Durante todo esse tempo, residi em uma casa de cômodos na altura do Rio Comprido. Era longe, mas escolhera-a por ser barato o aluguel. Ficava a casa numa eminência, a cavaleiro da rua Malvino Reis e, atualmente, os dois andares do antigo palacete que ela fora, estavam divididos em duas ou três dezenas de quartos, onde moravam mais de cinqüenta pessoas.

O jardim, de que ainda restavam alguns gramados amarelecidos, servia de coradouro. Da chácara toda, só ficaram as altas árvores, testemunhas da grandeza passada e que davam, sem fadiga nem simpatia, sombra às lavadeiras, cocheiros e criados, como antes o fizeram aos ricaços que ali tinham habitado. Guardavam o portão duas esguias palmeiras que marcavam o ritmo do canto de saudades que a velha casa suspirava; e era de ver, pelo estio, a resignação de uma velha e nodosa mangueira, furiosamente atacada pela varia pequenada a disputar-lhe os grandes frutos, que alguns anos atrás bastavam de sobra para os antigos proprietários.

Houve noites em que como que ouvi aquelas paredes falarem, recordando o fausto sossegado que tinham presenciado, os cuidados que tinham merecido e os quadros e retratos veneráveis que tinham suportado por tantos anos. Lembrar-se-iam certamente dos lindos dias de festa, dos casamentos, dos aniversários, dos batizados, em que pares bem-postos dançavam entre elas os lanceiros e uma veloz valsa à francesa.

À noite, quando entravam aqueles cocheiros de grandes pés, aqueles carregadores suados, o soalho gemia, gemia particularmente, dolorosamente, angustiadamente... Que saudades não havia nesses gemidos dos breves pés das meninas quebradiças que o tinham palmilhado tanto tempo!

A casa pertencera talvez a um oficial de marinha, um chefe de esquadra. Havia ainda no teto do salão principal um Netuno com todos os atributos. O salão estava dividido ao meio por um tabique; os cavalos-marinhos e uma parte da concha ficaram de um lado e o Deus do outro, com um pedaço do tridente, cercado de tritões e nereidas.

Num cômodo (em alguns) moravam às vezes famílias inteiras e eu tive ali ocasião de observar de que maneira forte a miséria prende solidamente os homens.

De longe, parece que toda essa gente pobre, que vemos por aí, vive separada, afastada pelas nacionalidades ou pela cor; no palacete, todos se misturavam e se confundiam. Talvez não se amassem, mas viviam juntos, trocando presentes, protegendo-se, prestando-se mútuos serviços. Bastava que surgisse uma desinteligência para que os tratamentos desprezíveis estalassem de parte a parte.

Certo, quando assistia a tais cenas, não ficava contente, mas também não sabia refletir por aquele tempo, que, seja entre que homens for, desde que surjam desinteligências, logo rompem os tratamentos desprezíveis mais à mão.

Vi aí, na casa do Rio Comprido, os mais disparatados casos; e, pela manhã, aos domingos, quando me debruçava à janela, olhava brincando no terreiro uma pequenada em que se misturava o sangue de muitas partes do mundo. Em nenhum deles havia o gárrulo e a inocência dos meninos ricos; quando não eram humildes e tristes, eram irritáveis. Facilmente surgia uma rixa entre eles e o choro passava do contendor vencido a ser geral entre todos, com os castigos infligidos pelas mães aos culpados e não-culpados.

Admirava-me que essa gente pudesse viver, lutando contra a fome, contra a moléstia e contra a civilização; que tivesse energia para viver cercada de tantos males, de tantas privações e dificuldades. Não sei que estranha tenacidade a leva a viver e por que essa tenacidade é tanto mais forte quanto mais humilde e miserável. Vivia na casa uma rapariga preta que suportava dias inteiros de fome, mal vivendo do que lhe dava uma miserável prostituição; entretanto à menor dor de dentes chorava, temendo que a morte estivesse próxima.

Quando refletia assim, era tarde e, da janela do meu quarto, eu via bem a cortina de montanhas desde Santa Teresa ao Andaraí. O sol descambara de todo e a garganta da Tijuca estava cheia de nuvens douradas. Um pedaço do céu era violeta, um outro azul e havia mesmo uma parte em que o matiz era puramente verde.

