— Navio?
— Talvez pharol ...
Dave azo á duvida uma luzita vermelha a piscar no horizonte, unica na escuridão da noite. Escuridão, não direi de breu, que não é o breu de sobejo escuro para referir um negror d'aquelles. De cego de nascença, vá.
Ceu e mar fundia-os um só carvão, sem fresta nem pique além da pinta vermelha, que ás subitas se fez amarella.
— Lá mudou de côr, é pharol.
E como era pharol a conversa cahiu sobre pharoes. Eduardo interpellou-me de chofre sobre a ideia que eu delles fazia.
— A ideia de toda a gente, ora esea!
— Quer dizer uma ideia falsa. "Toda a gente" é um monstro com orelhas d'asno e miolos de macaco, incapaz d'uma ideia sensata sobre o que quer que é. Tens na cabeça. respeito a pharol, uma ideia de rua, moeda corrente recebida do vulgo e nunca recunhada na matriz d'uma impressão pessoal. Erro?
— Confesso-té que eu seria capaz de estarrecer um auditorio de casaca, conferenciando sobre esse thema; não affirmo, entretanto, que o pharol descripto se parecesse com algum.
— Pois affirmo-te eu. sem menospreço do teu engenho, que tal conferencia, ouvida por um pharoleiro, poria o homem de olho parvo a dizer como o outro: se percebo, cebo!
— Acredito. E entenderia elle melhor a tua sécca?
— E' de crer. Já vivi uma temporada inesquecível no pharol dos Albatrozes, e falaria de cadeira.
— Já viveste em pharol! Homem prodigioso que és!...
— E lá fui comparsa n'uma tragedia nocturna de arripiar cabellos. O escuro desta noite evoca-me o tremendo drama...
Estavamos ambos de bruços na amurada do Orion, e a hora propiciava o esbagoar d'um dramalhão inedito. Esporeado na curiosidade, provoquei-o:
— Vamos ao caso, que estes negrumes clamam aspectos que o povoem. E' calamidade a Shakespeare ou Ibsen?
— Assigna o meu drama um nome maior que o de Shakespeare...
— ?
— ... a Vida, a grande mestra dos Shakespeares maiores e menores.
Eduardo começou peio principio:
— O pharol é um romance. Um romance iniclado na antiguidade com fogueiras armadas nos promontorios, para norteio das embarcações a remo, e continuado seculos afóra até aos nossos possantes holophotes electricos. Emquanto subsistir no mundo o homem o romance "Pharol" não conhecerá epilogo. Monotono como as calmarias, embrecham-se nelle, a espaços, capitulos de tragedia é loucura, — gravuras pungentes de G. Doré quebrando a monotonia de um diario de bordo. O caso dos Albatrozes foi uma dellas. Gerebita metteu-se no pharol aos vinte e tres annos. E' raro isso.
— Quem é Gerebita?
— Sabel-o-ás em tempo. E' raro isso porque no geral se mettem nas torres marítimos maduros, quarentões surrados pela vida e descrentes das suas illusões. Deixar a terra na quadra verdolenza dos vinte annos é apavorante. A terra... Nós mal damos tento da nossa profunda adaptação ao meio terreno. A sua fixidez, o variegado dos aspectos, o bulicio humano, a cidade, os campos, a mulher, as arvores... Sabem os pharoleiros melhor do que ninguem o valor deseas telas..
Enlurados num bioco de pedra, tudo quanto para nós é sensação de todos os instantes nelles é saudade ou desejo. Cessam os ouvidos de ouvir a musica da terra, rumorejo de arvoredos, vozes amigas, barulho de rua, as mil e uma notas d'uma polyphonia que nós sabemos que o é, e encantadora, unicamente quando uma segregação prolongada nos ensina a lhe conhecer o rythmo. Os olhos' cessam de rever as imagens que desde a meninice lhes são habituaes. Para os ouvidos ha ali, dia e noite, entra anno, sae anno, o marulho das vagas estralando chicotadas no enrocamento da torre. Para a vista a eterna massa que onduia, ora torva, ora azul, è em cima o outro eterno azul.
