Reflexões sobre a Vaidade dos Homens (1980)/XCIV
Um amor medíocre, e vulgar só se ocupa no deleite dos sentidos, e dele faz a maior felicidade; um amor sublime alimenta-se em contemplar o objecto que ama; este é o amor humano, de quem se diz, tem semelhança com o amor divino. Há vícios, que de alguma sorte, parece que dão documentos para a virtude. O amor ordinário é impulso da natureza; o amor subido é como uma emanação da alma; aquele é sujeito à saciedade, e por consequência à dor; porque a saciedade é uma espécie de dor, e de tormento, porém este não é susceptível de algum desassossego; aquele busca fora de si o alívio; este acha em si mesmo o contentamento; um é como dependente da vontade de outrem; o outro é isento do arbítrio alheio. O nosso bem só deve depender de nós; por isso nos fazemos infelices, à proporção que buscamos a nossa felicidade em outra parte. Mas como pode deixar de ser assim? O nosso desejo não se pode conter dentro de nós, porque os seus objectos todos são exteriores; a cada instante envelhecemos, porém os nossos desejos a cada instante se renovam, e renascem: vivemos no mundo rodeados de uma imensidade de cousas diferentes, e estas sucessivamente vão sendo o emprego do nosso cuidado, e das nossas atenções; todas acham em nós uma certa disposição, que faz, que a umas queremos, e a outras não; as nossas paixões são as que escolhem, ou reprovam; as cousas já vêm configuradas em tal forma, que assim que nos encontram, logo acham, ou um lugar proporcionado, ou incompatível; tudo aquilo em que há grandeza, e pompa, a vaidade o recebe, e guarda; tudo o em que se mostra fermosura, o amor o abraça, e se suspende. Tudo entra em nós, ou por força de amor, ou por força de vaidade: a quem a vaidade não vence, vence o amor.