondeu timidamente, ao diretor:

— Ninguém.

— Pois já deviam ter pensado nisso... Vá, "seu" Adelermo, faça a "cabeça"; e o senhor, "seu" Lemos, já para Santa Cruz!

— Só há trem daqui a uma hora e com certeza não apanho o que volta de lá às sete e quarenta e cinco...

— Não faz mal. Vá, durma lá, telegrafe... Passe na caixa e diga ao Pranzini que lhe dê duzentos mil-réis...

O diretor retirou-se e Adelermo começou a escrever.

— Qual será o título? fez ele suspendendo a pena.

— "Crime no Pampa", gritou o Oliveira.

Oliveira, Carlos Oliveira, era da Bahia. Maneiroso, mesureiro, captara a amizade e o compadresco do diretor, de Aires d’Ávila e Losque; fizera-se grande influência no jornal, no qual já colocara dois redatores, Adelermo e Losque, e muitos repórteres. Ganhava como redator importante; mas o seu serviço era trazer notícias da Estrada de Ferro e dos Telégrafos. Na redação, limitava-se a escrever: "Foram concedidos passes aos telegrafistas F. e S., a linha de Vista Alegre, 9o distrito, está interrompida, devido, etc."; na rua, porém, entre os auxiliares de escrita e os diretores, fazia constar que escrevia artigos e crônicas. Vendia a sua pomada.

Adelermo Caxias não compreendeu bem o título de Oliveira e perguntou:

— Por que pampa?

— Pampa, não é campo?

Caxias, apesar da justificativa, não o quis e perguntou a outro:

— Qual deve ser, Floc?

— "Bucolismo e tragédia"?

— Qual! É erudito...

— "Ciúme e crime".

— Por que ciúme?

Por fim, chegou Leporace e lembrou um título rocambolesco, sonoramente popular; "Descampado da morte". Boa idéia! - gritaram todos; e Adelermo pôs-se a escrever.

A calma voltou um instante à redação, mas foi logo interrompida pelo tilintar do telefone. Lemos, que estava na polícia, mandava dizer que se tinha encontrado um chapéu de palha, quase junto aos cadáveres. A multidão, em frente ao jornal, aumentava sempre. Muitos subiam pedindo informações. A curiosidade era geral; o crime impressionara a população. Por essa estranha e misteriosa faculdade das multidões, aquele caso, vulgar um mês antes ou depois, naquele dia tomou a proporção de um acontecimento, de um fato pouco comum. Para atender à impaciência da massa, constantemente se telefonava para a polícia. A resposta era a mesma; não havia notícias. O diretor, por detrás da veneziana semicerrada, espreitava o poviléu embaixo. Os repórteres chegaram trazendo para a redação a ansiedade das ruas, a emoção dos cafés - toda a imprevista vibração da cidade em face daquele fato de polícia quase banal.

Cá do outro lado da sala de redação, sentíamos que o "doutor" ouvia todas aquelas notícias com interesse. Havia estalidos na cadeira, tênues ruídos de movimentos de atenção. Houve um momento em que não se conteve. Veio até a sala geral, inquirindo este, perguntando àquele; e certo da superexcitação do público, da extensão que a notícia tinha alcançado na cidade, da intensa curiosidade que dominava toda a gente e ainda mais que o Jornal do Brasil punha, de quando em quando, um boletim - determinou que o Adelermo inventasse qualquer coisa, indícios, depoimentos, quaisquer informações. E fez isso em altas vozes, congestionando, meio zangado e meio contente, expectorando injúrias contra o rival.

Adelermo era a imaginação do jornal. Nascera no Maranhão e escrevia regularmente. Apesar de nunca se ter feito notar por uma associação mais original de idéias, no jornal era imaginoso porque nascera no Norte e tinha uma boa dose de sangue negro nas veias. As generalizações dos jornais são infalíveis...

Mas... Adelermo era a imaginação do jornal, e em seus ombros recaía todo o peso da necessidade de informações imediatas ao público quando os documentos faltavam ou eram omissos.