Variante unica trazem-n'a as velas que passam ao largo, donalrosas como garças, ou os transatianticos pennachados de fumo.
Figura-te a vida de um homem desraigado á querencia e assim posto, qual galé, dentro duma torre de pedra grudada a um ilhéo tambem de pedra. Terá poesia de longe; perto é allucinante.
— Mas o Gerebita...
— Uma leitura de Kipling despertou-me a curiosidade de conhecer um pharol por dentro.
— "O perturbador do trafego?"
— Parabens pela argucia. Foi justamente a historia do Dowse o ponto inicial do meu drama. Tal desejo incubou-se-me cá dentro e ficou a espera d'occasião para grelar.
Certo d1a ful cspalrecer pelo cáes, e lá estava, de mãos ás costas, a seguir o vôo dos joão-grandes, e a notar a gamma dos verdes luzentes que a sombra dos barcos atraçados ondeia, na agua represada dos portos, quando ablcou um lancha e vi saltar em terra um homem de felções duras e pelle encorreada. Ao passar ao pé d'um magote de catraelros um delles chasqueou em tom amolecado:
— "Gerebita, como vae a Maria Rita?
O desembarcadiço rosnou um palavrão de grosso calibre e seguiu caminho de sobrecenho carregado. Interessou-me aquelle typo.
— "Quem é? Indaguei.
— "Pols quem ha de ser senão o pharoleiro dos Albatrozes? Não vê a lancha?
De facto, a lancha era do pharol. A velha ideia deu-me uma cotovelada; é hora! Fui-lhe no encalço.
— "Sr. Gerebita..."
O homem entreparou, como admirado de ouvir-se nomear por bocca desconhecida. Emparelhei-me com elle e emquanto andavamos ful-lhe expondo os meus projectos.
— "Não pode ser, respondeu, o regulamento prohibe sapos na torre; só com ordem superior.
Ora, eu tenho corrido mundo, sei que marosca é essa de ordens superiores. Mettl a mão no bolso e cochichei-lhe o argumento decisivo. O pharoleiro reluctou uns instantes, mas corrompeu-se mais depressa do que eu suppuz, e, guardando o dinheiro, disse:
— "Procure o Dunga, patrão da "Galvotla Branca", terceiro armazem. Dlga-lhe que já falou commlgo. De quinta-felra em diante. E bico, heln?
Prometti-lhe um bico caladissímo e tornei ao cáes em cata do Dunga, Ilhéo palavroso a quem expuz o negocio. Que sim, disse, que já flzera isso certa vez a "outro maluco", e sabla prender a lingua. para não atanazar a vida aos amigos.
E como me informasse do pharoleiro:
— "E' Gerebita d'appellido ganho no Puru's onde serviu como grumete. Ao depols se metteu na lanterna, p'r'amor d'amores, o alarve, como se faltassem ellas por ahi, e bem catitas.
Mulheres! A mlm é que não me empecem, as songuinhas. O demo as tolha, que eu...
E foi pelas mulheres além, a dar rijo, com razões nem melhores nem peiores que as de um Shopenhauer d'alto bordo.
No dla aprazado, antemanhã a "Galvota" largava com rumo ao pharol. Saltei n'um atracadouro tosco, de difileil abordagem. Encontrei o pharoleiro occupado em pullr os metaes da lanterna. Recebeu-me de boa sombra e largou o esfregão para fazer as honras da casa.
Examinei tudo, des alicerces ao lanternim, e á hora d'almoço já entendia de pharol mais que uma encyclopedia. Gerebita deu trela á lingua e falou do officlo com muita psychologia e melhor do que a que um romancista põe n'um romance maçador. Tambem narrou a sua vida deade menino, a grumetagem no Puru's, a sua palxão pelo mar, e por flm a entrada para o pharol aos vinte e tres annos de idade.
— "Porque, assim tão moço?
— "Caprichos do coração, má sorte, coisas... respondeu com ar triste; e accrescentou, após uma pausa, mudando de tom:
— "Pois a vida cá é Isto que vê. Boasinha, hein? Entretanto, boa ou má, temos, os pharoleiros, um orgulho: sem nós essa blcharla de ferro que passela n'agua fumando seus dols, seus tres charutos...
