— O senhor é da redação?
— Sim, senhor.
— Trago este volume de versos - Anelos - para oferecer ao jornal...
— Pode deixá-lo.
O poeta falava-me de pé, desconfiado e com longas interrogações no olhar. Na sala, não havia ninguém da redação, propriamente e quando me perguntou se eu o era, respondi-lhe afirmativamente, por pura vaidade.
O rapaz não me entregou logo o livro. Manteve-o na mão, olhando muitas vezes as coleções de jornais, os retratos nas paredes, a sala toda como se procurasse guardar de cor aquele aspecto e familiarizar-se inteiramente com ele.
— É o senhor o autor da obra? perguntei.
— Sou, pois não. O Sr. sabe: ninguém pode nunca estar certo de ter ou não habilidade. Escreve-se os amigos gostam; mas, se não se tem coragem para sujeitar um volume à crítica, fica-se sempre na dúvida se é a simples amizade dos camaradas que louva as nossas produções, ou se há mérito, de fato, nelas... Sou muito moço, tenho vinte e dois anos, faço versos desde os dezoito; agora, fiz uma escolha e publiquei este volume... Queria que os senhores dissessem alguma coisa, que notassem os defeitos, para eu me corrigir, caso fosse possível.
— Isso é com o crítico literário.
— Quem é?
— É o Floc, não conhece?
— Muito! Leio-o sempre. Até tenho aqui uma opinião dele que achei muito acertada. Creio que é do folhetim da semana passada...
O jovem poeta descansou o chapéu sobre uma mesa, puxou a carteira e esteve a procurar entre os papéis o retalho de Floc, sempre perseguido por um cacho de cabelos louros que teimava em lhe cobrir o olho direito. O cacho caía, ele retirava-o com a mão; teimava em voltar, ele sacudia a cabeça para levá-lo para cima, e assim custou a achar o pequeno retângulo de papel, perdido entre uma porção de cartas, cartões e versos de que estava pejada a carteira.
Encontrando-o não se demorou em lê-lo; tinha a secreta intenção de me convencer do grande apreço em que tinha o talento do viçoso Floc. Leu: - "Para mim, a verdadeira Arte é aquela que consorcia o ideal com o real; é aquela que, não desprezando os elementos representativos da realidade, sabe pelo ideal arrebatar as almas aos páramos do incognoscível."
Guardou a carteira com a valiosa opinião e continuou já um tanto desembaraçado:
— Concordo plenamente com ele. Nos Anelos, se o Sr. ler, há de ver que sempre procurei não me afastar desse ponto de vista... E acho que deve ser assim real e ideal, junto é verdade, mas este espiritualizando aquele, dominando-o e vencendo-o... Gosto imensamente do Senhor Floc; acho-o um crítico sagaz, ilustrado, cujo julgamento sobre os meus versos, eu receberia com especial agrado... O senhor falará a ele, não é?
Prometi-lhe e o cândido poeta Félix da Costa saiu satisfeito, apertando-me a mão demoradamente, oferecendo-me a casa e os préstimos. Folheei um instante o livro; era uma plaquette de cento e tantas páginas, povoadas de sonetos e outras poesias soltas. Depositei-o sobre a mesa do Secretário. De antemão, sabia que Floc não se deteria na sua leitura. Os livros nas redações têm a mais desgraçada sorte se não são recomendados e apadrinhados convenientemente. Ao receber-se um, lê-se-lhe o título e o nome do autor. Se é de autor consagrado e da facção do jornal, o crítico apressa-se em repetir aquelas frases vagas muito bordadas, aqueles elogios em cliché que nada dizem da obra e dos seus intuitos; se é de outro consagrado mas com antipatias na redação, o cliché é outro, elogioso sempre mas não afetuoso nem entusiástico. Há casos em que absolutamente não se diz uma palavra do livro. Acontecia isso com três ou quatro autores. Um destes era Raul Gusmão, a quem o diretor invejava o talento de escrever; além dele, havia um grande poeta, respeitado em todo o Brasil, e um outro moço que se rebelara contra a ditadura do jornal. Com os nomes novos não havia hesitações; calava-se, ou dava-se uma notícia anódina, "recebemos, etc.", quando não se descompunha.
Aos olhos dos homens da imprensa, publicar um livro é uma ousadia sem limites, uma temeridade e uma pretensão inqualificáveis e dignas de castigo.
— Como é, disse certa vez Oliveira, que este sujeito publicou um livro?... um desconhecido! Um idiota magro! Um tipo que nunca escreveu coisa alguma...
