Reflexões sobre a Vaidade dos Homens (1980)/CXXXI
Os Heróis são os que combatem, os que vencem, e conquistam; porém os sábios são, os que de algum modo reinam, e governam. O trabalho, e o perigo é dos Heróis; dos sábios é o fruto; aqueles contentam-se com a glória do vencimento, estes o que querem, é a utilidade da vitória; uns reservam para si a vaidade do nome, outros não querem mais do que servir-se da autoridade dele; o guerreiro semeia sangue, para o sábio colher flores. É certo, que cada Potentado não é mais do que um só homem; na campanha sim pode comandar a muitos mil: uma voz, um sinal, um clarim basta para fazer mover um corpo formidável; porém na paz não é assim, porque nela o governo é como uma guerra civil, que se faz entre os mesmos Cidadãos, e entre os mesmos naturais; então mandam os sábios; por ser guerra sem estrondo, não é menos arriscada; nela se vêem traições, ataques, subtilezas; aquilo que em guerra viva decide a espada, na paz decide a pena; esta também corta, ainda que não tão depressa, e nisto mesmo consiste um dos seus modos de cortar; a lentidão aflige à maneira de um martírio, que para ser maior, se faz por arte vagaroso; e com efeito a morte parece que não é morte quando chega, mas sim quando está para chegar; o último instante é insensível, porque é como um tempo, que se não compõe de tempo; a dor para se fazer sentir, necessita de espaço; por isso a agonia não é quando alguém acaba, mas quando está para acabar. Assim são as dilações, de que no ócio da paz se formam os conflitos; estamos vendo acabar-se a nossa vida, sem que se acabe a nossa dependência; esta vai ficando como herança; e para ser herança infeliz, sem estimação, nem preço, sempre passa com a qualidade de incerta, e duvidosa, porque sempre fica dependente da inclinação, do arbítrio, e do juízo humano: isto é o mesmo que não ficar sujeita a cousa nenhuma certa, mas a uma pura sorte. A fortuna, o tempo, a ocasião, o humor, a hora têm mais parte nas decisões, do que a lei, a verdade, e a justiça; esta, ou a sua imagem simbólica, em uma mão tem a balança e na outra a espada; mas que pesa na balança? Ponderações, discursos, e argumentos são as partes por onde o direito se governa; mas são partes, que se não podem pesar, porque não têm corpo, nem entidade; e assim já temos a justiça imprópria, até na mesma ideia da sua representação, e se a quisermos defender pela sua antiguidade, convenhamos em as as razões se pesem; mas em que mãos há-de a balança estar para ser fiel? Nas dos homens, certamente não; nas de uma Deusa sim. A espada tem mais exercício na justiça; por isso sempre está em acção, isto é, levantada; e com efeito o ferir é mais fácil, porque é mais fácil também o descarregar o golpe, que o suspendê-lo: a força que suspende, é violenta, a que descarrega, é natural; mas como pode a justiça ter na espada um exercício justo, se a balança na mão dos homens não tem uso, e se o tem é somente imaginário, e na realidade impraticável? A espada depende da justeza da balança, e assim vem a depender de instrumento inútil; sim depende de uma balança certa, para saber o como, o quando, e em que caso há-de ferir; mas para nosso mal, a balança na mão da Justiça, pintada é que se vê; não porque deixem de haver homens justos, mas porque a justiça verdadeiramente não se pode pesar; é um acto de discurso, e este em cada homem, é sempre incerto, vago, e vacilante. Para dar a cada um o que lhe toca, não basta ter uma vontade perpétua, e constante; nessa mesma vontade é donde o erro se introduz. Finjamos que o discurso é como um campo largo, em que a verde Primavera faz nascer aquela multidão de belas flores, mas entre estas, quem impede que não nasça alguma flor com vício, ou alguma planta agreste, inferior e errante? As flores nascem no campo, os discursos em nós; felices são as flores, pois foram produzidas na terra humilde, e por isso mesmo incapaz de vaidade, e ainda cheia de simplicidade virginal; infelices os discursos, pois nascendo em nós, nascem de um limo pecador, e por isso terra ingrata, impura, e adulterada.