Tiradas as últimas fumaças do “regalia”, e metida a ponta do charuto em um talo da palmeira, com o respeito que o verdadeiro fumante vota às cinzas desse companheiro e confidente de mágoas como de prazeres, ergueu-se o candidato, deu alguns passos pelo jardim e voltou para o mancebo que o esperava apoiado ao esteio do caramanchão:
— Uma cousa lhe asseguro, meu colega. Se os moços de talento, que vão começar a sua carreira, ouvissem o conselho de minha experiência, não desbotariam por certo a flor de sua inteligência nesse mister ingrato, de urdir enredos forenses, e desbastar autos, consumindo a mocidade na incessante labutação de borrar o papel e a consciência.
— O que fariam então?
— Para que se matarem a construir pedra a pedra uma posição às vezes bem medíocre, se podem tomar de assalto o futuro, e conquistar a reputação d'un coup de main, como fazem por aí os espertos? O processo é simplicíssimo. Marca-se entre os vultos notáveis do país aquele que mais convém à ambição do pretendente: um estadista, se o fuão destina-se à política; um literato, se o fuão aspira a escritor. Escolhido o alvo, assesta o sujeito contra ele toda sua metralha: a mentira, a injúria, o insulto grosseiro. A cidade ocupa-se imediatamente do escândalo. “Quem é?... Quem é que ousa atacar o homem eminente?” Conhecidos, mas principalmente os amigos, correm açodados à compra do pasquim; comentam as insolências e vão com uma caramunha de jesuíta propalando a notícia... O autor, de fuão que era na véspera, torna-se personagem; todos inquirem dele, apontam-no quando passa, repetem seu nome como um epíteto do caráter por ele agredido e atassalhado. Assim abre-se caminho até à celebridade, que é a base de toda a grandeza. Obtido esse pedestal, “o temível”, ou o parvenu, como o chamam os franceses, pode-se deitar à espera das honras e pepineiras que lhe chovem a mancheias. Só lhe falta um casamento rico, para coroar a obra de sua rápida fortuna. O casamento rico é em verdade um achado da maior importância. Se o indivíduo não tem pátria, nem família, dá-lhe uma apresentável; se já possui esses trastes, ficam-lhe duas, o que não é para desprezar. São duas amarras para tudo; lá e cá, diz-se com toda a sem-cerimônia, “nosso país”. Além disso traz o casamento a fortuna patrimonial, que tem sempre uma certa respeitabilidade, e serve para decorar umas vergonhas e misérias do passado. Ora, a um homem de recurso não é difícil, desde que trepou ao pedestal da celebridade, ou por outra, desde que se tornou um “temível”, não é difícil arranjar uma aliança nessas condições.
Sustando a palavra um instante para observar-lhe o efeito na fisionomia de Ricardo, que o escutava com repugnância, concluiu o Nogueira:
— Eis, meu colega, como um hábil pelotiqueiro de um passe escamoteia parte da reputação por outros laboriosamente adquirida; e com esta sorte edifica um brilhante futuro. Experimente!
Ricardo até ali escutara apenas com tédio o que ele tomava por sarcasmo pungente; à última palavra alteou a fronte com indignação:
— O senhor não fala seriamente!
Desfechou o Nogueira uma gargalhada cromática:
— Decerto! Como se há de falar seriamente, quando é tão grotesca a verdade? Não lhe expendi opinião minha; referi o fato; olhe ao redor de si, e vê-lo-á talvez bem de perto.
— Explique-se V. Ex.a; não o compreendo.
— Quando abrir os olhos, compreenderá.
E Nogueira solfejando a sua risada dirigiu-se para a casa.
Enquanto a um canto retirado do jardim se travara tão interessante conversa entre os dois colegas, do lado oposto se havia formado uma roda, a que servia de eixo o Bastos.
O piquenique derrotara o nosso corretor, que mostrava-se um tanto amarrotado, nas feições e nas esperanças.
As barbas já não tinham aquela simetria irrepreensível que dava-lhes a imobilidade do postiço. Uma bomba na praça não houvera estrompado o nosso pretendente, como aquele maldito passeio à Vista dos Chins.
Quando, adiantando-se à comitiva, chegara à casa na esperança de ali encontrar a filha do banqueiro, achou-se em branco. Retrocedeu já um tanto azoado, e de todo ficou, vendo aparecer na volta da estrada Guida e Ricardo em conversa animada.
Foi um golpe para o corretor que viu a bancarrota iminente sobre sua empresa matrimonial, que na véspera ainda parecia-lhe tão próspera!
Jantou mal, pensando no quanto é vária a fortuna, e incerta a carreira do comerciante.
Contudo não descoroçoava ainda o Bastos; tinha fé no jeito e habilidade do Soares, que bem sucedido sempre em todas as transações, não havia de errar a boa mão, justo em negócio tão do peito, e do qual dependia a sorte de sua filha.
