Reflexões sobre a Vaidade dos Homens (1980)/LXXVI
Nos contratos tem pouca parte a boa fé; as obrigações não bastam, e as cláusulas, por mais que sejam fortes, todas se controvertem, e pervertem: as condições, por mais que sejam claras, escurecem-se; nunca faltam pretextos para duvidar, nem meios para se fazer questão daquilo, em que a não pode haver. Da falta da boa fé nasce a dúvida, da dúvida nasce o argumento, do argumento a desunião, e desta a dissolução do contrato, ou a acção para o desfazer. No princípio das nossas convenções ninguém adverte por onde possa nelas entrar a controvérsia, depois de celebradas em cada ponto se acham mil motivos de disputa; uma vírgula de menos, ou de mais, é bastante fundamento para uma larga discussão. Quando se não pode negar o ajuste nega-se-lhe o sentido; e este quando se não pode mudar, interpreta-se, e vem a ser o mesmo: o que não tem interesse em cumprir o ajuste é o que descobre nele as implicâncias, e defeitos, que os outros lhe não vêem: não há cousa mais subtil do que a malícia; a sinceridade é simples, grosseira e inocente: o engano todo se compõe de arte; por isso a perspicácia nos homens é qualidade suspeitosa, e que tem menos valor, que o que comummente se lhe dá; porque se não é sinal de um ânimo dobrado, e infiel, ao menos é prova de que o pode ser. Quem sabe o como o mal se faz, está mui perto de o fazer; e quem sabe o como o engano se pratica, também não está longe de enganar. A ciência do engano é já um princípio dele. Que lhe falta a ocasião, e a vontade? A ocasião pode oferecer-se, e a vontade poucas vezes resiste à ocasião. Por isso nos contratos é mais perigosa a fé nos que sabem mais; o arrependimento é certo, quando em um ajuste, ou não há conveniência, ou esta já passou: queremos afastar-nos do contrato; o ponto é saber o como; e assim para a infidelidade só nos falta o modo, a resolução não. O nosso cuidado todo está em descobrir o expediente, e isto em ordem a mostrar, que se mudamos, é por vício do contrato, e não por nosso vício. A repugnância voluntária, queremos fazer passar por necessária: o violar a boa fé nunca nos serve de embaraço, contanto que a violação se atribua a outrem; e o ser a culpa nossa não importa, contanto que pareça alheia; aquilo em que ontem não havia nada de impossível, porque era questão de receber, hoje é todo impraticável, porque é questão de dar; ontem parece que os montes se reduziam a planícies, hoje as planícies se reduzem a montes. Qualquer cousa é um obstáculo intratável: assim devia ser, porque o prometer é fácil, o cumprir dificultoso; para prometer basta a intenção. Quem promete, exercita um acto de liberdade, por isso pode haver gosto na promessa; quem cumpre, já é por força da obrigação, por isso em cumprir há uma espécie de violência: a ninguém se obriga a que prometa, a que cumpra sim; no prometer fazemos nós, no cumprir fazem-nos fazer; em uma cousa nós somos o que obramos, na outra não; para aquela vamos, para esta levam-nos; no tempo de prometer, o que vemos, são agrados, no tempo de cumprir, o que achamos, são durezas; uma cousa nos inclina, a outra ofende-nos; quando prometemos, ficamos bem connosco, porque nunca faltam agradecimentos, e lisonjas, e por consequência vaidades; quando havemos de cumprir, ficamos mal connosco, porque comummente nos arrependemos. Que cousa é o arrependimento, senão uma ira contra si próprio? Estes são os motivos de que nasce a deslealdade nos contratos; e que poucos se haviam de observar, se a vaidade que em tudo nos governa, não nos obrigasse a guardar a fé nas nossas convenções! Estas, quando se cumprem, não é por vontade, mas por vaidade; como o nosso empenho é conservar a estimação, e opinião dos homens, por isso tememos que alguém diga, que mudamos, que faltamos ao ajuste, e à palavra, ou que enganamos: todas estas expressões infamam, porque contêm um carácter de reprovação universal, trazem o desprezo em consequência, e se se justificam, fazem perder o nome, e o respeito, à maneira de uma proscrição, ou anátema civil; por isso a vaidade se estremece, e nos obriga a ser leais, por força da nossa mesma vaidade. É justiça rigorosa: de sorte que a vaidade sendo uma parte de nós mesmos, contra nós mesmos se revolta, e se dirige; e assim são poucas as cousas, que fazemos só pela obrigação, que temos de as fazer; é necessário que outro maior motivo nos incite; o que não fazemos pela verdade, fazemos pela vaidade, e desta sorte tudo quanto obramos, é por um princípio vicioso: o bem muitas vezes desce de uma origem má; a razão no homem é como um licor precioso em um vaso impuro; o licor sempre se contamina com a infecção do vaso; este em nós é a vaidade.