— Ora, sempre vamos ao Rio de Janeiro, ao grande e espetaculoso Rio de Janeiro! — exclamou Evaristo, pousando o chapéu, com ar de triunfo. — É como lá diz o outro: — quem espera... Eu nunca me enganei com o Luís... nunca!

Saíam-lhe em jorro as palavras, num tom quente de vitória, de aclamação, de regozijo.

Adelaide não o compreendeu logo, e, sem o compreender, exultava diante da intempestiva alegria do marido, com os olhos nele, ansiosa.

— Que é, homem de Deus, que foi... Que mistério!

— Nada, filha, nada; estamos aqui, estamos no Rio de Janeiro — ouviste? — no grandioso Rio de Janeiro!

Ela sorriu com um muxoxo:

— Brincadeira!

— Brincadeira? Telegrama do Luís Furtado. Um emprego no Banco Industrial...

— Que é do telegrama? — perguntou Adelaide, arredando o cabelo dos olhos e com o mesmo sorriso de incredulidade.

— Cá está, no bolsinho; recebi quando menos esperava.

E, desdobrando o papel:

— 'Emprego Banco Industrial garantido. Venha. — Luís."

Foram entrando ambos para a sala de jantar — Evaristo um pouco apressado.

— Tu não imaginas — ia ele dizendo, sem se voltar para a mulher -, tu não imaginas como estou alegre! No Rio de Janeiro a coisa é outra! Um homem adquire relações, ganha fama e, quando pensa, tem sua economiazinha... Quem vai ao Rio, ipso facto, vai à Europa. Ora, digam lá para que me tem servido a carta de bacharel? Para nada, para coisíssima alguma! Bacharel em província é objeto de luxo e eu estou farto de misérias!

Adelaide, meio triste, perguntou-lhe se queria jantar.

— Por que não? Imediatamente. Hoje é?...

— Terça.

— Domingo há vapor e eu tenho muito que fazer. Hoje mesmo, acabando daqui, vou telegrafar ao Luís. Manda botar a sopa.

— Jesus, que sofreguidão, Evaristo! Ao menos tira o paletó.

— Qual paletó! ~ daqui para o Telégrafo e amanhã, se Deus quiser, os jornais dão noticia da minha ida ao Rio. Um emprego no Banco Industrial do Rio de Janeiro é papa-fina. Já ouviste falar no Banco Industrial?

— Não.

— Pois é um excelente emprego — um empregão!

Adelaide pediu o jantar à porta da cozinha e veio sentar-se à mesa.

Eram pobres, de uma pobreza honesta e limpa. Moravam nos arredores da cidade, num lugar chamado Coqueiros, onde a vida era quieta e ninguém os ia incomodar nas horas de descanso. Assim que desciam as primeiras sombras da noite, caía todo o bairro numa extraordinária mudez, num silêncio de aldeia feliz, cortado, apenas, em noites de lua, pelo choro melancólico dalgum violão boêmio que passava dizendo histórias de amor... A própria estação do trem era um pouquinho longe da casa em que moravam.

Evaristo, porém, tinha suas ambições e não podia contentar-se com aquela vida de jesuíta. O Rio de Janeiro atraía-o para as grandes lutas, para cometimentos estrondosos, que o celebrizassem dalguma forma. Rapazes, seus conhecidos (o Luís Furtado era um deles) viviam muito bem na Corte — formados, gozando de nomeada na advocacia, no magistério; outros, que nem sabiam o bê-a-bá do direito, elogiados na literatura, na imprensa, em tudo! Luís Furtado, por exemplo, Luís Furtado, ele o conhecia desde criança, desde os bancos colegiais, quando ambos cursavam o Liceu; eram amigos, amiguinhos como dois irmãos. Pois bem, Luís Furtado não tinha nenhum preparatório, fora péssimo estudante de latim, na aula do Padre Lustosa, de francês, e mesmo da língua de Camões; no entanto, estava muitíssimo bem colocado no Rio — podia-se dizer que era dono de jornal, influência literária e quase capitalista! E ele, Evaristo? Formado, bacharel em direito, autor de muitos escritos, no entanto era aquilo: duzentos mil-réis — uma vergonha — casa em Coqueiros, e, quanto a futuro, temos conversado!

