Terminara o jantar em casa do Soares.

O crepúsculo da tarde cambiava-se com o frouxo lampejo da lua que assomava por trás das serras.

Erguendo-se da mesa, os convidados espalharam-se pelo jardim, uns para gozarem da frescura e beleza da ave-maria campestre; outros para se recrearem com o passeio e o movimento; alguns maquinalmente, por imitação.

Mrs. Trowshy traçando o braço de Guida e recitando-lhe uns versos de Shakespeare atravessou o jardim:

Come, gentle night, come, loving, black brow'd night,
Give me my Romeo, and when he shall die,
Take him, and cut him out in little stars,
And he will make the face of heaven so fine,
That the world will be in love with night
And pay no worship to the garish sun.


Encontrando Ricardo, a mestra parou para dizer-lhe em francês:

— Veja que injustiça, senhor doutor, Guida não gosta destes versos.

— Ouça! disse Guida, e repetiu os versos.

— Se os lesse, poderia dizer alguma cousa, respondeu Ricardo.

— Pois eu pensava que tinha excelente pronúncia, acudiu a moça com ar zombeteiro. Minha mestra diz que pareço uma inglesa; salvo quando eu repito o nome dela — “Missis Trouxa”. Aí acha-me horrível.

— Trowshy! emendou gravemente a mestra que pouco entendia de português.

— Mas a culpa não é de sua pronúncia: é do meu ouvido que ainda não se habituou, nem creio que se habitue nunca, a essa língua mais de engolir que de falar!

— Pois eu vou traduzir-lhe os versos ao pé da letra, se me permite: Vem, gentil noite, vem, amável e escura noite, dá-me o meu Romeu e quando ele morrer, tomai-o, cortai-o em estrelinhas, e ele tornará o céu tão belo, que todo o mundo se apaixonará pela noite, e não pagará mais tributo ao garrido sol. Não são magníficos?

Ricardo sorriu:

— São originais, pelo menos.

— Suponha o senhor que um poeta brasileiro fizesse alguma índia falar semelhante linguagem, e pedir à noite que picasse o seu amado em estrelinhas, não de massa, mas de papel dourado. Que risadas não dariam os ingleses e como não encheriam a boca de nonsense? Mas é Shakespeare... o grande mestre...

The immense, the prodigious Shakespeare!... interrompeu Mrs. Trowshy no plenilúnio de seu entusiasmo.

— Talvez o poeta quisesse exprimir por esse modo a ingenuidade infantil de Julieta, que era quase uma criança.

— E não achou um modo mais delicado? O senhor escreveria semelhantes versos?

— Não sou poeta.

— Ora! Quem não o é hoje em dia? O senhor conceberia Julieta pedindo a Deus para fazer duas estrelas dos olhos de Romeu; ou para mudar os seus cabelos em raios de luz, como os de Berenice; mas para cortá-lo a ele em pedacinhos... Shocking! disse a menina pedindo ao inglês a expressão de seu sarcasmo.

A rir afastou-se Guida com Mrs. Trowshy, pelo caminho da Cascatinha que era o ponto do passeio.

O Dr. Nogueira aproximara-se de Ricardo e lhe oferecera um dos seus “regalias” convidando-o a fumar no canto mais afastado. Ali via-se uma fonte de ferro esmaltado representando a náiade do jardim dentro duma concha, a banhar-se nas próprias águas que vertiam-lhe dos olhos como torrentes de lágrimas.

Desde o primeiro dia Ricardo notara o Dr. Nogueira, cujo nome já conhecia pela reputação de talento que o cercava, e desejou aproximar-se dele. Deteve-o porém a expressão de fria arrogância que esticava o perfil e o talhe do candidato. Esse empertigamento moral revelava a afinidade que havia entre a alma do candidato e a vaidade feminina. Era alma que não dispensava os arrebiques e espartilhos ainda mesmo em casa.

Foi pois com prazer que Ricardo aceitou o charuto e a palestra, que lhe oferecera o Dr. Nogueira.

O candidato, como alguns homens de talento, longe de desdenhar os gozos materiais, entendia que é a carne que faz o espírito, o apura e lhe dá o nervo. Assim apreciava ele depois de um excelente jantar a febre sibarítica, perfumada com as fumaças do melhor tabaco da Havana, e embalada pelo burburinho da água trepidando na fonte ou pelo ruge-ruge das folhas das palmeiras.

E na forma do preceito de Horácio — miscuit utile dulci — aproveitou aquelas horas voluptuosas do quilo, para conhecer o adversário com que tinha de bater-se na campanha matrimonial, em que se achava empenhado.

