Revista do Brasil/Nº 61/Volume 16/Lucia

LUCIA


OU


A MENINA DO NARIZINHO ARREBITADO
POR MONTEIRO LOBATO

(Fragmento)

A nossa literatura infantil tem sido, com poucas excepções, pobrissima de arte, e cheia de artificio, — fria, desengraçada, pretenciosa. Ler algumas paginas de certos "livros de leitura", equivale, para rapazinhos espertos, a uma vaccina preventiva contra os livros futuros. Esvae-se o desejo de procurar emoções em letra de fôrma; contrae-se o horror do impresso... Felizmente, esboça-se uma reacção salutar. Puros homens de letras voltam-se para o genero, tão nobre, por ventura mais nobre do que qualquer outro. Entre esses figura Monteiro Lobato, que publicou em lindo album illustrado o conto da "Menina do narizinho arrebitado", e agora o vai ampliando de novos episodios, alguns dos quaes se reproduzem aqui.


O ENTERRO DA VESPA


FOI ao escurecer. O leitão rabicó, já de barriga cheia, roncava no chiqueirinho sonhando arvores que dessem espigas de milho em vez de fructas. E Narizinho, num canto da sala de jantar, vestia na boneca uma saia nova, de pintas azues, feita pela tia Anastacia.

— Não estou gostando... murmurava Emilia que era muito luxenta em materia de vestidos. Está pensa e além disso muito apertada no cós.

— Alarga-se o cós, remediou a menina.

— Depois, continuou Emilia, de nariz torcido, já disse que não gosto desta moda de babadinhos. Fico velha e feia, tal qual uma perúa choca.

— Enjoada!...

Emquanto assim conversavam as duas, em baixo da jaboticabeira grande se reuniam amigos e parentes da vespa machucada.

Pobre vespa! Muito tempo ficou no chão, moribunda, movendo lentamente ora uma perninha ora outra. Por fim encolheu as pernas todas e immobilizou-se, morta. E agora vinham amigos e parentes a cuidar do enterro.

Quatro formigas pretas ergueram no ferrão o seu triste corpinho inteiriçado e foram-se com elle a caminho do cemiterio.

Atrás dellas um louva-a-deus de mãos postas seguia, rezando — ora pro nobis, dominus vobiscum — no latim lá dos insectos.

E assim chegaram ao cemiterio onde uma paquinha coveira acabava de abrir a cova. As formigas depuzeram na cova a defunta e começavam a cobrir o corpo de terra — quando appareceu, esbaforido, um besouro de sobrecasaca e chapeu-canudo, com as tiras de um discurso na munheca. O illustre figurão era o orador official do Instituto Historico dos Escaravelhos, sabio de grande fama na Besourolandia, mas um peroba de marca! Principiou a falar, com citações de mil autores e muitas phrases latinas. Falou, falou, e como não acabasse mais de falar, o louva-a-deus, impaciente, arrolhou-lhe a bocca com um toquinho de páo.

As formigas aproveitaram o lance para encher a cova e collocar em cima da terra um pedregulho redondo com esta inscripção:

Aqui jaz
uma pobre vespa assassinada
na flor dos annos
pela Menina do Narizinho Arrebitado.
Orae por ella !

Feito o que, cada um tratou de raspar-se para as respectivas tocas, depressinha, antes que a noite viesse. Porque então appareceriam os morcegos malvados que caçam sem dó todos os insectos desprevenidos. Só ficou no cemiterio o orador besouro, luctando para desarrolhar-se afim de concluir a leitura do discurso.

Teimava em falar, o ladrão! E tanto fez que arrancou o batoque e proseguiu na lenga-lenga :

— Mont'Alverne já disse que...

Mas aconteceu que suas palavras despertaram um sapo que cochilava ali por perto. O sapo olhou-o bem, ouviu um pedacinho do discurso, deu uma risada velhaca, e disse lá com as suas pintas:

— Eu já te curo, meu pedante...

E approximando-se devagarinho, — nhoc! — enguliu o orador com sobrecasaca, discurso, cartola e tudo.

Bem feito. Assim houvesse um sapo para cada orador cacete!...

A PESCARIA DE EMILIA



ACABARAM-SE afinal as jaboticabas. Somente nos galhos bem lá do alto é que inda se via uma ou outra, furadinha de vespa. O leitão rabicó — ron, ron, ron — volta e meia dava seu gyro por alli ficando parado bons minutos, muito serio, á espera de que cahisse alguma. Narizinho tambem veiu e lá estava de vara na mão e nariz arrebitado para o ar sondando a arvore, quando a tia Anastacia, de passagem para o rio, com a bacia de roupa á cabeça, lhe gritou de longe:

— Arre, menina! Não chegou uma semana inteira de tloc, tloc? Largue disso e venha me ajudar a estender roupa no córador.