— "Lá vem um! interrompeu-se, apontando uma fumaça remota. E Indo á janella mirou pela luneta o pennacho.
— "Bandeira allemã, duas chaminés, rumo sul. Deve de ser um Cap, o Trafalgar, talvez. Seja lá que diabo for que vá com Deus. Mas como la dizendo, sem os pharoleiros a manobrar a "optica" esses comedores de carvão havlam de rachar atolnha ahl pelos bancos. Basta cair cerração e põe-se elles tontos, a urrar de medo pela bocca das sereias, que é mesmo um cortar a alma á gente. Porque então nem pharol nem caracol. E' a cegueira. Navegam com o perigo no leme. Fora disso salva-os o foguinho lá de cima. Pouco antes da minha entrada para aqui houve desgraça. Um cargueiro do "Bremem" rachou o bico ali no Capellão.
Quem é o Capellão? Ah! ah! O Capellão! Pois o Capellão é o ralo da terceira pedra a boreste. São tres deste lado, a Menina, que é a primeira, a Gurutula que é a do meio. A criminosa é o Capellão que reponta mais ao largo e só mostra a corôa nas grandes vasantes. Cá a bombordo inda ha duas, a Virgem e a Mallita, onde baten o Rotterdam.
— "E aquella lislnha, acolá?
— "Essa é uma coltada que nem nome tem. E' mansa, está multo perto da terra, não faz mal a ninguem. Ali mora um anequim, bichanca do tamanho do dlabo e que gosta de virar canoas. Mas aqui para nós, moço, Isso é embromação. Pelxe mora em todo o mar, não tem toca como bicho de terra. E' abusão de pescador. Quando ha mar não se enxerga nada por ali, mas se a agua serena e vem vindo a vasante, vae apparecendo um lombo de pedra lisa com geito de peixe Passa um pescador atolambado, desconhecedor da zona, vé aquillo de longe. E' anequim! é anequim! e toca a safar com o medão n'alma. Se acontece embrabecer a agua, e dá temporal, e a canôa vira; qu'é de Fulano? tá, tá, tá, fol o anequim! Toda a gente, péga feito mulher velha: foi o anequim do pharol! Ora ahi está como são as coisas. Elle ha muito anequim e tintureiras por aqui. Onde é mar sem cação? Mas dizer que um tal móra ali, é embroma.
E na sua pinturesca linguagem de maritimo, que ás vezes se tornava prodigiosamente technica, narrou-me toda a vida daquellas paragens e da torre. Falou de como, segundo a tradição, se foram baptisando os recifes, os crimes de cada un, as hecatombes periodicas de aves nocturnas que, cegas pela luz, batem de peito contra os vidros da lanterna, juncando o chão de corpinhos latejantes, as medonhas tormentas nas quaes o pharol estremece como a tiritar de pavor. Do que não falou Gerebita, naquelle inesquecivel dia?
— E o ajudante? Tem-n'o cá?
O rosto do meu pharoleiro mudou de expressão. Vi de relance que eram inimigos.
— "E' aquelle estupor que la pesca, disce-me achegando-se á janella e apontando um vulto immovel, acocorado n'um penedo.
— "Está a apanhar garoupinhas. E' o Cabrea. Máu companheiro, máu homem...
Entreparou. Percebi que mascava uma confidencia difficil. Mas a confidencia denunciou-se apenas. Gerebita sacudiu a cabeça e murmurou como de si para si:
— "Está cá de pouco, e é unico homem no mundo que não podia estar cá!... Já reclamei, já mostrei o perigo ao capitão do porto, mas qual!
Estranha creatura o homem! Insulados do mundo n'aquella fragua, ambos naufragos da vida, o odio os separava... Não faltavam, entretanto, accommodações no pharol para as familias dos seus guardiães. Porque não as tinham all? Seria um bocado de mundo a lenir as agruras do emparedamento. Interpellei-o, mas Gerchita me retrucon de modo lnviezado.
— "Familla não tenho, isto é, tenho e não tenho. Tenho porque sou casado e não tenho porque... Historias! Estas cousas de familia é bom que fiquem cá com a gente.