Olhei aquelas encostas cobertas de árvores, de florestas que quase desciam por elas abaixo até às ruas da cidade cortadas de bondes elétricos. Quantas flores já as cobriram - quantas formas já as não tinham pisado! Depois que a civilização viera, quantas vezes elas não tinham sido despovoadas, e perdido o seu tapete de verdura?! E pelos séculos, apesar dos cataclismos, das revoluções geológicas, da ação do homem, nem uma só vez aquela terra deixara de fazer surgir plenamente, com as ramagens das árvores e com as plumagens do passaredo, a energia vital que estava nas suas entranhas!

A minha vida passava-se um pouco à parte naquele grande casarão. Cumprimentava a todos, mas pouco falava. Só a minha lavadeira mantinha relações comigo, e era por ela que eu sabia da vida daquele vasto cortiço.

Era uma velha mulata, já muito feia e de fisionomia desfeita. De gênio folgazão, e comunicativo, gostava de conversar, considerando com ceticismo especial as coisas da vida, as suas variações. - Já fora gente, dizia, hoje... - Assim é a vida, continuava, a noite vem depois do dia, isto para uns como eu. Para outros, é o contrário, o dia vem depois da noite. Não viu a Maria, exemplificava, em sua voz preguiçosa enquanto eu conferia a roupa. Não conheceu? Respondia-lhe que não; ela então explicava: aquela rapariga clara casada, que morava num quarto lá em baixo. Eu insistia que não, e a velha mulher retorquia - não vem ao caso - e continuava - O marido dera em beber, e em maltratá-la. Uma noite, voltando muito bêbado da rua, espancou-a. Foi para a Misericórdia e lá encontrou alguém, um doutor, não sei, que se enfeitiçou por ela... Hoje, menino, anda num estadão! Xi! É assim: para uns, a noite vem depois do dia, para outros é o contrário... E por fim acrescentava com desgosto; eu também tive homem por mim; mas não soube aproveitar... Quando ele morreu, as filhas quase me tiraram a roupa do corpo... Ah! Esta vida!... Estão certos, os colarinhos?

Então calava-se e ficava olhando o chão, absorta em recordações e em saudades. Eu então indagava:

— Não teve filhos, D. Felismina?

— Tive dois: uma moça e um rapaz.

— Estão bem, não?

— Um, o rapaz, morreu; e a moça...

— Está casada?

— Não... Vive com um homem... Deu muitas cabeçadas... Não foi ela... O senhor sabe: nós, quando não temos ninguém, é isso...

E levantou-se, sacudindo a cabeça como querendo enxotar a mágoa que a queria invadir...

Levantara-me muito cedo naquela manhã para ir ao jornal. Não me competia o serviço diurno naquele dia; mas o redator português chegava às dez horas e eu recebera ordem para ir recebê-lo no cais. No jornal, o diretor é uma espécie de senhor feudal a quem todos prestam vassalagem e juramento de inteira dependência: são seus homens. As suas festas, são festas do feudo a que todos têm obrigação de se associar; os seus ódios são ódios de soberano, que devem ser compartilhados por todos os vassalos, vilões ou não. A recepção do redator português era uma festa sua e ele exigia esse aparato para que tivesse uma repercussão favorável na grande colônia portuguesa. Todos tinham que ir. E se bem que simples contínuo, o diretor exigia terminantemente a minha presença, para mostrar aos outros periódicos rivais que no seu não havia distinções vãs, "era uma tenda de trabalho onde mourejavam irmãos".

É outra mentira dos jornais que logo senti.

Não há repartição, casa de negócio em que a hierarquia seja mais ferozmente tirânica. O redator despreza o repórter; o repórter, o revisor; este por sua vez, o tipógrafo, o impressor, os caixeiros do balcão. A separação é a mais nítida possível e o sentimento de superioridade, de uns para os outros, é palpável, perfeitamente palpável. O diretor é um Deus inacessível, caprichoso, espécie de Tupã ou de Júpiter Tonante, cujo menor gesto faz todo o jornal tremer. Para ciência dos povos, porém, aquilo é "uma tenda de trabalho onde mourejam irmãos"; e por ser assim eu tive que me levantar cedo e pedir na véspera um par de punhos a dona Felismina. Ela entregou-mos, indagando:

— Diga-me uma coisa "seu" Caminha: há aí uma lei que obriga todos a andarem calçados?

— Há uma postura municipal.

— Mas é verdade isso mesmo? Pois então todos, todos?

— Na rua, é. Por que se assusta?

— Dizem que as folhas falam nisso e que até, contam aí, que quem tiver pé grande tem que sofrer uma operação para diminuir os pés, como os chinas... É verdade?

— Qual! É balela! Quem lhe contou?

Ao sair, ainda ouvi que, pelos corredores, se discutia o assunto com calor, girando sempre a conversa em torno daquela operação chinesa que o governo queria impor à população.

