Reflexões sobre a Vaidade dos Homens (1980)/CLXI
Assim é, mas quem há-de haver que negue, que a Nobreza, ou essa cousa vã, é útil, necessária, e bem imaginada? Que importa que uma cousa seja na realidade nada, se os efeitos que produz são alguma cousa? Os efeitos da Nobreza são muitos; ela dá merecimento, valor, saber, a quem não tem nem ciência, nem valor, nem merecimento; ela serve, para fazer venerado, a quem o não deve ser; ela faz que o crime fique muitas vezes impunido; que a desordem se encubra, e se disfarce; e que a soberba, a arrogância, e a altivez, fiquem parecendo naturais, e justas; finalmente a vaidade da Nobreza, até se desvanece com a vileza das acções; estas ainda quando são vis, infames, torpes, e odiosas, nem por isso envilecem, ou infamam a quem as faz; antes da mesma enormidade das acções se tira um novo lustre, ou nova prova da Nobreza: o ponto é contar uma longa série de ilustres ascendentes para que um nobre fique dispensado das leis da sociedade, e de formalidades civis; e também habilitado para que possa livremente, e sem reparo, perder o pejo, a honra, a verdade, e a consciência. Desta sorte vem a Nobreza a ser um meio por onde o vício se autoriza, o crime se justifica, e a vaidade se fortalece. Cuidam os Nobres, que a Nobreza lhes permite tudo, mas cuidam mal; porque o certo é, que a Nobreza bem entendida, não se fez para canonizar o erro; ela foi sabiamente achada para servir de estímulo, e companheira das virtudes; para enobrecer as acções ilustres, e não para ilustrar as viciosas; para ser atendida pelo que obrasse digno de atenção, e não pelo que fizesse indignamente; para servir a razão, e não para a dominar; para ser exemplo, e não regra; para fazer os homens bons, e não para os perverter; para os distinguir pela Nobreza do espírito, e não pela Nobreza da carne; para os fazer melhores de uma melhoria de ânimo, e não de corpo; finalmente para fazer mais clara a luz, e não para fazer clara a sombra. Por isso o sábio Rei (que ainda há pouco perdemos, e de quem a feliz memória a cada passo renova em nós a mais entranhável dor) nunca olhou para a Nobreza enquanto a via só, mas sim quando a via acompanhada de acções nobres; nunca atendeu à Nobreza das origens, mas sim à Nobreza dos sujeitos; considerava os homens primeiro pela qualidade das virtudes, e pelas outras qualidades, depois; o conceito, que fazia, foi, que a Nobreza não era no homem parte principal, mas sim parte ajuntada, que só servia de o ornar, e não de o fazer. Aquele mesmo Rei foi o terror da Nobreza arrogante, e destemida; esta sempre tinha os olhos assombrados de ver a cada instante fuzilar o raio, e de ver armado sempre o braço poderoso; mas armado ao mesmo tempo de justiça, e de piedade, de furor, e de compaixão. Deste modo governou em paz, e nos deixou a paz; por isso a mágoa de o perder, foi, e há-de ser infinita em nós; e as nossas lágrimas apenas poderão mitigar-se alguma vez, suspender-se, nunca. Acabou aquele Monarca Augusto, e parece que não tanto pela fatal necessidade de acabar, como para que trocado em altar o trono, o respeito em culto, e o obséquio em adoração, o pudéssemos invocar. Subiu ao estado de imortal para ser numen tutelar do Império Português; e em um Príncipe (o mais prudente, e moderado que o mundo viu) nos deixou um Rei benigno, pio, generoso, justo, protector; assim ficou disposta a nossa consolação, e seria menos forte a nossa pena, se pudesse ser o haver remédio para a saudade.