Ele queria dar a entender como não tendo escrito coisa alguma, o fato do rapaz não ter publicado artigos nos jornais ou feito mesmo a reportagem dos Telégrafos. O pensamento comum dos empregados em jornais é que eles formam o pensamento, e não só o formam, mas "são a mais alta representação dele". Fora deles, ninguém pode ter talento e escrever, e, por pensarem assim, hostilizam a todos que não querem aderir à sua grei, impedem com a sua crítica hostil o advento de talentos e obras, açambarcam as livrarias, os teatros, as revista, desacreditando a nossa provável capacidade de fazer alguma coisa digna com as suas obras ligeiras e mercantis.
Os mais hábeis daqueles que estão de fora, porém, quando premeditam a infame ousadia de publicar, arranjam preliminarmente relações de amizade nos jornais, de modo a obter um bom acolhimento para o seu trabalho. Isso acontece com os de pequeno nascimento, com os que vêm dos estados; mas autor que aqui nasceu, em certa camada, que tenha títulos e empregos, pode estar seguro que a crítica anônima dos jornais lhe será unânime em elogios e animação.
NO Globo, as coisas corriam assim. O secretário recebia o volume e dava-o a Floc. Quimera, romance, Abílio Gonçalves, lia Floc alto; e logo perguntava:
— Quem é este Abílio Gonçalves?
— Não conheces? É o filho do Senador Gonçalves, de S. Paulo.
Floc olhava outra vez o livro e voltava:
— É formado?
— É, retorquia Leporace; é engenheiro de minas.
— Hum! fazia Floc com segurança, mudando a primitiva antipatia que se lia na contração dos lábios, para um breve sorrir de benevolência. No dia consagrado, o folhetim aparecia cheio de blandícias, de elogios, fosse o livro bom ou mau, fosse o pai senador da oposição ou do governo. Houve uma ocasião em que Floc, para mais erguer o filhote criticado, forjou um elogio de um autor francês, como tendo sido feito a um livro que aparecera há duas semanas no Rio de Janeiro.
Se o nome do autor era obscuro, se as informações colhidas lhe não davam de pronto um estado civil decente, Floc adiava a notícia e esperava que os grandes nomes da crítica se pronunciassem. Se eram favoráveis ao livro, ele repetia os elogios, ampliava as observações; se eram desfavoráveis, o elegante e viçoso crítico dava curso à sua natural hostilidade aos nomes novos que não surgiam nos jornais. Havia, porém, uma casta de autores, que ele sempre elogiava; eram os diplomatas. Um destes senhores publicou certa vez uma compilação de naturalistas e de receitas agrícolas, com fingimentos de Maeterlinck, sobre as frutas nacionais. Floc não se conteve: desandou um folhetim inteiro sobre o volume, elogiando a sua virtuosidade artística, o seu estilo límpido e sereno, mostrou o pensamento panteístico que o animava, só porque o primeiro-secretário da Legação de Caracas dissera que o mamão era terno e resignado.
Dado que o livro tratasse do assunto que ele desconhecesse inteiramente, o processo era outro. Ele fazia como o abissínio faz com o boi em que viaja montado: tirava-lhe pedaços da própria obra e criticava.
Eu não quis dizer tudo isso ao poeta dos Anelos. Era melhor mantê-lo na ilusão de que pudesse haver alguma independência e espontaneidade no julgamento dos jornais; e quando Floc chegou, com o seu grande queixo atirado para diante como um aríete e os seus bigodes de azeviche, dei-lhe o livro. Depois de manuseá-lo um instante, falou com azedume:
— Que nome! Félix da Costa! Parece até enjeitado! É algum mulatinho?
— Não. É mais branco que o sr. É louro e tem olhos azuis.
— Homem, você hoje está zangado...
Ele não compreendia, que eu também sentisse e sofresse. E arredou o livro para a ponta da mesa e pôs-se a escrever. Era a sua tortura; era o eu pesadelo. Quase sempre as crônicas literárias, as fantasias, as notícias de teatro, as trazia escritas de casa; mas o serviço normal, era obrigado a fazê-lo na própria redação. Preferia ficar só, e quando estava, escrevia para adiantar serviço. A sua oclusão mental não fora capaz de me julgar e ele não me supunha bastante atilado para observar a sua dificuldade. Então, mesmo na minha presença, mordiscava os bigodes, dava suspiros, falava alto; mas ao chegar um outro dos colegas, continha-se a contração dos supercílios e o franzir da testa, denunciavam o desespero e o esforço. Floc não tinha o dom de improvisar o artigo, não possuía esse talento especial de presteza de pensamento, essa facilidade em vazá-lo logo no papel, com que se fizeram conhecidos José do Patrocínio e Justiniano José da Rocha. Na redação, havia alguns que escreviam com facilidade e rapidez, mas sem brilho nem relevo. Meneses era quem tinha mais destaque, quem mais força possuía no dizer, mas a sua pessoa resistia muito, não se queria transmitir ao artigo, temia, e por isso ele perdia muito.