Notel de novo que a pique d'uma revelação engulia-a a tempo, por desconfiança ou pudor. Suas feições endureceram, sombras más annuvearam-lhe a physionomia. E mais torvo ainda me pareceu quando se abriu a porta e Cabrea entrou, sobraçando uma cesta de pescado. Typo de má cara, passou, sem nos volver um olhar, em direitura á cosinha. Mal se sumilu o bruto, Gerebita exclamou "Raio do diabo!" pespegando n'un caixote expiatorio um murro de fender pinho. Depois:
— "O mundo é tão grande, ha tanta gente no mundo, e me cae aqui o unico companheiro que eu não podia ter!...
— "Porque?
— "Porque?... Porque... é um louco.
Entre o primeiro e o segundo "porque" notei transição radical. Dubio o primeiro, o segundo affigurou-se-me resoluto, como illuminado pelo clarão de uma ideia brotada no momento.
Desde esse dia nunca mais Gerebita abandonou o thema da loucura do outro. Demonstrava-m'a de mil maneiras.
— "E aqui, onde os sãos perdem a tramontana, argumentava, um já assim rachado de telha aos tres por dois rebenta como bomba em fogueira. Eu jogo como não vara o mez. Não vê que modos?
Metade por suggestão, metade por observação leviana, razoavel me pareceu a phophecla, e como Gerebita sem cessar malhava na mesma tecla acabei por convencer-me que o casmurro era um fadado ao hospicio com pouco tempo de equillbrio nos miolos.
Um dia Gercbita abordou a questão nestes termos:
— "Quero que o senhor me resolva este caso: estão dois homeus sós n'uma casa; de repente um enlouquece e se atira como um cação sobre o outro. O outro deve deixar-se matar como um parco ou tem o direito de atolar a faca na garganta do bicho?
Era por demais clara a consulta; respondi como um rabula positivo:
— "Se Cabrea enlouquecesse e te agredisse, não havendo socorro á mão, matal-o seria um direito natural de defesa. Matar para não morrer não é crime, mas isto só em ultimo caso, você comprehende.
— "Comprehendo, respondeu-me distrahidamente, como quem lá segue os voiteios duma ideia secreta, e, depois de longa pausa:
— "Seja o que Deus quizer, murmurou de si para comsigo Deixei-me ficar á janelia a ver cahir a tarde. Nada mais triste do que umas ave-marias no ermo. A treva espessára as aguas e absorvia no céo os derradeiros pallores da luz. No poente um leque aluarado, vermelhaço nas varetas, com dedadas sangrentas de nuvens a barral-o de listrões horizontaes. Triste... A ardosia do mar, as primeiras estreiiinhas entreluzindo estrouvinhadas, o manulho na pedra, tchá, tchá, compassado, eterno... A alma confrangiu-se-me de angustia. Vi-me naufrago, retido para sempre n'um navio de pedra, grudado como craca desconforme na pedranceira da ilhota. E pela primeira vez na vida senti profundas saudades desea coisa sordida, a mais reles de quantas inventou a civilisação, o "café", com o seu tumulto, a sua poeira, o seu bafio a tahaco e a sua freguezia habitual de vagabundissimos "agentes de negocios"...
Correram dias. Minto. No vazio daquelle dissaborido viver no ermo o tempo não corria, arrastava-se com lentidão da lesma por sobre um chão liso e sem fim. Gerebita tornara-se-me enfadonho. Não mais narrava pitorescos incidentes da sua vida de marujo. Aderrado á ideia fixa da loucura do Cabrea só cuidava de me demonstrar os progressos della. Fóra desse thema sinistro a occupação era seguir de olhos os navios que repontavam ao largo até vel-os sumirem-se na curva das agues, e formular hypotheses sobre a identidade da silhueta. Velas, poucas alvejavam, tirante barquinhas de pesca. Mas uma que surgia levava-me os olhos e a imaginação. Como casa bem com o mar o barco a veia! E que sordidos baratões craquentos são ao pé delle os navios a vapor!
