Sentados na soleira da palhoça, em face do verde campo, à hora vesperal em que os rebanhos recolhem, o velho Firmo e eu fumávamos, relembrando passagens alegres da vida de outrora.
Firmo era meu companheiro quando eu ia passar as férias na roça. O que ele sabia de histórias, e como as contava fazendo a voz enternecida e meiga para imitar as princesas que imploravam ou arremetendo com vozeirão terrível para que eu tivesse a impressão exata do bradar horrível dos gigantes antropófagos. E não só história dos livros, outras sabia que eu jamais em letras vira: a que descrevia a iara branca seduzindo o remador do Itapicuru e o conto do sucupira, com que no bom tempo faziam cessar a minha impertinência. Algumas eram inventadas por ele, diziam; outras o velho Firmo, vaqueano e andejo, aprendera por esses sertões de Deus por onde caminhara.
Andava pelos oitenta anos, mas quem o visse a cavalo, no campo, não lhe daria tanta idade. O diabo era o reumatismo que não lhe deixava as pernas. No seu tempo ninguém levava o melhor ao Firmo do Curral Novo. Raparigas, que uma vez o viam montado no garboso fábrica, o laço em volta da cinta, a aguilhada firme sobre a coxa coberta de couro cru, perdiam-se de amor por ele.
Era um caboclo atirado, musculoso e rijo: grandes olhos negros brilhavam no rosto queimado pelos verões e os cachos do seu cabelo rolavam-lhe pelos ombros largos.
Velho, embora, "ninguém lhe chegava ao pé sem muito jeito", como ele próprio dizia sorrindo som os seus dentes limados, agudos como pontas de frechas. Apesar de alquebrado e enfermo andava com arrogância e notava-se-lhe na voz, áspera e forte, o hábito de comando.
Em tempos de festa, quando vinham para a mesma eira moças do lugar e de longe, Firmo saltava na roda, sapateando, rasgando na viola a tirana dos campeiros, e quem ousava pegar no verso do caboclo?! As tabaroas morenas sorriam com os olhos fascinados e unidas desfaziam-se das flores para que o cantador as fosse pisando no sapateado. Por isso Firmo andava sempre de ponta com os companheiros e, mais de uma vez, o descante acabou varrido à faca; mas quem ficasse do lado do caboclo podia estar descansado – nunca fugiu de arrelia fosse com um, fosse com dez ou mais.
Mãezinha, a velha mucama de casa, quando o via passar no caminho, curvado, pitando o seu cachimbo de taquara, dizia maliciosa:
– Isso, ahn! isso, foi o diabo!
Firmo "vivia encostado no tempo de dantes", a saudade era o seu conforto. "Hoje em dia que é que a gente vê? má língua e moleza só", dizia e citava os valentes de antanho e mostrava as velhas gabando-lhes a beleza que a idade fanara:
"Serapião, homem que nem o diabo!... Ana Rosa, essa curumba... foi mulata de dengue, era um motim aqui em cima por causa dela. Filomena, com essa cara de peixe moqueado, teve o seu luxo e foi gente. Eu também pisei duro, ora!"
Firmo vivia das recordações. Passava os dias caminhando de um para outro lado, visitando as palhoças, ou à beira do rio para ver e ouvir as lavadeiras, quando não se metia a fazer bodoques para as crianças.
À tarde sentava-se em um pilão quebrado, à porta da casa, e deixava-se estar inerte, os olhos ao longe: "Estava vivendo..." dizia quando eu lhe perguntava que fazia ali sozinho. Estávamos, às vezes, sentados juntos, ele a contar-me histórias, quando nos chegava, nítido e agudo, o grito do campeiro. Firmo calava-se, um estremecimento agitava-o, os olhos dilatados recobravam o brilho antigo e punha-se de pé, devassando a paisagem triste, à luz crepuscular.
De repente aparecia a nuvem de poeira anunciando o gado que chegava... uma mancha vermelha, uma mancha negra, outra e logo o magote, os bois juntos, emaranhando os chifres: um mugia, outros imitavam-no levantando os focinhos ou ferravam-se às marradas, sendo, às vezes, necessária a intervenção do vaqueiro que apartava os dois à ponta de vara. E a marcha aproximava-se morosa.
Firmo ficava enlevado acompanhando os movimentos da manada, inclinando-se para um lado, para outro, aspirando sôfrego. De repente batia as palmas e juntava, logo em seguida, as mãos na boca à guisa de porta-voz, bradando:
– Eh! eh! eh cou! ruma! ruma! Eh! lou...
E ficava longo tempo excitado, a olhar. Não perdia uma só das peripécias e, se um touro espirrava, correndo aos galões pela campina, o velho entrava a bramar do outeiro, tão alto, tão alto que as raparigas, que andavam na eira recolhendo a roupa ou socando o arroz, paravam assustadas erguendo os olhos para o lado da palhoça do vaqueiro velho. Mas ninguém o acomodava antes de ser laçado o boi fujão e quando o vaqueiro aparecia, arrastando o animal laçado, Firmo suspirava baixinho:
– Ah! Nossa Senhora! meu tempo!