No escritório já encontrei Floc, perfeitamente escanhoado, a preparar a notícia da chegada do novo redator. Lia um período alto e ouvi que descrevia o estado do mar e a agitação das pequenas embarcações em torno do transatlântico. Nos jornais, os artigos impressionistas são sempre feitos antes das impressões.

Premeditou-se certa ocasião uma corrida de automóveis que foi mais tarde proibida pela polícia.

O filho de Aires d’Ávila, que fazia por esse tempo um curso manhoso de direito e escrevia no grande jornal umas sensaborias, compôs com antecedência uma descrição eloqüente da corrida. Veio a proibição; mas o artigo saiu, sob o pretexto de que tinha raros méritos literários!

Floc escrevia nervosamente as impressões que ia sentir no desembarque. Estava de costas e, de quando em quando, rasgava uma ou duas das tiras escritas. Num dado momento, ergueu-se bruscamente, deixou escapar uma exclamação desesperada, amarrotou todo o papel que tinha escrito, e atirou-o com raiva à cesta. Depois de ter ido a janela, voltou a escrever com os mesmos trejeitos, com as mesmas mostras de desespero, que só desapareceu e se ocultou com a entrada do velho e esquálido gramático Lobo.

O caturra vinha também de mau humor. Não raro isso acontecia mas naquela manhã a tempestade interior parecia ser amedrontadora. Vestia de preto, como habitualmente: uma velha sobrecasaca curta, desusada, com as abas espapadas e grandes placas luzentes nas costas. Tinha um pescoço de ave a sair de uns colarinhos muito baixos que a gravata cobria inteiramente. Usava cabelo curto, óculos sem aros e possuía uma testa curta com uma grande e constante ruga horizontal. Tinha curiosas manias. Se estava de bom humor, traduzia de uma língua para outra os provérbios e os anexins que surgissem na conversa. Era bastante alguém dizer: "De grão em grão a galinha enche o papo", para ele retorquir da sua mesa, abandonando a revisão gramatical:

— Em francês: "Petit à petit l’oiseau fait son nid", os ingleses, porém, dizem...

Naquela manhã não parecia disposto ao seu sport favorito. Entrou carrancudo, com a ruga mais acentuada, cumprimentou ligeiramente Floc, e, já sentado, perguntou-lhe, olhando-o por cima dos óculos:

— Quem é este Sanches que escreveu este artigo sobre "Bancos emissores"?

— Não sei bem, disse Floc. Creio que é um advogado aí.

— Que ignorante! Pois esta besta não escreveu - um dos que foram - isso se admite? Qual! Como é que saem batatas destas?! Estou desmoralizado... Todos sabem que tenho aqui a responsabilidade da língua... Que dirá o João Ribeiro? o Said Áli? o Fausto? E o Rui, que dirá? Naturalmente vão acusar-me de ignorante... Vou dizer ao Ricardo que preciso ver todos os originais, se não declarar publicamente que não tenho responsabilidade com a gramática do O Globo. Não é possível ser assim!

Lobo gozava de uma grande ascendência sobre o ânimo do diretor. Emendava-lhe os artigos e fora imposto ao jornal por sua mulher, D. Inês, a quem o padre Bos, das Irmãs, recomendara como sábio. N’O Globo todos lhe temiam o mau humor, por sabê-lo influente e prestigiado, como sabichão em gramática, em geografia e em línguas. Loberant não escondia o seu respeito. Para ele, a mais alta expressão de cultura era falar inglês e Lobo sabia pedir água na língua do grande império.

A gramática do velho professor era de miopia exagerada.

Não admitia equivalências, variantes: era um código tirânico, uma espécie de colete de forças em que vestira as suas pobres idéias e queria vestir as dos outros. Há três ou cinco gramáticas portuguesas, porque há três ou cinco opiniões sobre uma mesma matéria. Lobo organizara uma série delas sobre as inúmeras dúvidas nas regras do nosso escrever e o nosso falar e ai de quem discrepasse no jornal! Era emendado da primeira vez, da segunda repreendido, da terceira podia ser até despedido, se ele estivesse de mau humor.

Nos seus bons dias, tinha a mansuetude e os modos convincentes de um professor de primeiras letras e recitava muitas vezes aos ouvidos do repórter recalcitrante todas as regras do Sotero sobre o emprego do infinito pessoal, chamando-o por filho, repetindo exemplo. Não admitia que se escrevesse "vieram lhe chamar", se alguém o fizesse em dias de mau humor, era certo ter de refazer de começo ao fim o seu trabalho.

