Reflexões sobre a Vaidade dos Homens (1980)/CXXXII
Só Deus governa só. Os Potentados não podem governar, sem terem várias jerarquias, ou ordens de Magistrados; nestes delegam o poder; os Magistrados subdelegam aquele mesmo poder em outros, e estes o tornam a subdelegar; assim se forma um corpo vasto, composto de muitos membros, e todos animados por um mesmo, e único poder; este visto, e tomado na sua primeira origem, é justo, pio, verdadeiro, generoso, legítimo, protector, paterno; é um poder, em que parece está depositado ou delegado o poder de Deus; depois que sai daquele centro para dividir-se, ou repartir-se, logo se altera; enquanto está no trono, é puro; se se afasta dele, degenera; é como uma árvore, que se transplanta para um terreno impróprio; as águas são limpas quando nascem; depois fazem-se imundas, segundo os lugares por onde correm; o espírito não anima as partes, que estão fora do seu corpo, e a alma que parece, que habita em os membros todos, foge, e se retira, dos que foram separados; a claridade da luz não se comunica bem, se a distância em que está é excessiva; o fogo não tem calor, senão dentro da esfera da sua mesma actividade; as cousas postas fora da sua região tomam uma natureza contrária, e ficam outras. Que cousa pode haver, que pareça estar mais fora da sua região, da sua esfera, e do seu centro, do que o exercício do poder, e da justiça na mão dos sábios? Estes são pródigos daqueles atributos, usam deles como cousa emprestada, e alheia; a ciência que os fez subir, é o que desprezam mais; não porque totalmente desprezam a ciência, mas porque esta prescreve certos modos, e limites, que se não podem passar, nem deixar de chegar a eles; esta necessidade serve de angústia: é aperto o haver de seguir precisamente um caminho prescrito, e determinado: a vaidade da ciência não se acomoda em seguir, o que quer é que a sigam; não quer observar a regra, quer fazê-la. Os sábios sofrem mal o serem executores, e não legisladores; e com efeito a execução, soa uma espécie de servidão pública; por isso cada um se forma uma ciência particular, e esta é que propriamente é sua; daqui vêm os diversos pareceres; nem pode deixar de ser, porque nenhum sábio se governa pelos princípios comuns a todos, mas por aqueles que só a eles são comuns; e quando recorrem aos princípios dos outros, é para confirmação dos seus; mas como pode não ser assim, se é regra, que em certos casos não deve a regra servir de regra, nem o princípio de princípio, nem a lei de lei? Então vem a consistir a observância da lei, na transgressão dela, a conformidade com o princípio, consiste em se afastar dele, e a sujeição à regra, consiste em a violar; desta sorte vem a ciência a ser uma faculdade arbitrária, e fundada mais no conhecimento dos casos, do que no conhecimento das leis: estas são as que se aplicam, e na ocasião de serem aplicadas, é que têm o perigo de se quebrarem, ou torcerem; elas se quebram, e se torcem, ainda sem ser por fraqueza de quem as aplica, mas por culpa da mesma cousa. Vemos aqueles sábios, quási sempre desunidos; todos estudam as mesmas leis, mas no modo de as praticar, nenhum concorda; não só disputam quando aprendem, mas também quando sabem; em disputar passam todo o tempo de aprender, de ensinar, e de usar; o que argumenta, e duvida mais, é o que dá melhor sinal de si; o saber embaraçar mais, é o mesmo que saber mais; o aplauso não segue a quem tirou a dificuldade mas a quem a pôs; nem também a quem a desfez, mas a quem a fez; a ostentação não está em fazer assentar no que a cousa é, mas em arguir, e destruir tudo aquilo em que se assentar: célebre ciência, em que os ignorantes, parece que estão de melhor partido que os sábios! Estes vêem tanto, que a multidão das cousas que vêem, os confunde, e cega; aqueles vêem menos, e por isso vêem mais: a abundância de ciência faz aos sábios pobres de saber; neste caso a sabedoria está em poder tornar para o estado de ignorância; à maneira de alguém, que retrocede para buscar o que perdeu; alguma vez sucede a quem caminha, o passar