— E ou não é verdade o que eu digo? — perguntava ele à mulher.

Esta confirmava: "- Não dizia que não; mas o tal Rio de Janeiro, o tal Rio de Janeiro..."

— Invenções, minha mulher, invenções da gente que não tem o que fazer. O Rio de Janeiro não é, nem nunca foi bicho-de-sete-cabeças. Eu leio jornais e sei bem o que aquilo é. Você verá com os próprios olhos. Falam muito nas francesas do Largo do Rocio, nos teatros, na jogatina. Ora, isso em toda parte há; o vício está no sangue do indivíduo; quando o homem tem de ser coisa ruim, o é no Rio de Janeiro, na Patagônia, em Paris... no inferno! Compreende agora que não me vou atirar ao luxo, ao pagode, à bandalheira. O que eu quero simplesmente, exclusivamente, é fazer pela vida, ganhar algum dinheiro, prosperar, com os diabos!

Adelaide, rapariga dócil, de coração meigo como o coração das pombas, ouvia tudo, e, em extremo confiante no marido, achava que o que ele dizia era a pura verdade. Mas não deixava de o aconselhar que pensasse bem, antes de tomar uma resolução. Nada de vexame, para depois não haver arrependimento.

— Que arrependimento! Arrependido estou eu de já não ter metido ombros a uma viagem. A província não bota ninguém pra diante. Vamos à Corte, vamos melhorar. Por que não hei de ser feliz, eu, que trabalho como trabalho, por quê? Faça de conta que comprei um bilhete. A vida é simplesmente uma loteria: questão de felicidade.

Evaristo tomou um gole d'água, para rebater a sobremesa e ergueu-se, palitando os dentes.

— Então, sempre queres ir à cidade? — perguntou Adelaide sem se mover.

— Imediatamente. Vou telegrafar ao Luís e espalhar a grande notícia!

— Mas não te demores, Evaristo; olha que fico só neste subterrâneo...

— Nada, não me demoro nada: é um pulo.

E o futuro empregado do Banco Industrial do Rio de Janeiro, depois de acender um cigarro, largou-se, numa precipitação de médico que vai a chamado urgentíssimo.

— 'Té logo, 'té logo!

Que pressa de homem! — sorriu Adelaide, ouvindo bater a porta da rua. — Que desespero!

— Nhõ Varisto nem quis jantar! — acrescentou a cozinheira se aproximando.

— Tira a mesa, Balbina. Sabes que vamos para o Rio de Janeiro?

— Rio Janeiro, nhá Delaida! Onde é isso?

Uma terra muito boa, muito bonita, onde mora o Imperador...

— Ah!... Rio Janeiro...

E a preta velha ficou a olhar o teto, a olhar, com a mão no queixo, muito admirada.

— Rio Janeiro... E a velha Balbina agora tem de procurar casa?

— Não sei; o Evaristo é que há de dizer...

As duas mulheres, a velha e a moça, trocaram um olhar vago, um olhar quase sem expressão, mas onde havia uma sombra de tristeza. Balbina compreendeu, àquela simples notícia, que ia ficar abandonada no seu rancho de negra velha, sem ganhar dinheiro, sem emprego, sem ocupação — ela, que estimava tanto "nhô Varisto" e "nhá Delaida", e que estava tão bem naquela casa! Adelaide, por sua vez, compreendia a tristeza de Balbina — pobre criatura quase octogenária, que eles ainda conservavam por amizade, por gratidão. Balbina fora escrava do pai de Evaristo, falecido há anos. Adelaide compreendia e ficava-se também a pensar no destino da velha, com uma ponta de saudade, quase com remorso de a deixar. Porque Evaristo absolutamente não podia levar Balbina — uma mulher idosa, coitada, muito boazinha, mas muito velha, sem forças mesmo para resistir.

Entretanto, a meiga senhora não quis precipitar as coisas. Mais vale uma esperança tarde que um desengano cedo. Deu a notícia por lealdade e calou-se.

À noite voltou o marido, cerca de nove horas, com um embrulho debaixo do braço, o colarinho imprestável de suor, às carreiras.