Se havia um atentado anarquista ou um terremoto na Europa e o telegrama era por demais conciso, Adelermo tinha o encargo de desenvolvê-lo, de explicá-lo, de reconstruir a cena para o gosto público. Às vezes, pediam-se-lhe mais detalhes; o diretor queria a descrição do complot, a cena da "sorte", à lôbrega luz de uma mansarda. Adelermo era obediente e fazia. Intimamente desgostava-se com aquele papel de mentiroso; mas temia ser despedido, posto na rua. Era esse o grande terror de todos. Não eram os ordenados, não era a miséria que os apavorava; temiam não encontrar outro lugar nos jornais e perderem por isso a importância, a honra suprema de pertencer ao jornalismo. Eles não valiam por si; o jornal é que lhes dava brilho.

Nas invenções de Adelermo, quase sempre se passavam coisas fantásticas e curiosas.

Havia então complicações de topografia, ruas metidas umas nas outras; mas o terremoto, que a potente imaginação de Adelermo levava às grandes cidades da Europa, passava completamente desapercebido ao público e ninguém, dias depois, se lembrava de cotejar as notícias dadas pelo O Globo com as que vinham nos jornais da Europa.

Caxias não se deteve; pôs-se logo a escrever. Ele não conhecia a região; nunca passara de São Francisco Xavier e fora uma vez acompanhar um figurão argentino a Belo Horizonte em serviço de reportagem, num rápido. Para os lados de Santa Cruz, nunca tinha ido, não sabia coisa alguma da situação da localidade, da sua posição relativa às outras estações. Tendo tido notícia que os empregados da Estrada não se lembravam de ter visto desembarcar na estação um par nas condições do assassinado, concluiu que o casal tinha ido a pé até Cascadura - estação que lhe parecia ser muito próxima do tradicional curato.

O boletim ia ser posto, quando alguém mais bem informado objetou:

— Cascadura! Não é possível, Adelermo? Fica léguas distante de Santa Cruz.

— Então de onde podia ser? Eles foram a pé da estação mais próxima... Isso não há dúvida! Qual a estação mais próxima que conheces?

O outro fez um grande esforço de memória, esteve uns instantes a pensar, e disse por fim:

— Há Realengo... Depois... Depois... Campo Grande! Devia ser Campo Grande!

Imediatamente, sem que de todo ficasse apagada a palavra Cascadura, Caxias emendou e o novo boletim foi pregado.

A rua encheu-se ainda mais. Havia gente de toda a sorte: velhos, moços, burgueses, operários, senhoras - gente de todas as idades e condições. Os que ficavam mais distante, no passeio fronteiro, para ver melhor, punham-se nos bicos dos pés, cheios de ansiedade. Quando subi a escada, voltei-me um instante e vi aquela centena de pessoas, com as pálpebras arregaladas, o pescoço erguido, esforçando-se por ler aquele carapetão formidável, forjicado naquela fábrica de carapetões que se chama o jornal.

A redação recebera uma visita. Era a Viscondessa de Varennes, que conversava com Floc. Os dois estavam no período de namoro; ela, retirando todo o proveito, em notícias, péssimos sonetos publicados na primeira página; ele, oleoso, gastando os seus melhores mimos e alguns mil-réis de sua algibeira econômica.

— Oh! Sr. dr. Cunha! dizia ela. Que coisa! Como isto está! Que malvadez! Eu vinha rindo, quando li... Fiquei apavorada!... Não sei. Meu Deus! Quando vejo isso até tenho medo de viver...

Leporace passou e deitou sobre a poetisa um olhar cheio de desejos. Os enormes olhos de boi da poetisa voltaram um instante para o Secretário que se desfez em cortesias. A Viscondessa estava em relações com todos os redatores e repórteres e todos eles esperavam cedo ou tarde tê-la uma noite nos braços.

