Reflexões sobre a Vaidade dos Homens (1980)/LXVIII
O aplauso é o ídolo da vaidade, por isso as acções heróicas não se fazem em segredo, e por meio delas procuramos que os homens formem de nós o mesmo conceito, que nós temos de nós mesmos. Raras vezes somos generosos, só pela generosidade, nem valorosos só pelo valor. A vaidade nos propõe, que o mundo todo se aplica em registar os nossos passos; para este mundo é que obramos; por isso há muita diferença de um homem, a ele mesmo: posto no retiro é um homem comum, e muitas vezes ainda com menos talento que o comum dos homens; porém posto em parte donde o vejam, todo é acção, movimento, esforço. Nunca mostramos o que somos, senão quando entendemos que ninguém nos vê, e isto porque não exercitamos as virtudes pela excelência delas, mas pela honra do exercício, nem deixamos de ser maus por aversão ao mal, mas pelo que se segue de o ser. O vício pratica-se ocultamente, porque cremos que a ignomínia só consiste em se saber; de sorte que se somos bons, é por causa dos mais homens, e não por nossa causa; haja quem nos assegure, que não há-de saber-se um desacerto, e logo nos tem certo, e disposto para ele; a dificuldade não está em persuadir a nossa vontade, mas o nosso receio. Os agravos ocultos calam-se, não só porque em serem ocultos perdem muito da qualidade de agravos, mas também porque a queixa não publique o atrevimento da ofensa; a vaidade não sente as cousas pelo que são, mas pelo que se há-de dizer delas: mil vinganças há que se suprimem só pelo perigo de que se não perceba o desacato, pela vingança. Quem dissera, que sendo a vaidade, de si mesma uma cousa arrebatada, haja ocasiões, em que nos pacifique, e ensine a ser prudentes! Há uma espécie de arte em se disfarçar a injúria, de que não há prova; a mesma vingança leva consigo uma sorte de injúria, porque a confessa: a satisfação pública supõe pública a ofensa, que muitas vezes não o é, ou ao menos não é tanto como a satisfação a faz. A paciência é uma virtude com nota, mas raramente se arrepende quem a tem; em lugar que o arrojo costuma trazer depois um sentimento largo; em um instante nos precipita a vaidade naquilo que nos vem a servir de tormento toda a vida; mas que muito se a mesma vaidade às vezes nos faz perder a vida em um instante. Quem disse que o amor é cego, errou; mais certo é ser cega a vaidade. O emprego do amor é a fermosura, e quem nunca a viu como a há-de amar? No amor há uma escolha, ou eleição, e quem não vê, não distingue, nem elege; o amor vem por natureza, a vaidade por contágio; o amor busca uma felicidade física, e por consequência material e visível; a vaidade busca um bem de ideia, e fantasia, e por consequência cego; a estimação dos homens é o objecto maior da vaidade; objecto vago, e que não tem figura própria em que possa ver-se. Há porém na vaidade a diferença, que tudo o que se faz por vaidade, queremos que se veja, que se diga, e que se saiba; então é fortuna a publicidade, se é que nos não parece, que o mundo inteiro não basta para testemunha; daqui vem que um furor heróico até chega a invocar o Céu, e a terra, para estarem atentos a uma acção; como tudo se faz pelo estímulo da vaidade, por isso se julga perdida uma façanha, que não tem quem a divulgue; como se um acto generoso consistisse mais em se saber, do que em se obrar. A vaidade, que nos move, não é pela substância da virtude, mas pela glória dela.