— Cá estou! — disse entrando. — Agora é arrumar os baús e tocar! Amanhã os jornais dão a minha ida, isto é, amanhã estoura a bomba!

Evaristo chamava "estourar a bomba" ao efeito que a notícia havia de produzir entre os seus inimigos, que não eram poucos.

— Que embrulho trazes aí? — perguntou Adelaide, curiosa.

— Um paletó de alpaca para a viagem.

Adelaide cruzou as mãos, meneando a cabeça.

— Oh, homem vexado! Nem que fosses embarcar amanhã...

— Não há tempo a perder, não há tempo a perder. Faça-se logo o que se tem de fazer!

— Quando há vapor?

— Domingo: o Maranhão. Hoje é terça, não é? Quarta, quinta, sexta e sábado, apenas quatro dias para os preparos de viagem. Nada!

— E a Balbina? — inquiriu Adelaide.

— A Balbina fica... não há remédio. Que vai ela fazer ao Rio? Nada de criados, por enquanto; as despesas são muitas e eu não posso arcar...

O coração de Adelaide comoveu-se ante aquele decreto formal de Evaristo. — Pobre da negra: tão boazinha...

— Que queres? É a vida. Ela que procure outra casa. Está livre, está senhora de si.

E foram-se recolher, à hora acostumada, sempre falando na viagem, no embarque, nas despedidas — Evaristo arquitetando planos, construindo castelos, lembrando uma coisa, outra...

Daí a quatro dias, com efeito, embarcava o futuro representante do Banco Industrial. Foi um acontecimento, em Coqueiros, a ida de "dona Adelaide" para a Corte, um verdadeiro acontecimento, por que todos a estimavam, todos queriam bem a ela, mesmo os estranhos, que só a conheciam de vista.

Balbina chorou a noite inteira, sem deixar o cachimbo, que lhe pendia dos beiços trêmulos, fungando e resmoneando. "- Só os abandonaria, quando eles, nhô Varisto e nhá Delaida, dobrassem a esquina..."

— Deixe estar, Balbina, deixe estar que hei de lhe mandar umas coisas do Rio — consolava Adelaide. — Também você já não é mulher para sair dos seus cômodos.

— E, nhá Delaida, é assim memo.

E a velha enxugava os olhos com a aba do casaco.

— E, nhá Delaida, é...

Um carro de aluguel esperava os viajantes, enquanto Evaristo, pingando suor, concluía umas arrumações no fundo da maleta, e Adelaide, assoando as lágrimas, em toilette de gorgorão, abanava-se na sala de jantar.

— Pronto? — perguntou de repente o bacharel.

— Eu estou pronta... respondeu a esposa, devagar, numa voz comovida.

E, daí a pouco, a velha Balbina se atirava aos pés de Adelaide, chorando, soluçando, agarrando-a espetaculosamente pelas pernas, numa dolorosa cena de lágrimas e exclamações.

— Deus a leve, nhá Delaida... vá com Deus!... Não lhe hei de querer mal, não, minha filha...

Adelaide — aquele coração terno de ave mansa — chorava também, um choro mudo que pungia.

— Basta, basta! — interrompeu Evaristo, limpando a face magra. — Acabem com isso...

No fundo, ele também estava comovido, e homem nervoso, não podia ver outra pessoa chorar.

O boleeiro perguntou para dentro se era só a caixa de chapéu, a maleta e a gaiola...

— Só — respondeu Evaristo.

Adelaide embarcou aos olhos curiosos da vizinhança, que tinha o ar compungido, depois embarcou Evaristo, ouviu-se um — adeusinho! — e o carro estremeceu.

Balbina, em pé no meio da rua, levava ainda uma vez a aba do casaco aos olhos.

...Foi assim que o bacharel Evaristo de Holanda se desenterrou de Coqueiros — "humilde e saudoso lugarejo de província" — como depois mandava dizer, em carta aos amigos.