Com a sua finura de profissional do Amor, ela bem percebia a fome que todos aqueles homens tinham do seu corpo fatigado. Não desanimava a nenhum, recebia homenagens, sorria com o seu longo sorriso, contraindo as grandes massas carminadas, abanava-se um instante com o leque, ajeitava a saia de sêda de modo a lhe desenhar melhor as pernas e pedia favores: uma referência, uma notícia, a publicação de um soneto, de um conto. Assim se valorizava. Os únicos da gazeta que não a queriam absolutamente, eram o diretor e Michaelowsky. Este quando a ouviu tão temerosa, prorrompeu bruscamente com a sua voz metálica.

— Ora, minha senhora! Nós todos somos criminosos... A senhora também o é!

— Eu, dr.!

— Sim! A senhora para viver tirou a vida de muita gente; para ter esse vestido, esses laçarotes, tira a de muitos outros... A nossa vida só se desenvolve com grandes violências sobre as coisas, sobre os animais e sobre os semelhantes...

— Mas dessas não o sabemos!

— Talvez não seja tanto assim...

A viscondessa estendeu a mão ao viçoso Floc, abarcou com o olhar a sala toda e saiu arrastando o corpo pequeno e pesado.

Caxias continuava no seu serviço dos boletins periódicos. Alguns jornais da tarde deram uma segunda edição. O Globo, porém, com os seus cartazes contínuos, distraía os compradores. Nos portais, já não havia mais lugar. Os boletins iam de cima a baixo; alguns já cobriam os outros. O povo continuava aglomerado. Escurecia. Houve alguém que acendeu um fósforo para ler melhor. O doutor Ricardo, que viera de jantar, vendo o gesto do popular, mandou que o foco elétrico da fachada fosse aceso.

Nos outros jornais, que tinham também afixado boletins, logo o imitaram; e a rua do Ouvidor, àquela hora da tarde excepcionalmente transitada e iluminada, surgiu como num dia de festa. Todo o jornal convergia para o crime. Mandou-se retirar uma grande parte da matéria, sair o lindo artigo da festejada colaboradora Pilar de Giralda, uma velha senhora das salas burguesas de Botafogo e Petrópolis, que dera em escrever, depois de avó, uns contos colegialmente eróticos ou uns artigos com pretensões a propagar a emancipação da mulher e o divórcio. Saiu também o folhetim do jovem Deodoro Ramalho, um discípulo de Veiga Filho, autor de uns contos pastosos, pejados de frases redondas, redondinhas, que escapavam quase diariamente pelas colunas d’O Globo, com a mole resistência da massa de tinta que sai de uma bisnaga.

O seu folhetim tinha sempre pretensão à graça, a coisa ligeira e leve, sem deixar de ser intelectual; além do folhetim semanal, escrevia também um conto aos domingos, histórias juvenis de namoros burgueses e casamentos de bacharéis e doutores. Era de uma fecundidade de parvo. Não havia tolice que lhe passasse pela cabeça, que não escrevesse. Mas tinha admiradores: sua noiva, os futuros sogros, alguns colegas de escola e meia dúzia de meninas da rua dos Voluntários.

O dr. Ricardo respeitava a sua literatura por sabê-lo com distinção em Matéria Médica, no que ele encontrava grande competência para o valor literário de suas produções. Demais, as suas relações, o rigor colegial da sua vida, os seus olhos azuis, tinham-lhe valido a respeitosa consideração de todos os repórteres, redatores e colaboradores.

Raul Gusmão, com aquela covardia moral que o caracterizava, logo que o soube tão relacionado nas Laranjeiras, com influência entre os colegas, falando familiarmente com deputados e senadores - gente influente para a glória e tudo o mais - começou a elogiá-lo pelo seu jornal. O Binóculo não cessava de acusar-lhe a passagem pela rua do Ouvidor: o doutor Deodoro Ramalho, o fino conteur de O Globo. E ele, por sua vez, ecoava no jornal de Loberant: "O nosso amigo Florêncio Silva, cujo temperamento tumultuário foi um belo espetáculo para a geração atual, acaba, etc., etc."

