Reflexões sobre a Vaidade dos Homens (1980)/CXXXIII
A ciência de fazer justiça é verdadeiramente ciência de Deus, e dos seus substitutos na terra, que são os Soberanos; é impossível dar-se injustiça em Deus; nos Soberanos, não é impossível, mas é impróprio; nos mais homens a injustiça é quási natural. Quais são aqueles de quem se possa dizer exactamente, que não têm interesse, inclinação, ou dependência? Qualquer destas circunstâncias serve de impedir o exercício, e ciência da justiça. Só os Reis relevam imediatamente de Deus, e só de Deus dependem: os mais homens todos dependem uns dos outros, porque há mil modos de depender: aqueles mesmos, a quem a altura do lugar faz parecer totalmente independentes, são os que muitas vezes dependem mais: aqueles a quem o merecimento, ou a fortuna, pôs em um certo grau de autoridade, necessitam de adquirir nome, e reputação; necessitam da opinião, e aprovação dos outros homens. Que maior necessidade de dependência! A opinião, e aprovação comua, não se forma do parecer de um só, nem ainda do parecer de muitos, mas do parecer de todos; e desta sorte os mesmos de quem todos dependem, são também os que dependem de todos. A opinião das gentes não é cousa tão pouca, que dela não dependa a conservação do lugar, e da autoridade: o receio de que o poder se perca, ou o respeito diminua, é o que ocupa cruelmente aos que estão em lugares eminentes; nestes ninguém está seguro, nem ainda os mais felices, porque se uma mão poderosa os sustém como elevados no ar, pode largá-los, e quando crêem que estão em assento firme, não estão senão suspensos: as asas de uma boa fama são as que os sustentam; se elas faltam, o mesmo braço, que os suspende, os precipita: o favor supremo, raramente é indiscreto, e se acaso se inclina sem razão, isto é, se alguém por engenho, e arte, se fez injustamente amar de um Soberano, este no dia do seu furor castiga aquela usurpação, e subrepção de amor; castiga o crime de quem se fez amar por artifício. A inclinação dos Reis costuma fundar-se em merecimento, e virtudes; destas se compõe o encanto mágico, que atrai a si um favor prudente; mas se foram fingidas as virtudes, e se os merecimentos não foram verdadeiros, irrita-se aquele mesmo favor, à proporção que tem pejo da sua preocupação, e credulidade: nenhum engano é mais sensível, que aquele que se dirige a roubar o afecto; a alma, que amou, não só sente o ter amado injustamente, mas sente também o não dever amar mais, porque a impressão, que o amor fez, não se pode tirar sem estrago, e dor da parte adonde está: o que foi gravado profundamente, não se desfaz sem ruína, e perda: para aniquilar-se a forma de uma estampa, é necessário perder-se a estampa toda; não só a figura, que ela representa, mas também o corpo, em que a representação está. Aqueles pois, que devem às letras a sua exalação, e que entendem, que feitos árbitros do mundo não dependem dele, são os que na verdade estão mais dependentes, porque a fama da ciência, que os conserva, também é mudável, e inconstante, e o mesmo favor que os fez subir como sábios, pode fazê-los descer como ignorantes. A ciência não é qualidade tão certa, e permanente que não possa sofrer alteração. Tudo em nós tem decadência, e só a ciência a não há-de ter? Nem é preciso, que concorra alguma causa natural; as paixões bastam para perverterem as ciências; não tomadas universalmente como elas são em si, mas tomadas como são em cada um de nós. Uma pequena nuvem basta para escurecer a luz do Sol; as paixões são como muitas nuvens juntas. Aquele, em quem a ira não pode encobrir a luz do entendimento, e da ciência, a ambição há-de encobri-la, e se o não fez, poderá fazê-lo a grandeza do respeito, e na falta deste, lá vem o amor, não só armado de setas, mas de lágrimas; não só fiado no seu império, mas também na sua submissão; não só com ânimo de render, mas de render-se; fatal combate, em que a maior força consiste na falta de fortaleza, e em que o ficar vencido, é o meio por onde a vitória se segura; mas se nem o amor, nem a ambição, nem a grandeza puderam conquistar um peito heróico, lá vem finalmente a vaidade, e esta sempre vem feita invisível, e acompanhada de todas as paixões, mas disfarçadas: o desejo, a dissimulação, a preguiça, e a inveja, vêm cobertas de um saial modesto, e trazem no semblante um ar composto, e humilde; a vingança, a soberba, a rapina, e a altivez, vêm cobertas de fumos de várias cores, e de diferentes formas. Assim se introduz enganosamente a vaidade, e assim vive em nós sempre escondida, como inimigo oculto, e traidor; ela transfigura os vícios para os fazer apetecíveis, e quando os deixa ver, é por algum interposto meio, por onde eles mostrem o contrário do que são. Havendo tantas ciências, apenas há alguma que faça, que nos conheçamos a nós, nem aos nossos vícios, nem à nossa vaidade. As ciências humanas, que aprendemos, comummente são aquelas, que importava pouco que soubéssemos; devíamos aprender-nos a nós, isto é, a conhecer-nos; de que serve o saber, ou pretender saber, como o mundo se governa, ao mesmo tempo que ignoramos, o como nos devemos governar? Para tudo somos sábios, só para nós somos ignorantes. Falta-nos o conhecimento próprio; não porque nos faltem regras, e preceitos para que possamos conhecer-nos, mas porque a vaidade se opõe a uma ciência, que faz humilde a quem a sabe: é arte mui dificultosa de aprender aquela que nos tira a presunção. Que inútil cousa é um espelho para quem sabe que se há-de ver nele horrendo, disforme, e macilento! Por isso fica sendo como uma alfaia sem uso, e desprezada: o ser fiel, e verdadeiro, é crime, quando a verdade molesta, e abate; o espelho que não lisonjeia é prejudicial.