— Aqui estaremos perfeitamente, disse Nogueira sentando-se na ponta do banco e indicando a seu lado um lugar ao moço. Gosto de fumar neste canto o meu charuto depois de jantar. O barulho da fonte, misturado com o dos coqueiros, derrama uma ligeira sonolência, quanto basta para não pensar; mas não tanto, que se deixe de sentir e gozar.

Notou Ricardo que o devaneio desse espírito, como a sua amabilidade, tinham às vezes umas quinas ásperas: eram como tela de painel, que uma lasca da madeira estofa. Uma circunstância mínima lhe revelou esse traço fisiológico. O termo “barulho” para indicar o burburinho d'água, empregado por homem de tribuna e eloquente, mostrava um defeito de educação. Como sucede à maior parte dos talentos que figuram em nosso país, não tinha Nogueira o polimento literário, e embora sentisse depois de certo tempo a necessidade de dar à sua palavra certo verniz de estilo, contudo notava-se ainda muita falha, em que através da arrogância do figurão, percebia-se a crosta do filho das ervas. A palavra é para esses mercenários o instrumento do ofício, a trolha do pedreiro.

— Temos demais a vantagem de livrar-nos da algazarra, que por lá vai. Esta gente avalia do espírito, como do champanha, pelo estouro; e então desafiam-se a quem dará as mais descompostas gargalhadas, para chamar a atenção.

— No fim de contas, parece que eles têm razão. É o rumor quem governa o mundo.

— Quer dizer a opinião.

— Não é a mesma cousa?

— Há sua diferença, impôs dogmaticamente o Nogueira, e passou adiante. A tarde está quente!... A estas horas costuma correr alguma brisa, mas hoje está abafado. Neste ponto Petrópolis é preferível à Tijuca. Eu, se não estivesse preso a esta gleba da cidade, é onde passaria o verão.

— V. Ex.a é advogado? perguntou Ricardo para dizer alguma cousa e encher a pausa que lhe deixara o Nogueira.

— Tenho um escritório com o nome na porta, mas é para constar... serve de ponto de palestra aos amigos. A advocacia já não é uma profissão.

— Perdão; eu a conto entre as mais nobres.

— Assim devia ser. Mas aí, como em tudo, o fato insurge-se contra o princípio. Não é esta a história do século dezenove, ao contrário do século dezoito, que foi a revolta da ideia contra o abuso e o prejuízo? A advocacia não passa de um pretexto; é um título de apresentação na sociedade. No foro inventou-se outrora um nome decente para certas indústrias, que se não confessam; certos réus ou testemunhas interrogados aos costumes, declaram que vivem de “suas agências”. Pois a palavra “advogado” tem o mesmo préstimo, com a diferença de serem os agentes mais graduados e as agências mais gordas.

— E V. Ex.a pertence a esta classe? observou Ricardo com ironia.

— Por que não? Charles Nodier dizia no princípio deste século — Je ne connais qu’un métier à décrier, celui de Dieu!

O Nogueira, que tinha presunção de falar bem as línguas estrangeiras, pronunciou a citação francesa com uma afetação ridícula e um sotaque que devia ferir o ouvido normando.

— Pois eu creio que em França nenhum ofício caíra em maior descrédito, observou com muito a propósito o paulista.

— Deixemos de parte a religião. É ponto que não discuto, atalhou categoricamente o candidato, e prosseguiu.

Mas Ricardo interrompeu:

— Não chamo religião essa exploração da consciência a que o escritor francês dava com muita propriedade o nome de ofício.

Custou a Ricardo inserir no discurso do Nogueira esta pequena observação. Foi necessário cortar-lhe a palavra, e arrostar o gesto desdenhoso e magistral do candidato que desviava a réplica, dum revés do rosto.

— Em país algum é tão verdadeiro o dito de Nodier como em o nosso, continuou o Dr. Nogueira com o tom amplo e sobranceiro de que servia-se para abafar as interrupções. Há cousa que mais se tenha ridicularizado do que sejam as altas posições políticas, e sobretudo o cargo de ministro? E não obstante todos caminhamos para lá.

— Nem todos! contestou Ricardo.

— Sou advogado, pois, como serei deputado amanhã e mais tarde ministro e senador. Em toda a parte onde se reúnem i animali parlanti, por força que há de haver o deus e a besta. Ensinam as Santas Escrituras que o Criador formou o homem do lodo, amassando o barro e inspirando-lhe a centelha divina. Pois não é de admirar que em se chocando uns com outros, a lama de certas figuras se desmanche, e então que remédio têm os outros homens, senão patinharem nela, se querem passar adiante?