Quem tivesse perfeitamente o dom de inventar, de arquitetar instantaneamente o artigo e escrevê-lo com sabor literário, brilhante, vigoroso, orgânico, não havia. Losque, muito mais fraco do que Meneses, fingia-se de posse desse dom sagrado. Faltava-lhe novidade, invenção, força no dizer; tinha uns certos períodos, um constante arranjo de frases que ele adaptava ao assunto do momento, com as variantes necessárias. Michaelowsky escrevia rapidamente, desenvolvia o artigo com muita força e paixão, mas era tumultuário até ao emaranhado e a falta de sentimento da língua não lhe dava uma arquitetura aos períodos. A música do idioma fazia-lhe falta, completamente. No mais, todos escreviam com acanhamento, sem naturalidade; as palavras fugiam-lhe no momento de escrever. Isso que num temperamento literário pode transformá-lo em grande escritor, num jornalista a nada leva. Aliás, nenhum deles tinha o sentimento do seu defeito. Floc unicamente, com certeza devido aos seus grandes desejos literários e artísticos, sentia bem essa inferioridade e sofria com ela. Não procurava corrigir-se, adquirir a plasticidade necessária; o ofício não permitia e fora dele não tentava nada, com medo do desastre e do insucesso, embora na tentativa muito pudesse ganhar a sua vontade e o escritor que houvesse nele. Sofria...
Nos dias seguintes às festas de luxo, quando era encarregado dos comptes-rendus, era de ver o seu azedume contra o Raul Gusmão, que os fazia também para o Despacho. Em geral saíam antes dos seus, à tarde, de modo que ele chegava à redação notando-lhe as invenções e os exageros. Sempre, porém, senti na sua crítica a impotência e o despeito de não ver citada pelas senhoras conhecidas uma imagem mais faiscante, como faziam com as do rival. Entretanto eram amigos e elogiavam-se sempre que podiam.
Floc, naquele momento, recebera uma aragem de inspiração. Escrevia com desembaraço, quando Losque entrou. O recém-vindo descansou o maço de jornais que sempre trazia, limpou o pince-nez, acendeu o cigarro de palha e perguntou camaradariamente:
— Que escreves?
— A notícia do baile do Palácio...
— E o Rolim?
— É a "cabeça"... Tu bem sabes que o Rolim não escreve nada que preste...
Este Rolim era o repórter do palácio. Tinha mais de quarenta anos, uns grandes pés espalmados e o queixo erguido para o alto quase a bater nos bigodes fartos e negros. Tinha-se na conta de elegante, de fino e descendente de um vice-rei do Brasil, o seu ofício no jornal era ir diariamente ao palácio presidencial, tomar nota dos nomes dos visitantes, ou, em ocasiões excepcionais, representar o jornal nas festas do bom-tom, em que a distinção de maneiras fosse exigida e um ar sedutor não ficasse mal. De volta, trazia os nomes dos circunstantes, a hora certa em que começaram as danças, procurava a notícia anterior e mutatis-mutandis a copiava.
— Este Rolim!... É jornalista para uso externo, disse Losque acrescentando em seguida: Você leu o Jornal do Comércio?
— Não. Por quê?
— O Teixeira Mendes ataca a lei dos sapatos obrigatórios. Diz que isso de andar calçado, de correção de traje, em última análise, entra no campo da estética, assim no espiritual em que não pode o poder temporal intervir absolutamente... Então é com o Papa?
Os dois sorriram e Floc refletiu vagarosamente:
— Eu creio que as coisas vão mal. Há muita irritação, muito azedume por aí...
— Eu penso também que isso não acaba bem. Hoje quando vinha de bonde, vi comentários ao artigo do Ricardo...
— Estava bom. Não achaste?
— Achei, fez o outro com segurança. Ele atacou bem a questão; podia ir mesmo pelo higiênico...