Narizinho jogou a vara em cima do leitão, que fez coin! — e foi correndo para o rio, com a Emilia de cabeça para baixo no bolso do avental.

Lá chegando teve uma idéa: deixar a boneca pescando emquanto cuidavam da roupa. Poz o dedinho na testa, reflectiu e disse:

— Tia Nastacia é capaz de me fazer um anzolzinho de alfinete para a Emilia? A pobre está secca de vontade de pescar!...

A negra balançou a cabeça: — Sim, senhora! Era só o que faltava!...

— Faz? insistiu a menina. Alfinete, aqui tenho um. Linha, ha alli no alinhavo do meu vestido novo. Vara não falta. Faz?

A negra não teve remedio.

— Como é que não hei de fazer, demoninho? Faço, sim...

E fez. Dobrou o alfinete em forma de anzol, encastroou-o na linha do alinhavo, atou a linha na ponta de uma vara e amarrou a vara ao braço da boneca.

—E isca, como é? perguntou a menina?

— Isca é o de menos. Qualquer gafanhotinho serve.

Narizinho, salta d'aqui, salta d'alli, conseguiu logo apanhar na grama um grilo verde. Espetou-o no anzol. Em seguida, arrumando a boneca á beira d'agua, muito tesa, com uma pedra ao collo para não cahir, disse-lhe:

— Agora, dona Emilia, bico calado, hein? Nem um pio sinão me espanta a peixaria. E logo que beliscar — zuqt! — um puxão na linha !

E deixou-a lá indo ter com a preta.

— Você me assa hoje mesmo os peixinhos que a Emilia apanhar?

A preta riu-se, riu-se...

— Asso, sim, minha filha, asso até no dedo!...

— Não caçôe, tia Nastacia, não caçôe da Emilia... Ninguem imagina quem é aquella sonsa. Emilia é uma damnada!

Palavras não eram dictas e — tchibun! — a pescadora de panno, com pedra e tudo, revirou para dentro d'agua.

— Acuda, Nastacia! grita Narizinho. Acuda que a Emilia se afoga!...

Um peixe havia engulido a isca, e luctando para safar-se do anzol, arrastava com a piracuara para o meio do rio.

Narizinho, cada vez mais afflicta,

— Acuda! Depressa!... gritava, com desespero, vendo a Emilia rodar pela correnteza abaixo.

Tia Anastacia arranjou uma vara de gancho e com muito geito foi arrastando para a beira do corgo a pescadora infeliz, até chegar em ponto onde a menina pudesse agarral-a.

Assim aconteceu, qual não foi a alegria de Narizinho vendo sahir d'agua, presa ao anzol, uma linda tarira de palmo, que rabeava como louca!

A negra persignou-se de brinquedo:

— Credo! Até parece feitiçaria!

E Narizinho, numa contenteza nunca vista, disparou para casa com o peixinho na mão.

— Vovó, disse ella ao entrar, adivinhe quem pescou esta tarira!...

A velha olhou, olhou e disse:

— Ora quem!... Você, minha filha.

— Errou!

— A Anastacia, então.

— Qua! Nastacia, nada...

— Então foi o sacy...

— Vovó não adivinha! Pois foi a Emilia...

A velha duvidou:

— Estás bobeando a tua vovózinha ?!...

— Juro, vovó! Palavra de Deus que foi a Emilia. Pergunte á Nastacia, si quizer...

A preta vinha entrando nesse momento.

— Diga, Nastacia: quem foi que pescou a tarira? Não foi a Emilia?

— Foi sim, sinhá, foi a boneca... Sinhá não calcula que demoninho de menina arteira é esta!... Arranjou geito de botar a Emilia pescando no rio é o caso é que peixe está ahi...

A vovó abriu a bocca:

— Bem diz o dictado que quanto mais se vive mais se aprende.

— Creança de hoje, Sinhá, já nasce de dente. No meu tempo, menina, assim, desse tamanho, andava no braço da ama, de chupeta na bocca. Hoje?... Credo! Nem é bom falar...

E com a menina dançando á sua frente lá se foi para o fogão, a frigir a taririnha da boneca.

AS FORMIGUINHAS



Só depois de manducar o peixe frito é que a menina se lembrou da pobre boneca que estava a tremer de frio, entanguida pelo banho.

— A coitada!... E' bem capaz de morrer de pneumonia...

E lá foi correndo cuidar della. Despiu-a e levou-a para um lugar de sol. Dum lado extendeu as roupinhas molhadas e de outro a pobre Emilia, núa em pêlo. E ia retirar-se, quando a boneca fez cara de chôro.

— Eu não fico aqui sozinha...

— E porque, sua enjoada? Tem medo que o leitão venha espiar esses cambitos?