— Os ambiciosos vulgares, não duvido que tenham pressa de chegar e não escolham caminho, nem companheiros de jornada. Mas há quem se desvie com asco do charco, embora se resigne a não passar adiante.

— O senhor formou-se ultimamente? perguntou o Nogueira com um sorriso protetor.

— Há cinco anos.

— E é advogado também?

O protesto que em tom veemente acabava de fazer contra as doutrinas do Nogueira, não o pudera conter o jovem e brioso paulista. Mas, arrependido, prometeu-se não tomar ao sério as excentricidades do Dr. Nogueira, o qual sem dúvida sofria de um sestro, que ataca muito os homens vaidosos de seu talento, o sestro do paradoxo.

Assim como as damas, desvanecidas de sua formosura, inventam modas esquisitas e farfalhadas, penteados incríveis, anquinhas atentatórias da moral pública, escandalosos falbalás e cinturas extravagantes, assim os talentos fátuos se deleitam em provar absurdos.

— Aspiro a sê-lo; mas não como V. Ex.a o entende, respondeu Ricardo com polida ironia à pergunta do Nogueira.

— Pensa então o senhor, que a ciência do mundo aprende-se nas escolas e academias? Se conheço hoje a nossa sociedade, não foi pelo que me ensinaram em Olinda, mas pelo que aprendi em um curso mais longo, em cerca de vinte anos de experiência. Na sua idade também tinha a cabeça cheia de utopias, e o coração abarrotado de ilusões. A advocacia representava para mim o sacerdócio da justiça, a nobre independência do talento. A imprensa, eu a considerava como uma realeza, e a mais legítima, porque tinha o seu trono na opinião.

— Mas isso não passava de uma abusão?

— Completa, meu colega. Quando tiver alguma prática do foro, há de reconhecer que são as boas causas as que mais frequentemente se perdem. Quem sustenta um pleito justo, confia no direito; mas o seu adversário emprega todos os recursos: e ganha. Quanto à independência, não passa de uma burla; todos nós, que mais somos do que uma cadeia de fuzis? Cada um segura-se ao anel de cima, e por sua vez suspende o anel de baixo; e assim trabalha a corrente do guindaste.

— Não confunda V. Ex.a a independência com a barbaria, ou ainda com a misantropia. A sua virtude consiste justamente em manter o caráter no meio das colisões e embates que o abalam. Aí está a dignidade do homem, lutar e vencer; isolar-se do mundo, parece mais covardia.

— Devaneios, replicou Nogueira com desdém. Isso que chama dignidade, meu colega, é nada menos que um crime e grave; vale tanto como uma insurreição, ou uma revolta. Todos a condenam; ninguém perdoa. Se o caluniarem, aparecerá um poder chamado moderador, que fará presente de sua honra ao pasquineiro; mas para o insulto que o senhor fizer a uma cidade corrompida, afrontando-a com os seus brios, para esse delito de lesa-sociedade não há graça; ao contrário, toda a severidade amassada nas altas regiões desfechará sobre o réu convicto do pundonor e integridade!

— Neste ponto não duvido que tenha razão. Como Circe que transformava os seus amantes em barrões, a política namora os mais belos talentos, e nada lhes recusa, contanto que fossem.

— Gosta da fábula? disse o candidato com um leve toque de pedantismo. Pois eu prefiro a história, a grande mestra. A política é em nosso país o mesmo que tem sido em toda a parte, uma cortesã. Quando recebe na alcova...

— No gineceu...

— Na alcova os Péricles e os Sócrates, torna-se Aspásia; mas, se entrega-se aos gladiadores e servos, cai em Messalina.

— Se V. Ex.a permite uma observação...

— Sem dúvida.

— Não foi Péricles quem fez Aspásia; ao contrário, depois que morreu o grande ateniense, ela casou-se com uma casta de barão daqueles tempos, um rico marchante, e conseguiu tirar desse lixo de ouro um grande orador.

O Nogueira, que não se deixava derrotar, ainda mesmo nos seus eclipses, acudiu pronto:

— Acredita nisso? É uma galanteria do historiador, se não foi do próprio Lísicles, que para lisonjear a mulher, atribuiu-lhe o que só devia a seus esforços.

— Acredito, sim; porque não o dizem somente as tradições de Atenas: é a história eterna da humanidade. Por toda a parte a mulher é a alma do homem.

Deixou o candidato cair a conversa um instante para repousar a palavra, e ao mesmo tempo imprimir outra direção ao diálogo.