Entrava no momento Leiva, que fazia polícia e "Vida Operária". Sentindo que se falava na questão dos sapatos, interveio na palestra:
— Vocês não imaginam... As coisas estão feias! Estive na Gamboa e na Saúde... Os estivadores dizem que não se calçam nem a ponta de espada. Não falam noutra coisa. Vi um carroceiro dizer para outro que lhe ia na frente guiando pachorrentamente: Olá, hé! Estás bom para andares calçado que nem um doutor! Por aí vocês avaliam... Creio que há "tumbabumba"!
— Agora, aqui para nós, aduzia Floc, a coisa é necessária... Causa má impressão ver essa gente descalça... Isso só nos países atrasados! Eu nunca vi isso na Europa...
— Ora, deixa-te disso, Floc, observou Michaelowsky que entrara. No Norte, é justo, o clima, o gelo; mas no Sul, em Nápoles, na Grécia, vê-se muito...
— Isso não é Europa.
— Engraçado! Com que liberdade modificas a geografia... E em Londres?
— Que tem Londres?
— Que tem! Não há cidade do mundo em que a multidão seja mais andrajosa, mais repugnante...
— Andam de casaco e sapatos! gritou triunfantemente Floc.
— Que casaco! Que sapatos! Naturalmente que hão de procurar coberturas para o frio, mas onde vão buscá-las? Ao lixo e é um disparate! Se queres uma multidão catita, arranja meios de serem todos remediados. Vocês querem fazer disto uma Paris em que se viva sem gastar a importância da passagem, ao mesmo tempo ganhando dinheiro, e esquecem de que o deserto cerca a cidade, não há lavoura, não há trabalho enfim...
Quase todos previam um motim; julgavam-no certo pelas observações que tinham feito.
O dr. Ricardo entrou seguido de Aires dÁvila. O diretor vinha satisfeito. Cumprimentou sorrindo e foi ao gabinete escrever. Aires dÁvila fez algumas considerações sobre o projeto e perguntou ao Floc por uma cantora nova. Loberant, por esse tempo, gritou:
— Isaías, vem cá! Leva-me esta carta ao senador F. Olha, recomendou-me ao sair, entrega em mão dele, estás ouvindo?
No momento em que começava a descer a escada ouvi que dizia alto:
— Esses f... hão de ver se valho ou não valho alguma coisa! Súcia!
Embaixo o gerente, em colete, sentado diante da grande mesa, contava harpagonescamente uma chusma de níqueis que ia dividindo em colunas, alinhando-as depois para o lado esquerdo à proporção que contava.
O mês de maio tinha começado naquele ano com particular doçura. Eu que já tinha mais de dois anos de Rio de Janeiro, nunca o vi tão formoso, tão primaveril e nunca assisti a manhãs tão lindas e azuis. Fazia uma temperatura carinhosa e eu olhava as nuvens, as montanhas e as árvores sob uma luz aveludada. A terra era todo um estojo macio e tépido, feita especialmente para o viver do nosso corpo. Os boatos da redação e a tempestade que eu mesmo sentia preparar-se, em nada diminuíam a minha sensação de bem-estar físico. Aquele começo de mês foi para mim de grande sossego e de muito egoísmo. Embora minha mãe tivesse afinal morrido havia dois meses, eu não tinha sentido senão uma leve e ligeira dor. Depois de empregado no jornal, pouco lhe escrevi. Sabia-a muito doente, arrastando a vida com esforço. Não me preocupava... Os ditos do Floc, as pilhérias de Losque, as sentenças do jovem Deodoro Ramalho, tinham feito chegar a mim uma espécie de vergonha pelo meu nascimento, e esse vexame não me veio diminuir em muito a amizade e a ternura com que sempre envolvi a sua lembrança. Sentia-me separado dela. Enquanto a julgava a espécie de besta de carga e máquina de gracejos com aqueles idiotas a abrangiam no seu pensamento genuíno eu, seu filho, julgava-me a meus próprios olhos muito diverso dela, saído de outra estirpe, de outro sangue e de outra carne. Ainda não tinha coordenado todos os elementos que mais tarde vieram encher-me de profundo desgosto e a minha inteligência e a minha sensibilidade não tinham ainda organizado bem e disposto convenientemente o grande stock de observações e de emoções que eu vinha fazendo e sentindo dia a dia. Vinham uma a uma, invadindo-me a personalidade insidiosamente para saturar-me mais tarde até ao aborrecimento e ao desgosto de viver. Vivia, então, satisfeito, gozando a temperatura, com almoço e jantar, ignobilmente esquecido do que sonhara e desejara. Houve mesmo um dia em que quis avaliar ainda o que sabia. Tentei repetir a lista dos Césares - não sabia; quis resolver um problema de regra de três composta, não sabia; tentei escrever a fórmula da área da esfera, não sabia. E notei essa ruína dos meus primeiros estudos cheio de indiferença, sem desgosto, lembrando-me daquilo tudo como impressões de uma festa a que fora e a que não devia voltar mais. Nada me afastava da delícia de almoçar e jantar por sessenta mil-réis mensais.