— Espiar é o de menos, mas elle é capaz de me comer...

— Nesse caso penduro você na arvore.

— Pelo amor de Deus, Narizinho! E se as vespas me ferram?

— Boba! Não sabe que vespa não morde panno?

— E si eu cair, com o vento?

— Si cair, caiu. Grande coisa!... Boneca quando cae não se machuca. Eu é que não posso ficar neste sol toda a vida esperando que a excellentissima senhora dona Emilia seque. Quem mandou molhar-se?

— Mal agradecida... Si não fosse a minha molhadela não comias a taririnha.

— Está pensando que era uma grande coisa o tal tarira?... Só espinho...

— Mas a senhora bem que a papou, que eu vi...

— Papei porque quiz. Não tenho que lhe dar satisfações, han! disse Narizinho, zangada, pondo-lhe a lingua.

Amuaram. Mas Narizinho ficou. Lá no intimo estava com receio de deixar a boneca sozinha naquelle sertão. Podia vir o Rabicó, e quem sabe até se alguma onça...

Estava um sol quente e muito silencio no quintal.

Nas arvores, só um ou outro tico-tico; no chão, só formiguinhas ruivasA menina, para matar o tempo, principiou a observar o

corre-corre das formigas e logo esqueceu a zanga com a boneca.

— Já reparou, Emilia, como as formigas conversam? Que pena não entender a gente o que ellas dizem...

— "A gente" é modo de dizer, replicou Emilia, porque eu bem que entendo o que ellas dizem.

— Verdade?

— Verdade sim, entendo muito bem, e si ficares aqui commigo conto-te toda a historinha que ellas conversam. Repare. Vem uma de lá e outra de cá. Logo que se encontrem pegam de prosa.

Dito e feito. As formigas encontraram-se e principiaram a tagarelar; depois, cada uma seguiu o seu caminho.

— Fiquei na mesma, disse a menina.

— Pois eu não, retrucou a boneca. A de lá disse: "Encontrou o corpo do besourinho verde?" A de cá respondeu: "Não". A de lá: "Pois volte e procure perto do pé de pitanga, naquella pedra onde mora uma paquinha. Esse besouro morreu hontem lá que eu vi" A de cá: "Pois está direito, vou ver isso". E foi.

Esta formiga que dá ordens deve ser a dona de casa do formigueiro. Tem uns ares de mandona e não sae daqui de perto, a entrar e a sair do buraquinho, como quem toma conta do serviço. A outra é carregadeira.

Devia ser isso mesmo porque logo depois chegou de fóra uma terceira formiguinha, muito apressada, que cochichou com ella e voltou para trás.

— Que é que disse esta? perguntou Narizinho.

— Disse que tinham apanhado uma bella minhoca ao pé da porteira mas que precisavam de mais gente para trazel-a.

— Emilia!... Você me bobeando!... exclamou a menina, desconfiada. Mas vou espiar, e si não fôr verdade você me paga!

E disparou em direcção da porteira. Procura que procura, achou logo á beirada dum tijuco uma pobre minhoca corcoveando com varias formiguinhas no lombo.

Teve vontade de libertar a prisioneira, mas a curiosidade de vêr o que acontecia foi maior, e lá deixou a minhoca entregue ao seu triste destino.

Novas formiguinhas foram chegando que, de um bote — zás — ferravam a minhoca duma vez. Não demorou muito e já eram mais de vinte. A minhoca, cançada de corcovear, foi molleando o corpo e acabou morrendo. As formiguinhas então começaram a arrastal-a para o formigueiro. Que custo! A bicha pesava umas

sete arrobas — arrobinhas de formiga — gorda que estava, de banha, e ia enganchando pelo caminho em quanto pedregulho ou capim havia; mas as carregadeiras, pacientes, davam volta a todos os embaraços e lá iam.

Afinal, depois de meia hora de trabalheira, deram com a minhoca em casa. Mas aqui nova atrapalhação. Não havia geito de recolher a minhoca inteira. E agora? Nisto appareceu a formiga mandona. Examinou o caso e deu ordem para que a picassem em doze pedacinhos.

Aquillo foi zás-tras. Em tres tempos, em vez de minhoca havia no chão uma duzia de roletes de carne. Cada lote de tres formigas arrastou um rolete, de modo que num instante a carnaria toda soverteu pelo buraquinho a dentro.

Sim, senhoras! exclamou a menina. Servicinho limpo! Mas

o demo queira ser minhoca neste quintal!...

— Bem feito, disse Emilia. Quem a mandou ser abelhuda? Si estivesse quietinha como as outras lá dentro da terra não aconteceria nada. Bem feito!

— Você diz isso porque é de panno e não sabe o que é dôr... concluiu Narizinho compassivamente...


(Illustrações de Voltolino)

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.