Suspiros poéticos e saudades (1865)/O Christianismo: Na Cathedral de Milão
Na Catedral de Milão
Mal que à Natura se abre a inteligência,
E o primo pensamento a alma desperta,
Logo a idéia de Deus d'ela se apossa,
E a origem sua, e o seu destino aclara.
Súbito um fogo, mais que o sol brilhante
Que as gerações dos trópicos abrasa,
Mais veemente que os vulcões da terra,
N'alma se ateia, fogo inexaurível,
Casto fogo de amor, que interno a lavra,
E a Deus a sobe em espontâneo culto.
Não, o medo não foi quem sobre a terra
Os joelhos dobrou do homem primeiro,
E as mãos aos céus ergueu-lhe! Não, o medo
Não foi o criador da Divindade!
Foi o espanto, o amor, a consciência,
E a sublime efusão d'alma, e sentidos!
Viu o homem seu Deus por toda parte,
E sua alma exaltou-se de alegria.
Mas no amoroso êxtase não pára,
A interna adoração só lhe não basta,
Não se farta de amor, que amor sagrado
É invencível, poderosa força,
Que o espírito levanta ao infinito,
Como a atração os orbes equilibra
Na imensidade, a que escapar não podem.
Deve o espaço conter a sacra imagem
De sua adoração, devem os filhos,
Os netos devem nas futuras eras,
Vendo esta imagem, adorar o Eterno.
Mas, oh homem, que ousado intento é este?
Erguer um templo a Deus!... Que! porventura
Templo o espaço não é digno do Eterno?
As montanhas, o mar, os céus, os astros
Assaz não ornam do Senhor o templo?
Ou temes que em tão vasto santuário,
Nesse profundo abismo do infinito,
Vê-lo teus olhos míopes não possam?
Como possível é que espaço estreito
Abranja o Criador, que enche o Universo?
Mas pagas um tributo; — Ele to aceita.
Obreiro do Senhor, eia, trabalha,
Sem descanso trabalha dia, e noite;
Que teu Deus não repousa um só instante,
Para a ordem manter de tantos mundos.
Ah se ele um só minuto, repousasse,
Que seria de ti, deste Universo?
Alfim teu templo ergueste; reuniste
Tudo que há de mais belo sobre a terra,
E sec'los no trabalho se passaram!
Tudo aqui fala, tudo aqui revela
A força oculta que sustenta o homem,
E o destino imortal na Eternidade.
A rigidez do mármore, e a brancura
Duração, e pureza simbolizam;
A larga base, a altura, a esbelta forma,
A agulha, cuja ponta as nuvens rompe,
E parece querer fugir do espaço;
A áurea Virgem, que brilha em seu fastígio,
E este povo de estátuas, que a rodeiam,
Todas de branco mármore polido,
Que a glória do Senhor perene cantam;
Tudo, enfim tudo sem cessar proclama,
Que o pensamento que tão alto voa,
Que o pensamento que tais obras cria,
Que o pensamento que só Deus concebe,
Tem no tempo a existência, e não se curva
À lei que rege o habitador do espaço.
Tão simples como Deus, donde ele emana,
Não se aniquila como bruta mole;
Mas em louvor sem fim, a Deus unido,
Vive eternal em toda a Eternidade.
Assim é que o espírito celeste,
Que a massa humana anima, e nela impera,
De seu Deus concebendo a idéia pura,
Da terra se desprende se sublima,
E do sagrado amor nas ígneas asas
Sobe ao seio do Eterno, que o gerara.
Assim é que das lâmpadas do templo
Pirâmides de fogo se levantam,
E se perdem nos ares, qual se perde
O pensamento humano no infinito.
Santa Religião, sublime, augusta,
Tu a idéia de Deus esclareceste,
Idéia que, nas trevas que envolviam
A alma humana, brilhou como um relampo.
Divina inspiração, tu só podias
O espírito subir ao seu Princípio,
A despeito do mundo, e dos sentidos
Nem sempre verdadeiros. Tu revelas
Sacras verdades aos humanos úteis,
Que fora de teu grêmio embalde o homem
Orgulhoso procura; ao desgraçado
Oculta mão estendes caridosa:
Sempre consoladora, afável sempre,
Que mal há aí, que em ti cura não ache?
Ao som de tua voz misteriosa
Os errantes selvagens suspenderam
As mãos de sangue tintas, e prostrados
Sobre a terra, até ali inculta e brava,
A insólita voz tua repetiram
Em espontâneo arroubo. — A Natureza
Riu-se então, quando viu pela vez prima
Um homem abraçar o outro homem,
E em socorro comum viver jurarem.
Quis o homem tecer os teus louvores,
E a primeira palavra foi um hino,
O primeiro discurso Poesia.
E o homem, que até ali solto vagava,
Fraco, impotente entre animais ferozes,
Pelo místico cântico atraído,
A bronca penedia abandonando,
A viver começou em sociedade.
O gênio então nasceu! — Como para o mundo
Entre os astros o sol mais claro brilha,
E aos outros astros sua luz envia,
Deus o gênio acendeu entre mil almas,
Para ser o fanal da Humanidade.
Santa Religião, amor divino,
Que benefícios sobre a terra espalhas!
Quanto é misterioso o Ser que inflamas!
De quanto ele é capaz! Vejo donzelas,
Roboradas por ti, vencer a morte!
Vejo feros tiranos destronados,
Vejo Nações erguidas, e cidades,
Seus louros a teus pés heróis deporem,
As Ciências, e as Artes florescentes,
Firme a Moral, as Leis, a Liberdade,
E a Humanidade inteira que te abraça,
E te proclama como Mãe de tudo.
Oh das Religiões a mais perfeita,
Oh única de Deus, e do homem digna!
Religião plantada no Calvário,
E co'o sangue do Cristo alimentada!
Religião de amor, de paz, de vida!
Tu, que civilizaste a Europa toda,
E primeira na América lançaste
O gérmen da grandeza, a que ela aspira;
Tu, que marcas de Deus a majestade,
Os direitos do homem sobre a terra,
E o seu porvir sublime além da morte;
Tu, que aclaras os povos, e co'os povos
De progresso em progresso ovante marchas,
Como a mãe que acompanha o caro filho,
Sem que a tua divina essência percas;
Teus inefáveis dons benigna espalha
Sobre os filhos dos homens, sempre... sempre.
Religião, inflama, e purifica
Meus pensamentos, e conforto presta
Ao infeliz peregrino que te invoca,
E que só em teu grêmio paz encontra.
Milão, 17 de outubro de1834