além do lugar para donde vai; então quanto mais caminha, mais se perde; porque busca adiante aquilo, que já lhe fica atrás: tanto erra quem anda menos, como quem anda mais; e tanto se desvia quem não chega ao lugar, como quem o passa. Um vento muito forte ainda que seja favorável, é tormenta; a luz nem por ser muito intensa, é mais clara; as águas, que correm precipitadas, para pouco servem; a grande velocidade as faz inúteis, e incapazes; o peso não só fica sendo errado, por ter de menos, como por ter de mais; as cousas não só se arruínam por fraqueza, mas também por fortaleza; a saúde demasiada passa a enfermidade; o preceito não só se quebra pela diminuição da observância, mas também pelo excesso: algumas virtudes há, que são vícios moderados; a temperatura é como uma raia, que está entre o vício, e a virtude, e que distingue o bem do mal; nas ciências também se peca, por se saber nelas mais do que se deve saber: a nossa compreensão não é infinita; depois que recebe uma certa porção de inteligência, fica sem poder receber mais, e se se lhe quer introduzir com violência, cansa, e fica como imbecil, e enervada. Depois que um vaso está cheio de licor, o que se lhe deita mais perde-se, e muitas vezes do seu mesmo fundo se faz levantar uma poeira subtil, que o turva; daqui vem, que os sábios são confusos comummente, embaraçados, e irresolutos, à maneira de quem leva sobre si um grande peso, que sempre vai com medo, e devagar: a imensidade de regras, de opiniões, e de doutrinas, de tal sorte os ocupa, que ficam como presos, e imóveis: a variedade de razões, e de razões contrárias, que um sábio acha em qualquer cousa, o suspende em forma, que fica sem saber, qual razão há-de seguir; em todas considera fundamentos admiráveis para serem aprovadas, e para o não serem, também em todas considera fundamentos grandes; daqui vêm as dilações, irresoluções, e perplexidades; este é o caso em que aquilo, que não decide a inclinação, decide a hora; a fortuna é a que move a pena, que absolve, ou que condena. O sábio que flutua no meio de razões, e oposições iguais, finalmente lá se deixa levar por alguma razão exterior, e indiferente; as cousas remotas, que não têm relação alguma, nem conexão com a matéria, entram em concurso, com as que formam o corpo, e substância dela: o litigante a quem o Juiz viu, ou falou ultimamente; aquele, que sabe ser mais cortesão, cuja voz é mais sonora, e cujo nome é fácil de pronunciar, ou de escrever, esse é o que vence, e a quem se julga a palma; esta não foi tirada do campo da peleja, mas de outro lugar estranho, o independente. Assim governam os sábios, por isso há tanta incerteza, e mudança nas suas decisões; o que um disse, outro reprova; o que um fez, outro emenda; e muitas vezes na emenda é que está o erro; semelhante ao mal, que procedeu unicamente do remédio; cada um defende a sua opinião, e persiste nela; e cada um se persuade, que o erro não esteve na decisão, mas na reformação; em todos fica constante a vaidade da ciência; e algum que se retracta, também o move a vaidade de não ser, nem parecer-se com os outros: uns fazem vaidade de serem infalíveis, outros também se desvanecem de mostrarem, que o não são; deste género são poucos; porque a vaidade de desprezar a vaidade é muito rara, e em si mesma é estimável. A virtude, ainda que venha de um princípio vicioso, sempre é virtude de algum modo, ou mais ou menos qualificada; o obrar bem por qualquer motivo que seja, é bom; as nossas acções, não se determinam pela causa que mostram, mas por outra que se não vê; e entre todas as causas, aquela que consiste em uma vaidade inocente, é menos má. Que importa, que a vaidade seja a que incite o exercício do valor, da constância, da ciência, e da justiça? O impulso, que move, fica separado da cousa movida: dous licores contrários, por mais que se misturem, sempre parece que um foge do outro, e se separa; o artífice, o instrumento, a obra, tudo são partes distintas; a vaidade pode incitar a virtude, mas não incorporar-se a ela; pode juntar-se, mas não unir-se.