Figurava a Corte do Império uma terra legendária de aventuras e de muito dinheiro, onde, com algum trabalho, qualquer homenzinho podia fazer fortuna em poucos anos, ou, quando mais não fosse, galgar posições, eminências cobiçadas, conquistar nome — celebrizar-se. Devorava os jornais do Rio, na biblioteca; lia tudo quanto na grande capital se publicava em prosa e verso; não era estranho ao movimento literário, aos saltos-mortais da política, às artes; interessava-se, como republicano, pela saúde do monarca e pelos escândalos mais ou menos ruidosos da Rua do Ouvidor; enfim, o Rio de Janeiro era, a seus olhos estáticos de provinciano, a quintessência da civilização — Paris em ponto pequeno.

Formado em direito, casara aos vinte e oito anos com uma rapariga órfã, chamada Adelaide — essa de coração meigo como o das pombas — que o amava desde o primeiro ano do curso e que o vira certo domingo numa festa de igreja. Adelaide era pobre, mas isso o não demovia de suas boas intenções: queria exatamente uma moça pobre, que o idolatrasse. Ele também nada possuía, mesmo nada: estudara à custa de um parente do Rio Grande, que lhe estabelecera parca mesada até que recebesse o título de bacharel. Antes, porém, do último ano acadêmico, pôde arranjar (a gente sempre se arranja...) um emprego, não muito rendoso, que conservou, a despeito da inútil carta doutoral, renunciando, com extraordinária isenção, à esmola que lhe vinha todos os meses do Rio Grande. — "Era tempo de se libertar!"

Não consultou a ninguém sobre o casamento; um belo dia soube-se que o Holanda, filho do finado juiz de direito, estava casado com uma moça pobre, mas "bonitinha"...

E estava. Casou sem ruído, sem luxo, indo logo morar em Coqueiros e acabando por achar aquilo muito fora da civilização, incompatível com a sua natureza irrequieta de homem que não veio ao mundo para morrer obscuro "num lugarejo humilde de província..."

Luís Furtado é que lhe metera na cabeça o Rio de Janeiro. — "Por que não te mudas para o Rio? — escrevia ele. — Uma coisa é a gente viver na província e outra coisa é respirar numa atmosfera civilizada. Sei de mim que estou muito bem, muitíssimo bem. Dou-me com o João Alfredo e com os principais personagens da política fluminense. Minha mulher está gorda e não quer saber de outra vida; diz que o Rio de Janeiro é um paraíso (expressão dela) e que tudo o mais, que não for o Rio de Janeiro, no Brasil, é caboclada, é selvageria. O Raul, meu filho mais velho, botei-o no colégio, no Internato Meneses Vieira, por insuportável. A Julinha é que está um encanto, uma delícia! Já fala, já diz mamãe, papai, bala, totó... Não imaginas. É uma graça ouví-la chamar — diabo, diabo, diabo! Enfim, meu Evaristo, a nossa casa, em Botafogo, se não é um palácio, também não é uma choupana... Vamos entrar na estação lírica."

E concluía instando para que o amigo fizesse um sacrifício, abandonasse aquela vida de província, trocando a monotonia de Coqueiros pela Rua do Ouvidor, pela civilização, por um chalezinho em Botafogo.

Evaristo ficava triste, mordia a ponta do bigode, passava a mão na cabeça, refletindo, parafusando, oscilando entre o presente e o futuro, entre a quietação provinciana e o tumulto de uma cidade grande cheia de movimento e de sensações. 'Té que um dia, não obstante os ingênuos receios de Adelaide, optou pelo Rio de Janeiro e escreveu a Luís Furtado, autorizando-o a arranjar-lhe um emprego decente, é claro.

Meses depois Luís Furtado comunicava-lhe a sua nomeação para o Banco Industrial.

O Maranhão chegou ao Rio num domingo luminoso e calmo. Adelaide enjoara horrivelmente, sem sair do camarote, sem gozar dos aspectos da viagem, numa indolência estúpida, com a cabeça a doer, os olhos mortos de fadiga, debaixo dos lençóis, muitíssimo pálida. Oh, aquele maldito cheiro de azeite e de alcatrão, que vinha da proa, dava-lhe tonteiras, embrulhava-lhe o estômago, causava-lhe arrepios de náusea! Sempre meiga, porém, não se queixava, não se revoltava contra o marido, que, em parte, era o culpado. Bem que estavam tranqüilos na província!