Escunas, corvetas, pequeninos cutters, fragatas, lugres, brigues, hiates... O que lá vae passado, de leveza e graça! Substituem-n'as, ás graças leves, feios escaraveihos de ferro e pixe; a ciias que viviam de brisas e ventos, negros comedores de carvão. bicharoicos que mugem: roncos de touro enrouquecido.
Progresso anilgo, tu és commodo, és delicioso, mas felo a valer. Que fizeste da coisa linda que é a veia 'enfunada? do barco á antiga, onde resoavam canções de marujo, e todo se enleava de cordame, e trazia gageiro na gavea, e icndas de serpentes marinhas na bocca dos marinheiros, e a N. Senhora dos Navegantes em todos os corações, e o medo das sereias em todas as imaginações? Desfez-se a poesia do reino encantado de Amphitrita ao ronco dos Lusitanias, hotels ambulantes com garçons em vez de "lobos do mar", incaracteristicos, cosmopolitas, sem donaire, sem capitão de suissas, pitoresco no falar como seiscentos milhões de caravelias.
O carvão sujou a aquarella maravilhosa que desde Hamon e Ulysses vinha o veleiro pintando na tela oceanica...
— Se pára o caso dos loucos e te mettes com intermezzos relicenciados para uso de meninas olheirudas, vou dormir. Volta ao pharol, romanticão de má morte.
— Devia castigar-te sonegando-te o epilogo do meu drama, filho do Café e do carvão.
— Conta, conta.
— Certa tarde Gerebita chamou a minha attenção para o aggravamento da loucura de Cabrea. Adduzia varias provas, concluindo:
— "Queira Deus não seja hoje!...
— "Tens medo?
— "Medo? Eu? de Cabrea?
Queria que tu lhe visses que estranha expressão de ferocia estampou-se-lhe no rosto... A conversa parou ahi. Gerebita chupava cachimbadas nervosas, fechado de sobrecenho como quem rumina uma ideia fixa. Deixou-me e logo em seguida subiu. Como anoitecesse recolhi-me, pouco depois e deitei-me. Dormi e sonhei. Sonhei um sonho, agitadissimo, guignolesco, com luctas, facadas, o diabo. Lembro-me que aggredido por um facinora desfechei sobre elle cinco tiros de revolver; as balas, porém, grudaram-se á parede e deram de resoar e barulhar d'um modo tal que accordei. Mas accordado continuei a ouvir o mesmo rumor, vindo de cima, da lanterna. Presento a catastrophe esperada. Salto da câma e aguço o ouvido: barulho de lucta. Corro á escada, galgo-a aos tres degráos, mas no topo esbarro com a porta fechada. Tento abril-a; não cede. Eccuto: era de facto lucta. Rolavam corpos no chão, fazendo retinir os vidros da lanterna, e ouvia-se um refolgar precipitado junto com rugidos surdos e embates contra os moveis. Completa a escuridão. Nenhuma restea de luz coava para a escada! Minha situação era esquerda. Ficar ali, inutil, quando portas a dentro dos homens se entrematavam? Estava nisso quando um choque violento escancarou a porta. Um clarão de sol chofrou-me os olhos. Senti nus pernas um tranco e rodei escada abaixo de cambulhada com dois corpos engalfinhedos. Ergui-me tonto, em baixo, e vi rebolarem no chão os dois pharoleiros atracados. Gerebita procurava manietar o louco, mas não vingava dominal-o apezar de mais corpulento.
Atirei-me á lucta no intento de auxiliar o amigo.
— "Dois contra um! gemeu Cabrea suffocado, é cobardia!
Pela primeira vez lhe ouvi a voz, e hoje noto que nada nella denunciava loucura. No momento pensei diversamente, se é que pensei alguma coisa. Gerebita, com grande assombro meu, tambem me repelliu.
— Não, não! Eu só!