Nem todos, porém, se sujeitavam à sua inspeção gramatical; Floc, Leporace e Caxias eximiam-se e Michaelowsky amedrontara-o com alguns berros e palavrões, quando o fiel gramático do jornal quis corrigir o seu original.

O russo entrava naquele momento na redação. O paquete chegava às onze horas e pouco faltava. Vendo-o entrar, Floc perguntou:

— Não vais, Michaelowsky?

— A quê?

— Ao desembarque do nosso redator.

O russo não lhe respondeu logo. Sentou-se, encolheu a cabeça dentro do corpo como uma tartaruga, franziu a grande boca, depois retrucou:

— Eu! Eu vou lá a esses espetáculos... Isso é um baixo "engrossamento"...

O diretor entrava e Michaelowsky não dissimulou a resposta. Loberant sempre autoritário com todos, era de uma delicadeza excepcional com o doutor pelo Cairo.

— Você é um esquisito, Michaelowsky - foi só o que ele observou.

E saímos. Éramos um bando à frente do qual marchava o dr. Ricardo, apressado, com as guias dos bigodes esfareladas ao vento e as abas da sobrecasaca cinzenta a baterem como asas de uma grande ave sultanina. Levava a bengala erguida e, com todos nós atrás, andando celeremente, parecia um delegado em diligência ou um chefe eleitoral que vai perturbar com capangas a eleição num colégio que lhe não é favorável.

Fazia um sol inclemente - sol de dezembro pela manhã. No cais já estavam a família do diretor, mulher e filhas pequenas, as filhas de Aires d’Ávila, cuja beleza tinha gabos especiais nas conversas dos cafés e confeitarias - a claque inteira do O Globo, o núcleo que gerava e transmitia pela cidade o talento de Ávila, as qualidades cívicas do doutor Ricardo e os dotes literários do jovem Julião Bandeira, que lá estava com sua noiva e o seu passo de valsista impenitente. Outros chegaram depois, Floc ficou entre as senhoras. As suas faces, os olhos, a testa breve e até os longos bigodes pretos adquiriram uma radiação especial; o próprio queixo aproximou-se do plano do peito e vim a conhecer outro Floc, simpático, interessante, todo ele cativante e natural.

Inútil é dizer que fiquei de longe, sozinho, como sempre fiquei nessas coisas e como parece ser meu destino ficar sempre. Dona Inês, a mulher do doutor Ricardo, entretanto, deu-me bom dia e fez um "como vais Isaías", bondoso e superior. Tinha-se na conta de ilustrada e nobre. Era o oráculo literário e intelectual do marido. Julgava-se ilustrada porque aprendera a recitar umas coisas das Irmãs de Botafogo e pintar flores; nobre, porque tinha um irmão deputado e o seu pai chicanara no interior do Brasil.

O cais estava agitado e concorrido. O Congresso estava a fechar-se, partia um paquete para o Norte e os congressistas começavam a fugir. Os magnatas: ministros, juízes, coronéis, ricaços, engrossadores com as suas mulheres e filhas, encontravam-se ali em tocantes despedidas a amigos das duas câmaras. A viscondessa de Varennes, a famosa Odalina, poetisa de muito mérito e tão do gosto de Floc, viera também. O doutor Ricardo afastou-se logo dela com a senhora; mas a fidalga insinuara-se no grupo das filhas de Ávila e lá ficara a deitar os seus grandes olhos de Juno para a massa masculina, brilhante e rica, que se apinhava no cais. Chegou por último Aires d’Ávila, com a sua marcha difícil, agitando a cabeça e balouçando os braços, no intuito de mais depressa impelir o corpo de chumbo.

Chegavam carros, coupés e espalhavam-se pelo jardim, disputando a escassa sombra das árvores, grupos de homens e senhoras. O pessoal masculino era soberbo: a nata - senado, câmara, altos tribunais, grandes patentes do exército e da marinha - cartolas reluzente e negras sobrecasacas a enquadrar os dourados dos uniformes. Tudo vergado ao sol indiferente e forte. As senhoras sentiam-se mal, envolvidas naquelas fartas ondas de luz e calor. Os bosquetes de arbustos tinham uma despreocupação divina e as grandes árvores nodosas davam uma escassa e compassiva sombra. As lanchas do pessoal com bandeira em que se lia o título, não tinham chegado. Eu esperava, afastado do grosso da claque, tímido diante de tanta grandeza inabalável. Chegou um Ministro. Um movimento igual fez todos voltarem-se para o lado em que ele vinha. A atitude foi instantânea em cada homem e em cada mulher; era como se ao centro de uma porção de limalha de ferro espalhada, se houvesse chegado um pequeno ímã.