Evaristo foi de uma solicitude incomparável, de um carinho extremoso. Ela nunca o vira tão amável, se é que se podia ser mais amável do que ele sempre fora. Todos a bordo notavam que "aquele moço de paletó de alpaca amarela" trazia os criados numa roda-viva, ocupava-os a todo instante, e era só abrindo e fechando o camarote, subindo e descendo escadas, numa azáfama. E entravam bandejas e saíam bandejas com iguarias especiais, com limonadas e frutas, e Evaristo ainda achava que era pouco!

Os passageiros desconfiavam de tanta dedicação e piscavam-se os olhos e sublinhavam risinhos de instintiva malícia. Não era possível que fossem casados! Qual casados! Donde saíra aquele exemplo de marido?

E falava-se baixinho no camarote n0 16 e no moço de paletó amarelo. Um caixeiro-viajante, que só andava de binóculo a tiracolo e sombrero de cortiça, afirmou que no camarote no 16 ia uma senhora tísica; uma ocasião vira-a, de relance, no fundo do beliche, muito magrinha, coitada, quase a morrer... Outro passageiro dizia que era a mãe do "paletó amarelo", uma velha doente de reumatismo.

Quando o Maranhão largou ferro, Adelaide estava pronta para desembarcar. A primeira pessoa que Evaristo viu da tolda na lancha do Arsenal de Guerra, foi o seu inestimável amigo Luís Furtado.

— Não é ele, ó Adelaide? — perguntou, indicando um sujeito alto, de cartola e sobrecasaca, muito aprumado na lancha.

Adelaide conhecia-lhe o retrato.

— É ele, sim, creio que é ele...

Nesse instante Luís Furtado acenava para bordo com o lenço; reconhecera o amigo; e de ambos os lados trocaram-se sinais de boas-vindas.

Horas depois rodava um carro para Botafogo, conduzindo Evaristo de Holanda, a mulher e Luís Furtado.

A residência deste era uma excelente casa de dois andares, vistosa, olhando para o Corcovado, nas imediações do cemitério de S. João Batista. Morava no primeiro andar; o segundo era ocupado por uma família estrangeira de vida misteriosa.

Furtado quis mostrar que inda ora amigo do seu amigo, hospedando-o em casa, acudindo-lhe às primeiras necessidades. Ele, que se gabava tanto de altas empresas no Rio de Janeiro, que dizia-se muitíssimo bem colocado", na praça e na sociedade fluminense, que falava no Lírico, em personagens eminentes da política contemporânea, despiu a vaidade que ostentara de longe para com Evaristo, e agora fazia-se pequeno, sem importância, "humilde secretário do Banco Industrial".

— Modéstia... modéstia — opunha Evaristo, batendo-lhe amigavelmente na coxa.

Adelaide sorria.

Enquanto o carro rodava para Botafogo, iam os três conversando, abrindo-se, dizendo novidades, perguntando pelos amigos. Os três, não, porque Adelaide não falava, não dizia nada — com um ar ingênuo e tímido.

Luís Furtado provocou-a:

— Vossa Excelência que acha, minha senhora: Evaristo fez bem ou mal vindo ao Rio?

Ela sorriu ainda, mas respondeu:

— Nem bem, nem mal... — voltando-se para o marido e catando um fio de algodão que brincava na roupa dele.

— Esta minha mulher é uma santa! — gracejou Evaristo.

— Acredito, pois não! acredito — confirmou o secretário. — Na minha opinião, todas as mulheres são umas santas...

— Oh, isso não! — exclamou o outro. — Mais devagar... Mulheres conheço eu de gênio infernal, capazes de vender... Judas!

— Qual! — duvidou Luís com uma ponta de ironia.

Certo é que ele achava qualquer coisa de puro no rosto sereno e meigo de Adelaide, uns longes de pintura religiosa, uma translucidez mística e evocadora, qualquer coisa, enfim, que não sabia determinar. Olhava-a de banda, enquanto dava atenção a Evaristo, como se quisesse gravar bem, na memória, aquele estranho tipo de brasileira.

