Reflexões sobre a Vaidade dos Homens (1980)/LXXXIII
A mais pura alegria é aquela que gozamos no tempo da inocência; estado venturoso, em que nada distinguimos por discurso, mas por instinto; e em que nada considera a razão, mas sim a natureza. Então circula veloz o nosso sangue, e os humores que em um mundo novo, e resumido, apenas têm tomado os seus primeiros movimentos. Os humores são os que produzem as nossas alegrias; e com efeito não há alegria sem grande movimento; por isso vemos, que a tristeza nos abate, e a alegria nos move: o sossego ainda que indica contentamento, contudo mais é representação da morte que da vida; e a tranquilidade pode dar descanso, porém alegria não a dá sempre. Mas como pode deixar de ser pura a alegria dos primeiros anos, se ainda então a vaidade não domina em nós? Então só sentimos o bem, e o mal, que resulta da dor, ou do prazer; depois também sentimos o mal, e o bem da opinião, isto é, da vaidade; por isso muitas cousas nos alegram, que tomadas em si mesmas, não têm mais bem, que aquele com que a vaidade as considera; e outras também nos entristecem, que tomadas só por si, não têm outro mal, que aquele que a mesma vaidade lhes supõe. A vaidade naturaliza em nós as opiniões do mundo; e de tal sorte, que o conceito, que formamos das cousas, por mais que nos seja indiferente, ou incerto, sempre faz em nós uma verdadeira impressão de alegria, ou de tristeza. Tudo o que sabemos, é como por tradição; porque sucessivamente imos deixando uns aos outros as inteligências, em que se fundam as nossas vaidades, e as imos passando como de mão em mão; as que recebemos dos que já vieram, essas mesmas havemos de deixar aos que hão-de vir; é uma herança, que se distribui igualmente a todos, e que todos largam, e entregam na mesma forma que recebem; por isso as ideias novas reputam-se como partos ilegítimos, e supostos, porque lhes falta a autoridade do tempo, que as devia autenticar. Tudo envelhece no mundo, e a velhice em tudo imprime um carácter venerável; a antiguidade enobrece as vaidades, e opiniões, e destas as modernas são menos singulares, porque têm a desgraça de começar: daqui vem que não temos alegria, senão enquanto não temos vaidade, e não temos vaidade, senão enquanto não temos ciência dela. A entrada da vida é inocente, por isso então é pura a alegria; a continuação da mesma vida é vaidosa, por isso a alegria então é imperfeita. Nos primeiros anos vemos as cousas como elas são, depois vemo-las, como os homens querem, que elas sejam; em um tempo a alegria só depende de nós: depois também depende dos outros; naquela a alegria vem de uma natureza ainda ignorante, e sem vaidade; depois procede de uma natureza já instruída, e por consequência vaidosa. Que cousa é a ciência humana, senão uma humana vaidade? Quem nos dera, que assim como há arte para saber, a houvesse também para ignorar; e que assim como há estudo, que nos ensina a lembrar, o houvesse também, que nos ensinasse a esquecer.