A irritação do espírito popular que eu tinha observado na minha própria casa não me fez pensar nem temer. Julguei-a especial àqueles a quem tocavam e nunca que aquelas observações ingênuas se tivessem transformado em grito de guerra, em amuleto excitador para a multidão toda. Mais tarde, entretanto, verifiquei que a crença de que o Governo pretendia operar violentamente os homens e mulheres de pés grandes, como os Chinas, é que tinha impressionado fortemente os espíritos levando-os ao sangrento motim que estalou.
Tinha-me recolhido cedo, depois de ter ido ao clube buscar provas ao Aires dÁvila. Era hábito seu ir pelas cinco horas ao clube arriscar alguma coisa antes de jantar e quanto pretendia demorar-se levava as provas, indo eu ou o outro contínuo buscá-las já revistas. Em certas ocasiões, quando pelo correr do dia, não tinha tempo de escrever, era tão forte o seu hábito que, dada a hora, corria ao clube e voltava de lá às dez ou onze horas para escrever o artigo. Noites havia que o sono e a fadiga eram tão fortes que, entre uma tira e outra, o gordo e pesado jornalista cochilava e dormia até. Então, com a precisa delicadeza, qualquer pessoa da redação acordava-o e Aires continuava a escrever o artigo sem mesmo reler as tiras anteriores. Alguns dias, o sono obrigava-o a interromper o artigo mais de uma vez.
Recolhi-me cedo nessa noite e dormi profundamente durante toda ela. Não vi a destruição dos combustores de iluminação, que os populares tinham levado a efeito. Só a notei de manhã, já pelas oito horas, descendo a ladeira. Na rua, o trânsito era raro e o tráfego dos bondes parecia ter cessado completamente. Nas esquinas, havia patrulhas de infantaria e cavalaria e, de distância em distância, à porta de estalagens, afastados da polícia, havia grupos compactos de populares. Um bonde aproximou-se, e embora cheio, dependurei-me com dificuldade num dos balaústres. A fisionomia das ruas era de expectativa. As patrulhas subiam e desciam; nas janelas havia muita gente espiando e esperando qualquer coisa. Tínhamos deixado a estação do Mangue, quando de todos os lados, das esquinas, das portas e do próprio bonde partiram gritos: Vira! Vira! Salta! Salta! Queima! Queima!
O cocheiro parou. Os passageiros saltaram. Num momento o bonde estava cercado por um grande magote de populares à frente do qual se movia um bando multicor de moleques, espécie de poeira humana que os motins levantam alto e dão heroicidade. Num ápice, o veículo foi retirado das linhas, untado de querosene e ardeu. Continuei a pé. Pelo caminho a mesma atmosfera de terror e expectativa. Uma força de cavalaria de polícia, de sabre desembainhado, corria em direção ao bonde incendiado. Logo que ela se afastou um pouco, de um grupo partiu uma tremenda assuada. Os assobios eram estridentes e longos; havia muito da força e da fraqueza do populacho naquela ingênua arma. E por todo caminho, o cenário se repetia.
Uma força passava, era vaiada; se carregava sobre o povo, este dispersava-se, fragmentava-se, pulverizava-se, ficando um ou outro a receber lambadas num canto ou num portal fechado. O Largo de S. Francisco era mesmo uma praça de guerra. Por detrás da Escola Politécnica, havia uma força e os toques da ordenança sucediam-se conforme as regras e preceitos militares. Parei. Um oficial a cavalo percorria a praça, intimando o povo a retirar-se. Obedeci e, antes de entrar na rua do Ouvidor, a cavalaria, com os grandes sabres reluzindo ao sol, varria o largo com estúpido. Os curiosos encostavam-se às portas das casas fechadas, mas aí mesmo os soldados iam surrá-los com vontade e sem pena. Era o motim.