O carro parou. Tinham chegado.

— É aqui — disse Luís.

E, rápido, adiantou-se para oferecer a mão a Adelaide.

A rua estava, como de costume, silenciosa, muito banhada de luz, na calma do meio-dia.

— Papai! Papai!

Era o filho mais velho de Luís, o Raul, que anunciava, berrando, as suas férias do domingo.

— Não é preciso gritar, meu filho, oh! — advertiu o secretário. E para Evaristo: — Cá está o meu Raul. Hoje, como é domingo, veio passar o dia em casa com a mãe

— Um homem! — exclamou Evaristo. — Que idade tem?

— Nove anos... Não é, meu filho?

— É, sim, papai; ainda vou fazer nove.

— Um homem!

Foram subindo a escada do sobrado.

— Aqui moro eu desde 882.

— Boa casa, muito boa, tem quintal?

— Um quintalão! Hás de ver.

Em cima, no primeiro andar, houve um rumor de passos precipitados, corridinhos na ponta dos pés, e de vozes falando baixo.

— D. Sinhá está aí, papai, comunicou o Raul.

— Bem, bem...

Entraram para a sala de visitas.

— Nada de cerimônias — pediu Luís Furtado. — Vocês agora é como se estivessem na própria casa. Vai chamar tua mãe, Raul.

O pequeno saiu correndo.

Adelaide, contrafeita, risonha por delicadeza, mas, em verdade, bem fora dos seus hábitos, ia notando intimamente, sem expressão de surpresa no olhar, a perspectiva do início carioca. Enquanto esperava a mulher de Furtado, abstraía-se na contemplação dos objetos que a cercavam agora, cada um dos quais era uma novidade para ela. Imobilizava-se, retraída, quase esmagada pelo aspecto luxuoso e confortável da mobília, dos quadros, das tapeçarias que ornavam a sala do secretário. E aquilo dava-lhe uma volúpia de bem-estar, uns arrepios de gozo calmo e de independência honesta que estava um pouco na massa do seu sangue.

... Foi interrompida nas suas reflexões por D. Branca, esposa de Furtado, que vinha entrando acompanhada de outra senhora mais moça e do Raul.

— Oh!... — fez aquela, numa voz que não era bem de surpresa.

— Ainda te lembras da Branca, ó Evaristo?

— Como não? — disse o bacharel, erguendo-se para cumprimentar as duas senhoras. — Lembro-me bem. Está um pouquinho mudada, está...

D. Branca dirigiu-se a Adelaide, e beijaram-se.

— Sua senhora inda é muito moça! — observou a esposa de Furtado para Evaristo. E apresentando a companheira: — Esta é uma amiga nossa — D. Sinhá, filha do desembargador Lousada...

Raul, de mãos pra trás no meio da sala, não perdia palavra, remoendo ocultas intenções brejeiras.

Todos se sentaram, menos ele, e a conversa prolongou-se através dos costumes, da moda e da política.

As duas senhoras estavam em toilette de verão, cada uma com o seu leque fantasia. — D. Branca um pouco gorda, mas ainda frescalhona, parecendo mais moça do que realmente era; a filha do desembargador muito derretida, encobrindo, sob densa camada de pó de arroz, a pele salpicada de sinaizinhos indeléveis, uma rosa Petrópolis no seio; costumava passar os domingos em casa do "Sr. Furtado", um dos bons amigos do velho Lousada.

Evaristo achou-a pedante e feia; Adelaide também, na sua mudez obstinada.

A propósito do Raul, que mereceu a atenção dos circunstantes, veio a Julinha nos braços da ama. O pai adorava-a, e tomou-a logo, num alvoroço, numa grande festa de beijos que ela — o diabrete! — repugnava, esperneando.

— Como achas minha filha? — perguntou o secretário erguendo a menina alto, nas mãos.

Evaristo, lisonjeiro, fazendo graça para a criança, achou-a muito parecida com D. Branca, muitíssimo parecida! Os olhos, então, eram os de D. Branca!

Adelaide, ao contrário, achou que ela "tinha ares do Sr. Furtado". O secretário exultou, porque, na verdade, Julinha era uma criança linda, muito rosada, muito loura, de olhos vivos e angelicais.

