Reflexões sobre a Vaidade dos Homens (1980)/CXXXIV
A ciência de fazer justiça é donde a vaidade é mais perniciosa. Quem dissera, que também há vaidade em se dar o que é seu a cada um! Não só há vaidade nisso, mas essa mesma vaidade é a que faz muitas vezes, que a cada um se não dá, o que é certamente seu. A corrupção das gentes está tão espalhada, que faz parecer virtude, uma obrigação que se cumpre, uma dívida que se paga, ou uma verdade que se diz. As cousas não se regulam pelo que deviam ser, mas pelo que poderiam ser; isto é, o depósito que se entregou, podendo-se negar; a dívida que se podia não pagar, e se pagou; a verdade que se disse, podendo-se esconder; e assim a privação do vício serve de virtude actual; e de alguma sorte, para ser um homem virtuoso, não é necessário que faça algum acto de virtude, basta que não faça algum de vício; e de algum modo também, o ser leal não depende do exercício da lealdade, basta que se não exercite alguma aleivosia. O mundo está tão pervertido, que a bondade dos homens não se tira da razão de serem bons, mas da razão de não serem maus: o nome da virtude, não vem da virtude presente, mas do vício ausente; o merecimento das cousas, não se toma pelo que são, nem pela forma que têm, mas pelo que não são, e pela forma contrária que não têm. Daqui vem que uma acção é louvável, só porque não é repreensível. Aquele meio de não ser, nem uma cousa, nem outra, parace que o não há já; ficaram os extremos, e extinguiu-se o meio. Tudo propende para o que não deve ser, por isso não sei se podemos admirar-nos, de que as fontes ainda corram para o mar; de que o fogo ainda abrase; de que o ar ainda se mova; e de que a terra ainda fertilize. Os elementos não se mudam, mas é, porque estão subordinados às primeiras leis, que lhes deu o autor do mundo; temos o uso deles, o domínio não; devem servir-nos, e não obedecer-nos: a nossa prevaricação estende-se a tudo quanto foi, ou é obra nossa; por isso a vaidade se comunica, e tem jurisdição em tudo aquilo em que nós a temos. Daqui procede, o ser a ciência da justiça humana, uma ciência mudável, inconstante, e vária; porque as leis da vaidade sabem confundir-se com as leis verdadeiras da justiça. A vaidade também tem regras, e Doutores. Quantas injustiças não terá feito a vaidade de fazer justiça! A mesma vaidade que inspira a rectidão, a embaraça. Revista-se embora o soberbo Magistrado de um semblante rugoso, implacável, adverso, e truculento; faça-se irrisível totalmente, áspero, severo, e desabrido; mostre um aspecto sombrio, terrível, taciturno, e intratável; fale de um ar, e tom de soberania; tenha sempre o pensamento distraído, como que o tem todo ocupado em Ulpiano, e Bártolo, ou que está combinando na memória algum ponto de grande consequência, de que talvez depende a economia do Universo; nada disso pertence à natureza do Magistrado, à natureza da vaidade sim. Um jurisperito incivil quer que até na gravidade do seu vulto se conheça a inflexibilidade do seu ânimo; e que se veja até na sua forma exterior, uma forma judicial. Aquele frontispício, cujo ornato consiste na desordem, é a primeira cousa que a vaidade expõe, como em espectáculo, quando quer alcançar uma aclamação de justo. Mas quantas injustiças não produz o desejo, ou a vaidade de adquirir aquela aclamação! Não pode haver justiça, quando esta se exercita por algum fim, que não seja por ela só; nem pode ser justo nunca, quem tem por objecto principal, a glória de o parecer. Tudo o que se busca por ostentação, busca-se por qualquer meio que for, isto é, ou justo, ou injusto; quem procura a voz da fama, que lhe importa a figura do instrumento que há-de fazer aquele som; o que o fizer mais espantoso, e o espalhar mais longe, esse é o que convém; nem importa que a voz seja sonora, e certa, o ponto é que seja forte. Quem é muito sensível à vaidade do nome, e à vaidade da opinião, comummente é insensível à realidade da cousa; esta fica desprezada, se se pode desprezar com segurança, e sem receio; quando só se quer o efeito, não se procura, nem atende a causa; por isso a quem deseja o aplauso da virtude, esta fica sendo indiferente; e a quem deseja o aplauso da justiça, também esta fica sendo menos importante. Daqui vem, que a justiça costuma fazer-se para soar: aquela que soa mais (ou pela grandeza da matéria, ou do sujeito), essa é a mais agradável a quem a faz; porque dela se forma a voz da fama, e juntamente nasce dela o nome, e reputação de justo. A vaidade não se contenta, com o que as cousas são, mas com o que parecem, contanto que pareçam grandes; nem faz caso do que a cousa é, mas do que se diz que é: estima o merecimento não segundo a qualidade dele, mas segundo o efeito, que faz na estimação das gentes: não faz distinção entre o louvor extorquido, e o louvor merecido justamente, basta-lhe que seja louvor; e isto é porque a vaidade não se formaliza da verdade do princípio; o que quer é, que os homens se admirem; que tomem uma exalação por um estrela, importa pouco; daqui vem, que uma acção ilustre, mas feita em segredo, a vaidade a tem por infeliz; a virtude escondida, e que não se sabe, a vaidade a julga por uma virtude perdida, e morta.