Reflexões sobre a Vaidade dos Homens (1980)/CXXXVI
Na ciência de julgar, alguma vez é desculpável o erro do entendimento, o da vontade nunca; como se o entender mal não fosse crime, erro sim; ou como se houvesse uma grande diferença entre o erro, e o crime: o entendimento pode errar, porém só a vontade pode delinquir. Assim se desculpam comummente os julgadores, mas é porque não vêem, que o que dizem procedeu do entendimento, se bem se ponderar, procedeu unicamente da vontade. É um parto suposto, cuja origem, não é aquela que se dá. Querem os sábios enobrecer o erro, com o fazer vir do entendimento, e com lhe encobrir o vício que trouxe da vontade; mas quem é que deixa de não ver, que o nosso entendimento quási sempre se sujeita ao que nós queremos; e que o seu maior empenho, é servir à nossa inclinação; por isso raras vezes se opõe, e o mais em que se ocupa, é em conformar-se de tal sorte ao nosso gosto, que ainda a nós mesmos fique parecendo, que foi resolução do entendimento aquilo que não foi senão acto da vontade. O entendimento é a parte que temos em nós mais lisonjeira; daqui vem que nem sempre segue a rãzão, e a justiça, a inclinação sim; inclinamo-nos por vontade, e não por conselho; por amor, e não por inteligência; por eleição do gosto, e não por arbítrio do juízo: as paixões que nos movem, nos inclinam; a todas conhecemos, isto é, sabemos que amamos por amor, que aborrecemos por ódio, que buscamos por interesse, e que desejamos por ambição; mas não sabemos sempre, que também a vaidade nos faz amar, aborrecer, desejar, buscar; daqui vem que o julgador se engana, quando se presume justo, só porque não acha em si, nem amor, nem ódio, nem ambição, nem interesse; mas não vê, que é vaidoso, e que a vaidade basta para o fazer injusto, cruel, tirano. Não vê, que se não tem amor a outrem, tem-no a si; que se não tem ódio ao litigante humilde, tem-no ao poderoso, só porque na opressão deste quer fundar a sua fama; não vê, que se não tem interesse de alguns bens, tem interesse de algum nome; e se não tem ambição das honras, tem ambição da glória de as desprezar; e finalmente não vê, que se lhe falta o desejo da fortuna, sobra-lhe o desejo da reputação. Que mais é necessário para perverter um julgador? E com efeito que importa, que a corrupção proceda de um princípio conhecido, ou de um princípio oculto, isto é, de uma vaidade, que o mesmo julgador não conhece, nem percebe? O efeito da corrupção sempre é o mesmo. Que importa que o julgador se faça injusto, só por passar por justiceiro? A consequência da injustiça também vem a ser a mesma; o mal que se faz por vaidade, não é menor, que aquele que se faz por interesse; o dano que resulta da injustiça, é igual; o juiz amante, ou vaidoso, sempre é um juiz injusto.