— Quem é aquele homem, minha filha?

A pequena encarou Evaristo, sem responder.

— Quem é? — tornou Furtado. — Olhe bem para ele... quem é?

Julinha amuou, desconfiada, e abriu a chorar.

— Ta, ta, ta... não foi nada, não foi nada! É o Evaristo, minha filha — o Evaristo!

— Menina! — ralhou D. Branca.

Mas a pequerrucha debatia-se com os pés e com as mãos, numa cólera rubra, num desespero: — Diabo! diabo! diabo!

Todos riram, todos gostaram da assombrosa precocidade!

— Saiu à mãe — explicou Furtado, agora com um ar bonachão de pai que tudo perdoa aos filhos.

D. Branca não protestou, e a menina foi conduzida para dentro. Falou-se depois nas acomodações da casa. Evaristo e a mulher iam ocupar um quarto nos fundos, defronte da sala de jantar, vizinho à área: um bom quarto espaçoso, forrado e com bico de gás.

— Tanto incômodo! — murmurou Evaristo.

— Qual incômodo!

D. Branca entrou em familiaridades com Adelaide, franqueou-lhe a toilette, mostrou-lhe o álbum de retratos, o vestido de seda com que fora ao último baile no Cassino, uma jóia que a princesa lhe dera no dia de seus anos...

— A princesa?...

Sim, eram muito amigas, o próprio imperador podia-se dizer que era amigo do Furtado; até lhe prometera uma comissão à Europa. Sim, a princesa, por que não? A princesa dava-se com muitas famílias no Rio de Janeiro, não tinha orgulho, apertava a mão a todos... Boa senhora! A mulher do desembargador Lousada era dama do Paço, tinha intimidade com a imperatriz; por intermédio dela é que D. Branca se relacionara com a princesa.

D. Sinhá confirmou: — "A mamãe era dama do Paço..." Entraram ganhadores com a bagagem, que foi recolhida ao novo aposento de Evaristo. Raul tomou conta da gaiola dos pássaros, onde refulgiam asas de corrupião e de xexéu. Evaristo disse logo que o corrupião era do Furtado: podia garantir a espécie; o xexéu, ele trazia para o diretor do Banco.

E nesse andar escoou o domingo, com grande tristeza para o Raul, que no dia seguinte voltava ao colégio, pensando no corrupião.

Os hóspedes recolheram fatigados da viagem, morrinhentos de calor e de cansaço.

Adelaide, principalmente, queixava-se de uma dor na cabeça e de "confusão nas idéias".

Evaristo, para a consolar, disse que também estava com a cabeça a arder. Trataram de se agasalhar na cama fresca e cheirosa a sabão. Da janela do quarto via-se luz no segundo andar, e não poucas vezes ecoava embaixo, no fundo escuro da área, o som de uma cusparada.

— Então, Adelaide, que achas do povinho?

— Que povinho?

— Da Branca e do Furtado... Assim... Não se pode adiantar juízo.

— E a tal D. Sinhá? Oh, mulher feia!

— Credo! — murmurou Adelaide. — Feia e pedante.

— É verdade: feia e pedante.

— Fala baixo...

— Viste, ao jantar, quando ela abria a boca?

— A mãe é dama do Paço.

— Que estás dizendo!

— É. Dão-se com a família imperial.

Adelaide respondia com os olhos fechados, morta de sono, às perguntas do marido. Ele é que não tinha sono, encantado com a sua nova posição, ruminando programas de vida, conjeturando sobre o futuro, sobre o dia de amanhã.

E corria os olhos nos móveis do quarto, no lavatório de ferro, no saco de roupa, no cabide, nos menores objetos, como quem duvida de uma situação nova.

— Era, então, verdade que estava no "grande" Rio de Janeiro!

O que é a gente se decidir! o que é ter-se coragem!

Meio acordado, meio dormindo, viu a casinha de Coqueiros, na província, entre árvores, a Balbina, caída aos pés de Adelaide, à hora do embarque..., o Maranhão, onde ia um rapazinho, estudante, que tocava flauta, e o Furtado acenando para bordo...