Nisto um pégão de nortada varreu a torre, e trancou a porta do lanternim com estrondo. Envolveu-nos de novo a escuridão. Começa aqui o horror. Os rugidos que ouvi, os arrancos e sacões formidaveis da lucta nas trevas, a minha anciedade... Estão ahi uns minutos de vida que não desejo ver reproduzidos. Perdi a noção do tempo. Durou muito aquillo? Não sei dizer, só sei que de repente ouvi, escapo ao peito de Gerebita um urro de dôr, e logo em seguida uma imprecação, "desgraçado", cujas derradeiras syllabas morreram n'um trincar de dentes atassalhando carnes. Cabrea grugulejou uns roncos que se casavam com o arquejar do pelto de Gerebita. A lucta cessou. Eu, sem palavras na bocca, cego pela escuridão, só ouvia, fóra, os uivos da nortada, e ali aquelle arquejo do vencedor exhausto cahido ao lado do morto. Com os olhos da imaginação eu via isso, que com os da cara enxergava tanto como se estivesse a cabeça envolta em velludo negro.
Não te conto os pormenores do epilogo. Cavel luz e o que vi não te conto. Não te descrevo o hediondo aspecto de Cabrea com a carotida entraçalhada a dentes, cahido n'um lago de sangue. Nem te digo o estado de Gerebita, com a cara e o peito vermelhos, e mão sangrenta com um dedo decepado, e estatelado no chão sem sentidos. Nem te conto os meus transes diante daquelles corpos martyrisados, áquella hora da noite, daquella horrivel nolte, negra como esta e sacudida por um vento do inferno.
Na manhã seguinte Gerebita pousou a mão no meu hombro. e disse:
— "O mar não leva daqui os corpos á praia. O mundo não precisa saber de que morreu Cabrea, Cahlu n'agua, morte de marinheiro. E o moço é testemunha de que matei para não morrer. Fol defesa. Agora vae jurar-me que isto ficará para sempre entre nós.
Jurei-o lealmente, apertando-lhe de leve a mão mutilada. E elle, n'um accesso de infinito desalento, quedou-se immovel, a olhar para o chão, murmurando insistentemente:
— "Eu bem avisei. Não me acreditaram. Agora, está ahi, está ahi, está ahi...
Nesse mesmo dla voltou a buscar-me o Dunga, conformeo combinado. Logo que a "Gaivota" largou, narrei-lhea mortedo pharoleiro, romanceando-a: Cabrea, louco,adespenhar-sepela torre abaixo e a sumir-se para sempre no selo das aguas.
O Dunga, assombrado, susteve no ar os remos.
— "Pois morreu? e louco?
— "Está claro!
— "Claro lhe parece, que a mim...
— "Conhecia-o?
— "Não conhecia outra coisa. Des'que furtou a Marla Rita....
— "Que Maria Rita?
— "Pois a Maria Rita, mulher de Gerebita, então não sabe? que elle seduziu, hom'essa.
Abri a minha maior bocca e arregalei o que pude os olhos.
— "Como sabe disso?
— "E' boa. Sei porque sel, como sei que aquella gaivota que all vae é uma, e que este mar e mar. A Maria Rlta era uma morena de truz perigosa como o demo.
O tolo do Gerebita derrcou-se d'amores pela bisca, e casou. E vae ella, a songulnha, mal o homem sahia no Puru's mettia em casa ao Cabrea. E nesse jogo viveram até que um dla se foram juntos para outra terra. O pobre do Gerebita se não acabou de paixão é que é teso. Mas entrou para o pharol, que é tambem um modo de morrer p'ro mundo. Pois bem. A bola vira, o tempo corre, e vae senão quando quem mette o Governo no pharol em lugar do defunto Gabriel? Ao Cabrea! Ao Cabrea que tambem andava descrente da vida porque a Rita correra a terceiro. Coisas do mundo! Agora diz-me V. S. que o homem enlouqueceu e rodou do penedo e lá o róe o peixe. Está bem, antes assim, que do contrario era em ponta de faca que aquillo acabava.
Calei-me. Ha situações na vida em que as ideias se baralham de tal arte que é de bom conselho deixal-as irem-se assentando de per si, como liquidos turvos.
Eis como...
— ... o grande Ernesto foi empulhado por um assassino vulgar!
— Perdão. O facto de se não manejarem floretes não tira pugilato o caracter de duello.
— "Cavalleria rusticana" então?
— E porque não?
MONTEIRO LOBATO.
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A informação acima será válida apenas para usos nos Estados Unidos — o que inclui a disponibilização no Wikisource. (detalhes)
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