Ao levantar da mesa, tratou o corretor de colher informações exatas acerca do passeio; queria saber ao certo o ponto a que já tinham chegado as cousas, para desde logo pedir a intervenção paterna, se as circunstâncias reclamassem esse extremo recurso, ultima ratio dos pretendentes repelidos pela noiva.
Os companheiros de passeio, moços do comércio, ou porque em verdade nada tivessem observado de suspeito, ou para consolarem o corretor, mostraram-se convencidos de que não havia da parte de Guida para Ricardo mais do que a amabilidade de uma moça espirituosa e, quando muito, uma pequena dose de coquetterie. Assim falavam eles; eu diria: coquetismo em linguagem da moda, e faceirice, à nossa maneira.
O Guimarães não tomou a cousa ao sério:
— Ora, estão vocês aí com histórias! A Guida o que fez hoje no passeio, assim como no domingo passado, foi debicar o tal caipira de São Paulo. Aquilo é um pratinho soberbo, nem vocês imaginam!...
E soltando um ritornelo da sua implicante risada, lá se foi o moço bonito a borboletear entre o círculo das moças, amolando as guias do bigodinho assassino, e mirando-se em falta de espelho n'água cristalina que enchia a bacia de mármore dos repuxos.
Convencido de estarem todas aquelas meninas morrendo por possuí-lo, pensava lá consigo que era uma crueldade causar tantos infortúnios para satisfazer a paixão de uma só, de Guida. Mas não obstante o desengano, sabia que não podendo resistir à sedução, ardiam em desejos de se fartarem de beijos naquela boca tentadora; imaginando que já o perseguiam as míseras namoradas sem ventura, por faceirice furtava-se o rapaz às suas carícias. E com efeito, às vezes interrompendo o giro pelo jardim, fazia uma pirueta à vista das senhoras.
Entretanto na roda do Bastos, continuava a investigação dos pormenores do passeio com relação ao ponto importante. Chegara-se o Lima e sabendo do que se tratava, quis também dar sua opinião, fundada em informações verídicas:
— Esteja descansado, disse ele ao Bastos. Não há nada!
— Deveras! Você me assegura?...
— Pode escrever.
— Mas como sabe? perguntou o Visconde da Aljuba, que até aí se tinha contentado com ouvir.
— É verdade. Você não foi do passeio.
— Eu lhe digo o como sei melhor do que todos que lá foram. Conversando com D. Guilhermina, antes do jantar, falei a respeito dessa novidade que os senhores trouxeram.
— Eu não! repetiu meia dúzia de vozes.
— Creio que foi o sr. visconde!
— Se fui eu, do que não me lembro, é que alguém me disse, respondeu sem desconcertar-se o homúnculo.
— Quer saber o que me respondeu D. Guilhermina? — “Qual, Lima, não acredite! Deixe-os falar! A Guida nem pensa nisso. Pois não vê que se houvesse alguma cousa, ela não trataria o Ricardo com tanta familiaridade e sem acanhamento, como eu trato o Fábio, por exemplo?”
— Esta última razão, acrescentou sonsamente o visconde, não me tinha lembrado. É de arromba! Está decidido que não há nada absolu...
Não acabou o Aljuba de debulhar tranquilamente as sílabas do seu advérbio, porque foi de repente arrebatado à terra, e depois de uma ascensão curta e rápida se achou sentado no jardim, sem compreender ainda como isto acontecera.
A causa do fenômeno ali estava em carne e osso. Era o Sr. Benício que, passando casualmente pela próxima alameda, a farejar no jardim, o que não descobrira na sala, isto é, “uma pessoa a obsequiar”, bispou de longe a figurinha do visconde aprumada sobre a base.
— O sr. visconde de pé!... exclamou o Benício.
O incomparável obsequiador possuiu-se de um horror que talvez não lhe causasse o visconde, se em vez de ter-se direito, como a natureza o fizera, pusesse as mãos na areia, e fazendo cauda d'aba da casaca, imitasse o gambá, de que tinha seus traços fisionômicos.
Em dois saltos o homem serviçal galgou a escadaria de pedra, arrebatou da sala uma cadeira, e arremessando-se com ela ao jardim, foi cair precisamente no meio da roda. Aí fincando com a mão esquerda a cadeira na areia, com a direita empunhou o exíguo visconde pelo pescoço, como o faria ao gargalo de um moringue, e assentou-o em cheio na cadeira.
Esta rápida operação foi acompanhada da seguinte jaculatória:
— V. Ex.a de pé, sr. visconde! E eu sem ver! Oh! desculpe-me, excelentíssimo. Aqui tem V. Ex.a uma cadeira. Mas não se incomode, excelentíssimo, por quem é! Deixe, eu mesmo o sento! Para que ter este trabalho! Assim; esteja a gosto; não precisa mais nada?