O doutor Ricardo cumprimentou a alta autoridade e, a seu chamado, foi-lhe falar. Além do Ministro, intermeteu-se uma nova personagem; um preto velho, quase centenário, de fisionomia simiesca e meio cego.

Trazia na mão esquerda um caniço que distendia um arame de pescaria; com a direita, auxiliado por uma varinha, vibrava dolentemente a corda, enquanto balbuciava qualquer coisa. Ia de grupo em grupo, tangendo o seu monocórdio extravagante. Cantava talvez uma ária de uma extraordinária beleza, certamente só percebida por ele e feita pela sua alma para a sua alma... Tocava e esperava a esmola. Em todas as fisionomias, havia decerto piedade, comiseração, e mais alguma coisa que não me foi dado perceber. Era constrangimento, era não sei o quê...

O preto tinha os pés espalmados e, com a cecidez e a velhice, andava de leve, sem quase tocar no chão, escorregava, deslizava - era como uma sombra...

Sob aquele sol muito forte, à rebrilhante luz daquela manhã de verão, por entre tanta gente rica e forte, aquele seu instrumento infantil, a puerilidade da música, o seu aspecto de sombra juntavam-se para dar um rebordo cortante à sua miséria e à sua fragilidade... Ele, com a sua resignação e miséria, e o sol, com a sua força e indiferença, tinham um certo acordo oculto, uma relação entre si quase perfeita. O negro ia... Ia tocando já sem forças a plangente música das recordações do adusto solo da África, da vida fácil da música e do cativeiro semi-secular!

As lanchas aproximaram-se e embarcamos. O paquete ainda fumegava, rodeado de lanchas e pequenas embarcações de remos. Logo ao entrar, demos com o novo redator. As filhas de Aires d’Ávila cercaram-no. Elas eram as figuras decorativas do jornal. Bonitas, como toda a moça que sabe dispor dos seus atavios e vestidos, não faltavam a qualquer festa do O Globo. Nos banquetes, nos piqueniques, nas soirées do diretor, nos embarques e desembarques, lá estavam elas com as suas lindas toilettes, irrepreensivelmente calçadas e enluvadas. Tinham uma emanação luxuriante e uns grandes olhos inquietos, banhados de muita luz; as narinas móveis aspiravam com ânsia todos os perfumes e exalações e uma delas tinha o tic de morder os lábios. Era um gosto vê-las por entre os homens, animadas, com grande satisfação nos olhos, sorrindo para este, atendendo aquele, namorando. Amavam as grandes festas, em lugares afastados, onde vai muita gente...

Cercaram logo o novo redator, estabeleceram a cordialidade entre ele e o pessoal do jornal e ficaram junto dele, quando fomos à mesa tomar champagne. O dr. Ricardo julgou do seu dever erguer um brinde; o novo redator respondeu:

— Me falece competência para falar de si, começou.

Lobo, que continuava de mau humor, não se conteve e exclamou do canto:

— Xi! Quanta asneira!

O recém-chegado não se vexou e todos ficaram calados de espanto diante da grosseria do velho gramático. Loberant olhou-o severamente e Lobo suportou-lhe o olhar com coragem. O novo redator continuou, insistindo na primeira frase, sem mais sequer olhar o pedagogo.

De volta, ainda se deu um incidente desagradável no cais. Dona Inês e as filhas do diretor já iam longe, quando ele se aproximou de um senhor de cartola. Lembrei-me que tinha sido aquele senhor que tinha chamado o Ministro para embarcar, quando o dr. Ricardo conversava com o potentado. Era deputado e o dr. Ricardo altercava com ele:

— "Seu" patife! "Seu" cáften! Então você pensa que eu preciso de emprego?... Sou independente, tenho o meu jornal...

O outro respondia:

— Apulcro de Castro! Canalha! Bêbedo!

Não se demoraram muito; em breve se atracaram e rolaram pela areia do jardim. Ricardo saiu da luta deitando sangue pela boca e foi levado para um hotel próximo. Veio o médico e eu fiquei a seu lado, dando-lhe a poção de hora em hora.

Acalmou-se e pareceu dormir. Deixei-o só, mas voltei logo. Acordara e, de bruços na borda da cama, com boca semicerrada, olhava fincadamente o chão. Cismava na vida e considerava a terra. Animei-me:

— Precisa alguma coisa, doutor?

— Preciso.

— O quê, doutor?

E virou-se para o lado sem me responder...