As vociferações da minha gazeta tinham produzido o necessário resultado. Aquele repetir diário em longos artigos solenes de que o governo era desonesto e desejava oprimir o povo, que aquele projeto visava enriquecer um sindicato de fabricantes de calçado, que atentava contra a liberdade individual, que se devia correr a chicote tais administradores, tinha-se encrostado nos espíritos e a irritação alastrava com a violência de uma epidemia.
Durante três dias a agitação manteve-se. Iluminação quase não havia. Na rua do Ouvidor armavam-se barricadas, cobria-se o pavimento de rolhas para impedir as cargas de cavalaria. As forças eram recebidas a bala e respondiam. Plínio Gravata, com quem há muito não me encontrava, veio a morrer num desses combates. Da sacada do jornal, eu pude ver os amotinados. Havia a poeira de garotos e moleques; havia o vagabundo, o desordeiro profissional, o pequeno burguês, empregado, caixeiro e estudante; havia emissários de políticos descontentes. Todos se misturavam, ajuntavam as balas, unidos pela mesma irritação e pelo mesmo ódio à polícia, onde uns viam o seu inimigo natural e outros o Estado, que não dava a felicidade, a riqueza e a polícia.
O motim não tem fisionomia, não tem forma, é improvisado. Propaga-se, espalha-se, mas não se liga. O grupo que opera aqui não tem ligação alguma com o que tiroteia acolá. Agora independentes; não há um chefe geral nem um plano estabelecido. Numa esquina, numa travessa, forma-se um grupo, seis, dez, vinte pessoas diferentes, de profissão, inteligência, e moralidade. Começa-se a discutir, ataca-se o governo; passa o bonde e alguém lembra: vamos queimá-lo. Os outros não refletem, nada objetam e correm a incendiar o bonde.
O apagamento momentâneo da honestidade e a revolta contra pessoas inacessíveis levam os melhores a esses atentados brutais contra a propriedade particular e pública. Concorre também muito a nossa perversidade natural, o nosso desejo de destruir que, adormecido no fundo de nós mesmos, surge nesses momentos, quando a lei esqueceu e a opinião não nos vigia.
No jornal exultava-se. As vitórias do povo tinham hinos de vitórias da pátria. Exagerava-se, mentia-se, para se exaltar a população. Em tal lugar, a polícia foi repelida; em tal outro, recusou-se a atirar sobre o povo. Eu não fui para casa, dormi pelos cantos da redação e assisti à tiragem do jornal: tinha aumentado cinco mil exemplares. Parecia que a multidão o procurava como estimulante para a sua atitude belicosa. O serviço normal da folha fazia-se com atividade. Os repórteres iam aos lugares perigosos, aos pontos mais castigados pela polícia, corriam a cidade em tílburis. Nem os revisores nem os seus suplentes faltavam à chamada; outro tanto sucedia com os tipógrafos e os outros operários.
Toda essa abnegação era para garantir os seus mesquinhos empregos. Um pobre tipógrafo, que morava para a Saúde, onde o trânsito se fazia com os maiores perigos, ficou todos os três dias no jornal. Temia ser morto por uma bala perdida. Houvera muitas mortes assim, mas os jornais não as noticiavam. Todos eles procuravam lisonjear a multidão, mantê-la naquelas refregas sangrentas, que lhes aumentava a venda. Não queriam abater a coragem do povo com a imagem aterradora da morte. A polícia atirava e não matava; os populares atiravam e não matavam. Parecia um torneio... Entretanto eu vi morrer quase em frente ao jornal um popular. Era de tarde. O pequeno italiano, na esquina, apregoava os jornais da tarde: Notícia! Tribuna! Despacho!
De há muito que a rua parecia retomar a sua vida normal. Durante todo o dia os passeios se fizeram como nos dias comuns; repentinamente, porém, uns grupos que paravam no canto do largo de S. Francisco, vaiaram a polícia. O esquadrão, com o Alferes na frente, partiu como uma flecha e foi descendo a rua do Ouvidor, distribuindo cutiladas para todos os lados. O pequeno vendedor de jornais não teve tempo de fugir e foi derrubado pelos primeiros cavalos e envolvido nas patas dos seguintes, que o atiraram de um lado para o outro como se fosse um bocado de lama.
Quando suspenderam a carga, alguns populares trouxeram-no morto para o escritório do jornal. O cadáver estava num estado ignóbil: tinha quase todos os ossos partidos, o crânio esmagado e o ventre roto. Recordei-me então daquelas palavras de Loberant:
— Esses f... hão de ver se valho ou não valho alguma coisa! Súcia!