Reflexões sobre a Vaidade dos Homens (1980)/CXLIII
Ainda as partes sólidas do corpo de alguma sorte mudam de substância, e se regeneram. O osso duro, parece que todo em si é compacto, e imutável; mas contudo, a sua contextura é composta de folhas aderentes, separadas, e sobrepostas; por entre vários interstícios circula nele um líquido untuoso, este serve-lhe de alimento, e sangue; e é também o que sendo mole, faz que o osso seja forte, e firme; dali vem a nutrição, e por consequência a mudança de matéria; porque tudo o que alimenta, trabalha em se transformar, ou converter na cousa alimentada; aquela conversão procede lentamente, e apenas se imagina em um corpo duro; nos líquidos é visível, e se percebe facilmente. Mas haverá quem diga, que ainda que o sangue mude, e se renove, basta que fique dele um átomo fermentativo, ou ideia primogénita, para assim se conservar perenemente a qualidade da Nobreza. Isto há-de dizer o defensor do sangue antigo, não por defender o sangue, mas por defender a Nobreza incorporada. (Sempre é mau que o argumento chegue a tal extremo, que seja forçoso recorrer aos átomos, aos fermentos, e às ideias: em cousa física não sei se é permitido o recurso para cousas imperceptíveis, e invisíveis). Em o nascimento de uma fonte quem lançar qualquer porção de água diversa, esta há-de sair em brevíssimos instantes; porque aquelas águas continuamente estão mudando de si mesmas; elas são o sangue da terra, assim como o sangue são as águas do corpo: todas se mudam, e sucessivamente se renovam; as que vêm depois são outras, sem impressão alguma das primeiras; nem se pode imaginar, que cada porção de sangue vá deixando (como em memória, e penhor de si) alguma porção, ainda que pequena infinitamente; as partes não são extensíveis, ou divisíveis em infinito; assim que chegam a uma tal tenuidade, acaba-se a divisão. A subsistência tem fim no sangue, porque este transpira por uma imensidade de caminhos; nem é compreensível, que na massa de um fluido subtil, haja alguma parte, que tenha o privilégio de ser intranspirável, e que isenta das leis universais, vá ficando só para servir de gérmen qualificador. Quanto mais um licor se move, mais se diminui: naqueles que têm um movimento perpétuo, regular, e próprio, a matéria se dissipa, à proporção que se subtiliza; nem ainda em um tubo de cristal se pode algum licor conservar inteiro; e apenas se faz crível a quantidade de humor, que o corpo exala em poucas horas. Concluamos pois, que o sangue não é donde a Nobreza assiste; é um líquido incerto, e vago para ser o assento de uma vaidade tão constante. Haja embora no mundo uma Nobreza, contanto que não imaginemos, que ela tem dentro dos homens uma parte distinta donde habita; seja um íodolo , mas ídolo sem templo; basta supor, que o Simulacro é certo, sem entrar no empenho sobre o lugar da dedicação; seja a Nobreza como a sombra; esta, bem se vê, mas não se pega; sempre está fora do corpo, dentro nunca: tenha a vaidade um culto exterior, contanto que ela seja exterior também. Deixemos finalmente o sangue em paz; ele não descansa, e todo o seu trabalho é para ser sangue, e não para ser este, ou aquele sangue; de que serve a arte de introduzir naquele líquido admirável, qualidades arbitrárias, e civis, se a verdade é, que ele só tem as qualidades naturais? Para que é fazer ao sangue, autor daquilo, de que só é autor a vaidade?