— Nada, nada! obrigado, muito obrigado, Sr. Benifício, mil vezes obrigado! pôde afinal responder o visconde, fincado na cadeira, e desdobrando-se como um couro amarrotado.
— Aqui está quem pode dar boas informações! disse um da roda.
— Oh! o Benício deve saber. Pois era ele quem os acompanhava, acudiu outro.
— Não veem como está bem penteadinho! tornou o primeiro alisando as falripas do amanuense.
— O quê? O que, homem? dizia no entanto o Benício.
— Estávamos aqui numa dúvida de que só você nos pode tirar.
— Vamos a ver! Para o que é servir aos amigos, eu estou pronto sempre.
— O que acha o senhor? A Guidinha está deveras mordida?
— Hem?
— Deu corda ao bicho?
— Aí, que os amigos querem se divertir à minha custa!
Interveio o visconde:
— Não seja desconfiado, homem. Estes senhores desejam saber se pelo que observou esta manhã no passeio, especialmente quando acompanhou a D. Guida, percebeu que ela tinha sua quedinha pelo tal Ricardo.
— Ah! é isso?
O homem serviçal não tinha observado cousa alguma, nem era capaz de semelhante exerção de espírito. Acompanhara os dois moços absorvido na satisfação de obsequiar dois mortais a um tempo; e isto bastava para ocupar toda a atividade moral de que era capaz o seu indivíduo. É certo que lá num refolho escuro daquele miolo animal despontava um grelo de ideia. O homem tinha uma bronca intuição de estar obsequiando os dois moços, não só com a sombra do chapéu de sol, mas com a sombra da cabeleira.
Agora, metido na roda, entre as galhofas dos rapazes, e com as explicações do visconde, o grelo da ideia lhe abrolhara no cérebro; percebeu do que se tratava, ainda mais dando com a cara amarrada do Bastos.
O amanuense tinha especial birra ao corretor. A emulação é achaque de que padecem os talentos. O empenho do Bastos em incumbir-se das encomendas de D. Paulina, de Guida e outras senhoras, despertara justo zelo no amanuense, que tomava aquelas obsequiosidades por verdadeiras usurpações de suas ocupações privativas. Entendia o “homem serviçal”, que, dando-lhe uma sinecura, o governo lhe concedera privilégio exclusivo para obsequiar o próximo, e ninguém podia privá-lo dessa honra.
Em sua qualidade de animal daninho tem o homem um faro para vingança. Doutro modo não se explica o que passou na cachola do Benício:
— Cá para mim é negócio decidido, respondeu impavidamente o amanuense. Esta manhã quando tive a honra de segurar o chapéu de sol para os noivos, bem me estava lembrando que amanhã tenho de visitar o meu amigo monsenhor. É bom a gente andar prevenido; e como eu é que hei de ser incumbido de arranjar os papéis na Conceição!...
— São histórias do Benício, atalhou o visconde metendo à bulha o amanuense. Que o maganão não pilha a moça, nem o dote, por essa fico eu, e se quiserem uma apostazinha...
Não obstante a confiança na sagacidade do Aljuba e sobretudo em sua avareza, que não havia de arriscar a aposta sem plena certeza de a ganhar, a balela do casamento da filha do banqueiro continuou a correr entre os convidados, e não se falava em outra cousa no salão, quando ali entrou Ricardo.
Todas as vistas fitaram-se nele procurando-lhe no semblante a ufania do triunfo; e tal é o poder da imaginação, que muitos a viram desenhada em uma fisionomia onde os paradoxos do Nogueira haviam deixado traços bem expressivos de tédio e desgosto.
Notou Guida essa expressão de Ricardo, que distraidamente e sem percebê-la, sentara-se a seu lado.
— Sabe a novidade? perguntou a moça.
— Qual?
— Ainda não lhe deram os parabéns?
— Por que motivo?
— Deveras não sabe?
— Entrei agora mesmo na sala.
— Pois então, deve-me as alvíssaras. O senhor está para casar comigo.
— Não entendo! respondeu Ricardo fugindo ao gracejo.
— Parece-me que é bem claro. Depois do jantar não se tem falado aqui de outra cousa.
— Mas é uma indignidade! exclamou o mancebo, mal contendo a revolta dos brios.
— Faça como eu! acudiu Guida sorrindo. Não se importe! A princípio também me incomodavam essas impertinências; agora estou habituada; e ainda agradeço quando não me dão por noivo algum bobo ou algum traste, como já tem sucedido.
— Mas eu não lhes dei o direito de se divertirem com meu nome!
— E dei-lhes eu acaso? tornou Guida. Tenha paciência; amanhã me inventarão outro noivo; e o senhor ficará descansado. Eu é que infelizmente não tenho quem me tire da berlinda.
Ditas estas palavras em tom que flutuava entre o motejo e a contrariedade, a filha do banqueiro ergueu-se para dirigir-se ao piano, onde a chamara D. Clarinha.