E assim se foi fazendo uma celebridade, homem notável, admirado nos salões e houve (ele disse uma vez na redação) uma moça que o achou de qualquer modo parecido com o Pierre Weber, no estilo e na fisionomia. Ele perguntou então ao Floc quem era esse tal Weber.

— Oh! Não conheces?! É uma celebridade ultraparisiense, "parisianíssima"... Só lá pode haver destas... Nada de calhamaços, de coisas pantafaçudas e solenes; ligeirezas, garleseries, um quase tudo e um quase nada, como disse alguém... É dos cinco reis do espírito francês atual: ele, o Tristan Bernard, o Courteline, o Alphonse Allais... Nunca leste - Vous m’en direz tant - dele e do Tristan Bernard?

— Nunca.

— Pois é preciso... Vocês levam-se voltados para o calhamaço, têm a mania livresca, e não conhecem a verdadeira literatura francesa... É o papá Flaubert e o vovô Hugo...

E, durante todo o seu curso, o jovem Deodoro Ramalho desovou contos, artigos, folhetins e tirou dezenas de distinções na Faculdade de Medicina. Na escola, as distinções vinham-lhe do seu prestígio de jornalista; no jornal, a sua superioridade partia das suas distinções na escola.

No dia do crime, porém, o diretor não poupou o seu folhetim engraçadíssimo. Ordenou que não saísse, pois queria página e meia sobre o crime; que se inventasse, que se dessem os menores pormenores, as suspeitas mais desarrozoadas; que se fizesse o histórico de Santa Cruz e da E. de Ferro Central do Brasil. Fosse com que fosse, ele queria página e meia e vinte e cinco mil exemplares para venda avulsa.

Dividido o serviço, cada um dos repórteres e redatores ficou encarregado de uma parte das muitas em que se dividiu a notícia do crime sensacional. A primeira página, a página sagrada dos conselhos sisudos do austero Aires d’Ávila, da alta literatura do Veiga Filho, do ciciar amoroso da velha Pilar, foi literalmente cheia com o histórico de Santa Cruz (coluna e meia), a "cabeça" de Caxias, os retratos de D. João VI, da rainha Dona Carlota, de D. Pedro I, de José Bonifácio, do Visconde de Cairu. Os cadáveres vinham descritos com muita minúcia e larga fantasia e não se esqueceram de informar também que junto a eles havia fragmentos de "grés", granito em decomposição, segundo a petrografia jornalística.

Os dicionários, os manuais, os indicadores de toda a sorte, andavam de mão em mão. A redação trabalhava sofregamente, quando veio interrompê-la o jovem doutor Franco de Andrade, grande prêmio da Faculdade da Bahia, literato, tenista e clínico ao mesmo tempo. Viera na comitiva de um ministro baiano e já possuía quatro empregos. Além de lente substituto, era médico do Hospício, legista da Polícia e subdiretor da Saúde Pública. Escrevera um volume de poesias místicas e espalhava nas aulas o mais vulgar materialismo. Era idealista em verso; em prosa, positivista. Com isso, era duro de umas maneiras delicadas, de uma amabilidade que cativava as redações em peso. Penetrou na sala sorridente, dizendo uma pilhéria a um, fazendo uma pergunta a outro. Alguém perguntou a sua valiosa opinião sobre o crime; o extraordinário sábio não se fez de rogado:

— Penso que o exame médico-legal não se deve limitar a uma simples autópsia... Convinha que se fizesse mais amplo... A exemplo do que se procede na Índia, onde a confusão de raças é imensa e, portanto, a raça é um bom dado para identificar, seria bom que se fizessem mensurações antropológicas...

— Sem a cabeça, é possível doutor? perguntou Losque.

— Perfeitamente.

