Reflexões sobre a Vaidade dos Homens (1980)/CXXXVII
Não é assim o Magistrado, ou o julgador prudente: este é severo sem injúria, nem dureza; inflexível sem arrogância, recto sem aspereza, nem malevolência; modesto sem desprezo, constante sem obstinação; incontrastável sem furor, e douto sem ser interpretador, subtilizador, ou legislador; o seu carácter é um ânimo cândido, sincero, e puro; é amigo de todos, inimigo de ninguém; é alegre, e afável por natureza, mas reservado por obrigação do ofício: é sensível ao divertimento honesto, mas sem uso dele por causa do lugar: em tudo é moderado, civil, circunspecto, diligente, laborioso, e atento; a ninguém é pesada a sua autoridade, e quando foi promovido a ela, todos conheceram que foi justa, e acertada a eleição; todos viram que tinham nele um protector seguro da verdade, e um medianeiro discreto, e favorável para tudo o que fosse favor, clemência, generosidade; chegou àquele emprego por meio das virtudes, e não por meio da fortuna; um alto merecimento o fez chamar; e as gentes se admiraram, não de que fosse chamado, mas de que o não fosse mais cedo; a ele não assombra nem a grandeza dos sujeitos, nem dos lugares, nem das matérias; não atende mais do que à justiça; a esta tem por objecto singular, para esta é que olha; a razão é a sua regra, ele a segue, e a aclama em qualquer lugar que a ache: no seu conceito não valem mais, nem o pobre por humilde, nem o grande por poderoso; distingue as pertensões dos homens, pelo que elas são, e não por de quem são; não atende à qualidade dos rogos, mas à qualidade das cousas; uma vida sem reparo, nem desordem, foi um dos requisitos por onde se habilitou; outros há a quem não é ventajoso, que se vejam os passos, que já deram, mas somente aqueles, que vão dando; e a quem não será útil, se ponderem as acções antecedentes; e ainda as presentes, não passam sem murmuração, e queixa. O julgador benigno não receia, que se saiba a sua vida, que se diga, e que se escreva; o seu panegírico só depende da verdade, do encarecimento, ou da lisonja, não; ele mesmo é o seu elogio. Finalmente o julgador sincero tem das ciências o que basta para saber julgar, e não o que basta para saber embaraçar; alguns há, que fazem do conhecimento da razão uma ciência imensa, como se fosse necessário arte para se conhecer o Sol. O caminho da justiça (para quem tem vontade de andar por ele) é um caminho direito, espaçoso, claro, fácil, e aprazível; as flores, que o bordam de uma, e outra parte, todas são perpétuas, porque nunca murcham; uma Primavera constante as reverdece, e alenta; o caminho porém das injustiças é um caminho difícil, espantoso, e escuro; umas vezes é por cima de rochedos escarpados, por onde a cada passo se encontra um precipício; outras vezes é por vales estreitos, sinuosos, e profundos, e donde as árvores são todas infecundas, têm pálidas as folhas, e nascendo desordenadas, e confusas, fazem o lugar seguro, e próprio para traições, aleivosias, furtos, assassínios; as mesmas sombras infundem pavor, e fingem vultos enormes; um ar caliginoso, e denso, apenas pode alvergar aves nocturnas de presságio infausto; os rios, que ali se vêem, são negros, e têm no abismo o fundo, apenas podem criar monstros anfíbios, o silêncio, com que passam, os faz ainda mais fúnebres, e tristes, como se nascessem do Estige, do Averno, ou do Cocito. Esta figura representa o caminho da injustiça, caminho, que não se sabe sem estudo, porque todo se compõe de circuitos, rodeios, e desvios. Mas que infeliz estudo é este, em que se aprende muitas vezes o caminho por onde se vai ao Inferno! Por isso aquele digno Magistrado, de uma fiel jurisprudência, só quis saber, o como se deve julgar, e não o como se pode julgar; e da mesma sorte só quis saber, o como se devem fazer as cousas, e não o como se podem fazer; daqui lhe procedeu o serem justas as suas decisões, e ser o seu voto acertado sempre; nunca teve por objecto, senão a justiça, e a razão, e estas só consideradas em si mesmas, sem alteração, e no seu primeiro estado de inocência, e de pureza; nas leis nunca viu mais nem menos do que aquilo, que elas têm, nem as soube acomodar a algum sentido esquisito, e raro, por onde viesse a ter lugar a inveja, a ambição, e a vingança. Finalmente aquele julgador é verdadeiro só por amor da verdade; é justo só por amor da justiça; ele conhece os seus próprios movimentos, e entre estes segue unicamente aqueles, que têm por princípio a justiça, e a verdade. Não se desvanece das virtudes, que conhece em si; o aplauso só quer, que seja da virtude, e não seu; o louvor quer, que se dê à razão, e não a ele; parece-lhe, que em obrar como deve, não merece nada; não se admira da justiça, que exercita por força da obrigação; das acções memoráveis, em que tem parte, ele se supõe um instrumento necessário; sendo assim, não o pode vencer a vaidade. Esta, que em todos os homens é como um afecto ou paixão inevitável, só naquele julgador fica sendo como afecto sem vigor, desconhecido, e estranho, mas por isso mesmo, e sem cuidado, conseguiu, e tem um nome venerável, e com circunstância tão feliz, que esse mesmo nome, que conserva, contém em si uma ilustre, e saudosa recordação.