Reflexões sobre a Vaidade dos Homens (1980)/CXXXVIII
A vaidade da origem, é uma seita, que se fundou na Europa da decadência de outras da mesma espécie, ou semelhantes: aquela parte por onde o mundo se começou a polir, foi o donde os homens descobriram a invenção maravilhosa da nobreza. A sucessão dos séculos tinha feito perder a inteligência, e usa de muitos artifícios úteis, e admiráveis; mas em recompensa fez achar no sangue muitas diferenças, que ainda se não tinham advertido. Os homens bárbaros não puderam ver no sangue outras cousas mais, do que aquelas de que consta um corpo físico; e naquele humor, o mais que viram, foi a razão de mais, ou menos líquido, e a razão de mais, ou menos cor; destes dous princípios fizeram resultar todas as mudanças de que o sangue é susceptível, e por causa dele, o homem. Averróis, Avicena, Hipócrates, e Galeno; uns, famosos Médicos e Filósofos Arábios; os outros, também famosos Filósofos, e Médicos Gregos, não conheceram (segundo se diz) a circulação do sangue. Os que lhes sucederam depois, não só fizeram aquela grande descoberta, mas também entraram a seguir a ideia de aplicar, ou considerar no sangue muitas razões, e substâncias importantes, de que a natureza, que o faz, e cria, não tinha, nem ainda tem, notícia alguma, de sorte, que nesta parte pode dizer-se, que a natureza não sabe o que faz; e com efeito o que sabe é, que o sangue é uma entidade material, sujeita a todas as leis da hidrostática, e do equilíbrio, e que forma um líquido espirituoso, vital, universal, e igual em tudo quanto respira, e é sensitivo; o mesmo modo, a mesma arte, os mesmos ingredientes, de que a natureza se serve para fazer o sangue de um Leão, de um Elefante, ou de uma Águia, são os mesmos de que se serve também para formar o sangue de uma Pomba rústica, ou de um Cordeiro manso; as produções são diversas, a fábrica é a mesma; não há diferença nos princípios, nas figuras sim. Se o Leão se desvanece, é porque tem a força, e não porque tem o sangue de Leão; e ainda se se desvanece pela força, é quando se compara ao Cordeiro débil, e não se é comparado a outro Leão. Se o Elefante fosse presumido, seria por ter a corpulência, e não por ter o sangue de Elefante; e ainda no que toca à corpulência, a presunção seria a respeito de outros animais de menos estatura, e não a respeito de outros Elefantes. Se uma Águia se jactasse, havia de ser de subir mais alto, e não de ter o sangue de Águia; e ainda a jactância do subir, só seria a respeito do Cisne húmido, e pesado, e não a respeito de outras Águias. Não é assim o homem; porque o seu desvanecimento, a sua presunção, e a sua vaidade é dirigida sempre a respeito dos mais homens. O sangue é o lugar em que fazem consistir a singularidade, ou superioridade de uns a outros; naquele licor é o donde consideram como ocultas, e invisíveis todas as razões de diferenças; ali puseram o assento da Nobreza, e dali a fazem sair como de uma fonte original, e composta de infinitas distinções, qualidades, graus, quilates. Os homens das outras regiões não distinguem os sangues, senão pelas suas proporções elementares; isto é pela proporção dos elementos, ou partes, de que os mesmos sangues se compõem; a diversidade que notavam, consistia, em ser um sangue mais, ou menos cálido; mais ou menos denso; mais ou menos subtil: não viram aquelas nações remotas, o que com mais engenho, e estudo chegaram a ver as nações da Europa; isto é, que há um sangue humilde, vil, abjecto, e baixo; e que há outro nobre, ilustre, preclaro, esclarecido; mas se se perguntar a um sangue, quem o fez humilde, e a outro, quem o fez nobre, o primeiro há-de dizer, que uma pobreza cruel, e dilatada, o invileceu; e o segundo dirá, que uma pomposa, e dilatada riqueza o ilustrou. Quem dissera, que a fortuna faz o sangue! Não bastava, que essa mesma fortuna tivesse poder nas cousas, que nos rodeiam, sem o ter também naquilo, que está dentro de nós? Parecia-nos, que só a natureza dava o sangue, e que este só da natureza dependia; mas agora vemos, que a fortuna o muda.