E o grande prêmio da Bahia, alternativamente Maeterlinck, Charcot e Legrand du Saule, uns ares doutorais como convinha, e continuou:

— O professor Broca indicava trinta e quatro mensurações de primeira ordem; Topinard era de opinião que havia dezoito necessárias e quinze facultativas; mas Quetelet, na sua Anthropométrie, exige quarenta e duas.

A redação estava embasbacada. Todos deixaram de escrever para ouvir o sábio moço. O jovem medalhado passeou um instante pela sala o seu imenso olhar cheio de apetites e ambições, e emendou:

— Dessas, muitas são tomadas nos membros e no tronco: o talhe, a bacia, o fêmur, etc., etc. Demais, ainda se têm outros dados auxiliares: a seção dos cabelos, o exame microscópico do pigmento... Um operador hábil pode com tais meios indicar perfeitamente a raça e a sub-raça do indivíduo...

No dia seguinte, o jornal desenvolvia os conselhos do jovem e notável dr. Franco de Andrade; e a medida era tão sábia que, no mesmo dia, o chefe de polícia escalava-o para fazer o serviço médico-legal, exigindo-lhe o estudo antropológico dos cadáveres.

Não lhe foi difícil fazê-lo. Vinte e quatro horas depois o laudo estava publicado e o O Globo desfazia-se em elogios ao notável trabalho científico do dr. Franco de Andrade, "um moço, desta nossa forte geração moderna, que sabe aliar o saber e a simplicidade."

E como se o valente órgão tivesse falado no interior de uma abóbada, todos os outros jornais, neutros, governistas, oposicionistas, lhe repetiram as frases e os gabos ao talento do dr. Franco.

O crime ficou sendo a grande preocupação pública durante os sete dias que se seguiram. O laudo do doutor Franco concluía que o homem era mulato, muito adiantado é verdade, um quarterão, mas ainda com grandes sinais antropológicos da raça negra. As testemunhas, porém, entre elas o chefe e os condutores dos trens, não se lembravam de ter transportado nenhum par em tais condições. Só um dentista, político na localidade, depusera ter cruzado na estrada com um casal nas condições indicadas pelo laudo do dr. Franco. As indagações continuavam e o crime sacudia a cidade. A sua brutalidade e o seu mistério como que continham ameaças a todos: além do que estava envolvido numa atmosfera de amor, de amor proibido, embalsamada de luxo, de elegância e mocidade, que abalava e preocupava todas as imaginações.

Durante a semana o dr. Ricardo não se esqueceu um só dia de indagar como ia a venda. A tensão da opinião era grande e aumentava. Não se falava em outra coisa nas casas, nos bondes, nas repartições. Os jornais superexcitavam-na mais, inventando detalhes, fazendo suposições, indicando pistas. Adelermo não cessava de imaginar: foi o rei do jornal naqueles dias, com grande inveja de Floc.

— Oh! Como você tem imaginação! dizia ele com amargura.

Às vezes, fora de todo o propósito, fingia desdenhar a faculdade primordial de Adelermo, tachando-a de qualidade inferior. Não bastando este, veio também com a sua ênfase Veiga Filho, que ganhou algumas centenas de mil-réis...

Passaram oito dias e nada se adiantava. Um acaso permitiu a identificação dos assassinados. Um dono de hotel, tendo um dos seus quartos ocupados por um casal que não aparecia, desconfiou que tivesse sido ele o assassinado. Foi à polícia, as autoridades arrombaram as portas e as malas. Numa delas, encontraram uma carteira de identificação, passada pela polícia de Buenos Aires. Um sargento teve a idéia de confrontar a ficha dactiloscópica com a do cadáver do homem; e descobriu-se que o morto era o cidadão italiano Pascoal Martinelli, estabelecido com fábrica de massas na capital portenha, que partira para a Europa com a mulher, tencionando demorar-se uns dias no Rio de Janeiro. Um dia antes dessa elucidação, o dr. Franco de Andrade era nomeado diretor do serviço médico-legal da Polícia do Distrito Federal.