Reflexões sobre a Vaidade dos Homens (1980)/CXLII
E com efeito se se não perdesse o sangue, que se faz nos animais, e o humor, que as árvores atraem, donde era possível que coubesse tanto humor, e tanto sangue? Que outra cousa é a enfermidade, senão um sangue, ou um humor, que se não dissipa, e está como suspenso? O calor vital, que expulsa um, fabrica outro; algumas cousas há, que para acabarem, basta que subsistam no que são; daqui resulta uma espécie de pasmo: a corrupção do sangue vem de não acabar um para que outro comece; a força do remédio consiste na virtude de expelir, e dissipar; a superfluidade procede de se haver o sangue conservado; a conservação o perde, não só pela razão de ser pecante, mas pela razão de ser o mesmo. Os poros são como infinitas portas, e quási imperceptíveis, por onde o sangue, e todos os humores passam continuamente, e sem interrupção; a saúde consta de exalação, e deperdição, persiste uma substância, porque outra se desvanece: se acaso aqueles poros se constipam, isto é, se aquelas portas se apertam, ou se fecham, e que o sangue fique como preso, e sem sair, então se vê, que o sujeito se aflige, e desfalece; e se dura, ou permanece a reclusão, a morte chega em poucas horas: a arte, que conhece a causa da desordem, só cuida em relaxar, e abrir os poros comprimidos, e cerrados, para que o sangue posto em liberdade se possa livremente perder, dissipar, fugir. A natureza ambiciosa em conservar fica inábil para adquirir; a vida não depende tanto do sangue, que está feito, como daquele que se vai fazendo: rotas as veias, por elas sai em horrível, e espantosa quantidade; debilita-se a natureza, mas se lhe acodem, não acaba; porém se fica sem acção para fazer de novo, entra em agonia, e se extingue totalmente; naquela elaboração está a vida, neste descanso a morte.