Foi pelo Natal que o vi pela última vez. Começavam os preparativos da festa, quando cheguei ao sitio. Nas casas dos escravos, as velhas, à noite, ensaiavam as crianças. Na eira os rapazolas preparavam jiraus; colhia-se o arroz novo para os presepes e de todos os lados, mal o sol fugia, começavam as toadas das cantigas ao Deus Menino e as falas dos infantes que figuravam no Mistério.
Firmo estava doente, mal podia mover-se: passava os dias na rede. Subi a vê-lo, uma noite, justamente na véspera do grande dia. Encontrei-o deitado, fumando, os olhos semicerrados.
– Eh! vaqueiro velho... Então que é isso?!
– Estou derrubado, patrãozinho.
– Mas que diabo tem você?
– Moléstia má, patrãozinho; parece que desta feita vou mesmo.
– Ora qual...
– Eu é que sei como me sinto, patrãozinho. Se até o pito me faz nojo...
– Pois eu preparei uma surpresa que te vai fazer mais bem do que todas as mezinhas de mãe Tude. Quem está aí fora? adivinha...
– Ah! patrãozinho, alguma alma boa. Quem há de ser?!
– Raimundinho.
O velho sacudiu-se novamente na rede e, voltando-se para a porta com um sorriso, perguntou:
– E onde está esse negro que não entra?
– Boa noite à gente da casa! Disse da porta o cafuzo.
– Entra, negro!
O cafuzo, um codoense de fama, atravessou o limiar da porta:
– Então, tio Firmo, a febre pode mais, hein?!
– Sim porque eu não vi quando ela entrou... quando não! Então, negro, que é que vamos fazendo?...
– Vim fazer a minha festa. Dizem que vão queimar fogaréus no Curral Novo.
– Como vai Noca?
– Boa.
– E Ana? está na cidade, mais o pai?
– Hen, hen, afirmou o cafuzo.
– Negro, você não vai daqui hoje. Ah! Patrãozinho, vosmecê vai ver o que é um diabo. Negro, ajunta a madeira ali atrás da arca...
– Está encordoada?
– Ó danado! Onde você viu viola de homem sem corda? e afinada. Ajunta.
– O codoense agachou-se, apanhou a viola do vaqueiro e logo correu os dedos ágeis pelas cordas.
– Passa pra luz, cafuzo.
– Lá vou.
Sentou-se no centro da sala, cruzou as pernas e, tombando a cabeça, gemeu a toada sertaneja.
– Anda com Deus.
– Lá vai; pigarreou e desferiu:
No coração de quem ama
Nasce uma flor que envenena"
– Eh! gritou o Firmo entusiasmado, concluindo a quadra:
"Morena, essa flor que mata
Chama-se paixão, morena."
– Pega, negro, não deixa o verso no chão!
De fora, contínuo e doce, vinha o coro longínquo das crianças em louvor de Jesus e, de vez em vez, reboava o mugido de um touro.
Quando o cafuzo descansou a viola, Firmo disse da rede com esforço, arrastando a voz fraca:
– Canta, canta mais, cafuzo... Quem não tem Nosso Pai ouve a cantiga. Canta.
Era tarde quando desci o outeiro. Raimundinho lá ficou cantando.
No dia seguinte, à hora em que saía o gado, estava eu debruçado à varanda quando vi o cafuzo que preparava o animal viageiro:
– Raimundinho, como vai ele?...
De longe apontou a palhoça:
– Sim.
O braço caiu-lhe, olhou-me algum tempo comovido; depois saltando para o animal, levou o polegar à boca fazendo estalar a unha nos dentes:
Às quatro da manhã... Atirei um verso e disse, para bulir com ele: Pega, velho! Não respondeu. Tio Firmo, mesmo velho e doente, não era homem para deixar um verso no chão... Fui ver, coitado!... Estava morto. E deu esporas para que eu não lhe visse as lágrimas.
Subi ao outeiro. Pobre Firmo! Lá estava no fundo da rede, cercado de gente. Guardara o sorriso, morrera feliz, ouvindo os cantos do seu tempo e bem perto de casa o mugido dos rebanhos. E bem que o choraram nessa noite os grandes bois, e diziam, entretanto, que eles estavam louvando o Senhor Menino; chorando o companheiro é que eles estavam, os grandes bois que pressentem todas as desgraças e que veem a morte passar, à noite, com a foice de rastro, através das campinas! Bem que choraram nessa noite os bois: de certo viram a morte entrar na cabana de Firmo.
Esta obra entrou em domínio público no contexto da Lei 5988/1973, Art. 42, que esteve vigente até junho de 1998.
Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.