Reflexões sobre a Vaidade dos Homens (1980)/LXXV
A falta de Religião, e de bons costumes, faz cair o homem no estado total de perversidade; a falta de Religião consiste em se não temer a Deus, a falta de costumes resulta de se não temer os homens; e verdadeiramente quem não temer a Lei de Deus, nem as leis dos homens, que princípio lhe fica por onde haja de obrar bem? A nossa natureza propende para o mal, por isso foi preciso prescrever-lhe um certo modo de viver; vivemos por regras. No exercício do mal achamos uma espécie de doçura, e de naturalidade, as virtudes praticam-se por ensino: o vício sabe-se, a virtude aprende-se. Miserável condição do homem! O que devia saber, ignora, e o que devia ignorar, sabe: para o que nos é útil, necessitamos de estudo, e para o que nos é pernicioso não; para o bem necessitamos de lembrança, e para o mal de esquecimento. É necessário que nos esqueçamos do mal, que já sabemos, e que nos lembremos do bem, que devemos saber; uma cousa custa-nos a lembrar, a outra custa-nos a esquecer. O vício sabemos sem arte, sem tempo, sem mestre, e sem trabalho; a virtude não vem comummente, senão como fruto da experiência, da meditação, dos preceitos, e dos anos: para o vício não necessitamos de conhecer, nem saber nada; para a virtude é-nos preciso conhecer, e saber tudo. Dificultosa empresa! Exercitamos o vício, ficando da mesma sorte que somos; em lugar que as virtudes, não as praticamos, sem que nos mudemos; toda a vida levamos nesta emenda: feliz o que a consegue! Um homem às avessas seria um homem perfeito. Para obrarmos bem, não temos mais do que consultar a natureza, e fazer o contrário; se este documento fosse universal, e não tivesse alguma, ou muitas limitações, estava achado o meio de abreviar uma das ciências que nos é mais importante; então cada um de nós tinha em si o caso, e a lei; só com a diferença, de que por obrigação da mesma lei, se havia de seguir a disposição, que lhe fosse mais contrária; a sua observância devia consistir na inobservância, e a obediência na desobediência; e com efeito há muitas cousas, que as não vê quem está no mesmo lugar, mas sim quem está em lugar oposto; outras conhecem-se melhor por aquilo que lhe é desconforme; e outras, para serem vistas como são, não se hão-de ver direitamente. Há muitas partes donde se não pode chegar, se logo no princípio se não toma uma derrota falsa; e ainda nas verdades há algumas, que se não podem alcançar, senão pelo caminho do erro; para acertar também é necessário ver primeiro o desacerto; a qualidade da luz distingue-se melhor pelos efeitos da sombra: quem olha para os montes do Ocidente, vê primeiro nascer o Sol, do que quem inclina a vista no Oriente. E assim vimos ao mundo para fugirmos de nós, isto é das nossas paixões, e entre elas das nossas vaidades; destas porém não devemos fugir sempre, porque a vaidade às vezes é um vício, que serve de moderar, ou impedir os outros; e com efeito quem não tem vaidade alguma despreza a reputação, e por consequência a honra; esta constitui uma religião humana, que se não pode desprezar sem crime; por isso o homem de iniquidade é a quem desemparou não só a virtude da razão, mas também o vício da vaidade. Daqui vem que é útil o ter alguma tintura de vaidade, a substância não; não há-de ser o corpo, mas a superfície.