D. Branca era mulher que, ao simpatizar com uma pessoa, não admitia restrições, e Adelaide, fosse pelos seus bonitos olhos, fosse pelos modos — que ninguém os tinha mais acentuadamente provincianos — caiu-lhe nas graças, merecendo um lugarzinho no coração dela.
A esposa de Evaristo ficou sendo, em pouco, uma das melhores amigas da esposa de Furtado, com extraordinária satisfação para este, que não ocultava a simpatia que lhe inspirava Adelaide.
Naquela casa de Botafogo viviam todos como se constituíssem uma só família, como se Evaristo fosse irmão de Furtado e D. Branca irmã de Adelaide, intimamente unidos, querendo um o que o outro desejava, não se contrariando em coisa alguma. De manhã iam os dois homens para o Banco, à mesma hora, depois do almoço, e ficavam as duas na bela e encantadora harmonia de irmãs que se prezam, lendo, costurando, trocando confidências na sala de jantar, enquanto não chegavam os maridos — o Raul no colégio e a pequena com a ama.
Evaristo, por seu lado, ia conhecendo o Rio de Janeiro, inclusive a famosa Rua do Ouvidor, que ele pitorescamente alcunhava de "beco da perdição". Não gostava da Rua do Ouvidor; aquele zunzum de abelhas que desciam e subiam num movimento contínuo, aquela vozeria estéril dos cafés e das portas de loja, punham-no de mau humor, enchiam-lhe os ouvidos, irritavam-no, desequilibravam-lhe o sistema nervoso, ao mesmo tempo que faziam-lhe confusão no cérebro habituado à vida calma e refletida de homem honesto. — "Evidentemente nascera provinciano e havia de morrer provinciano" — dizia.
— Mas é um engano — opunha Furtado — é mesmo uma grande tolice! O homem, para ser homem às direitas, carece de lutar, de sofrer as pequeninas misérias sociais... A natureza humana quer movimento, quer emoções... quer vida, enfim. Todos nós somos uns aventureiros que andamos à cata de filões de ouro...
Evaristo argumentava, porém, que não dizia o contrário, que tudo aquilo era uma grande verdade, mas que ninguém podia ir de encontro à natureza. Era o primeiro a reconhecer os benefícios e as incalculáveis belezas da civilização; mas também não havia negar que a título de civilização, emitia-se muita moeda falsa, muito princípio errado — muita bandalheira!
E ficavam-se a olhar um para o outro.
O secretário do Banco Industrial conhecia o Rio de Janeiro de um extremo ao outro e gozava mesmo de muito boas relações na sociedade fluminense, não tanto quanto mandara dizer em carta a Evaristo, mas gozava. Além do desembargador Lousada, seu vizinho tinha outros amigos de alta posição na Corte, e era verdade que a princesa surpreendera D. Branca com uma jóia no seu trigésimo aniversário. A herdeira do trono ficara estimando a esposa do secretário desde uma célebre noite no Cassino Fluminense. Essas relações, porém, não excediam às praxes aristocráticas, guardando-se, de lado a lado, o máximo respeito, como convinha à fidalguia imperial da ilustre senhora.
Também era verdade que Luís Furtado uma vez — primeira e última — conferenciara com o imperador no Paço e este lhe prometera rendosa comissão à Europa; mas decorriam semanas e não se realizava a imperial promessa.
Entre políticos, banqueiros e titulares, havia sempre um que era amigo de Luís: o deputado Ismael Pessegueiro, de Alagoas, moço muito bem preparado, conservador até à raiz do cabelo, baixote na estatura e no falar; o visconde de Santa Quitéria, diretor do Banco Luso-Brasileiro, cuja fortuna se avaliava em muitos contos de réis fora à casa de residência — vistoso palacete que só se abria nas grandes festas; o comendador Pinto, outra fortuna considerável, português, que se fizera a custo de muito trabalho e que encanecera no Brasil..., e outros personagens de elevada hierarquia.
Quanto a jornalistas e poetas, conhecia-os quase todos; um por um, desde o redator-chefe do Comércio do Rio ("O Times brasileiro", na opinião de Furtado), até o Valdevino Manhães, diretor da Revista Literária e autor de muitos livros, de muitíssimas obras, entre as quais o poema herói-cômico Juca Pirão, paródia ao "I-Juca-Pirama", de Gonçalves Dias.
Evaristo já os conhecia também — de longe uns, outros mais familiarmente. O Valdevino Manhães, ou o "Dr. Condicional", estava no número destes; fora-lhe apresentado uma noite, no jardim do Teatro Sant'Ana. Baixo, pequenino, metidinho a critico, um bigodinho quase imperceptível, sempre de lunetas — era conhecido por Dr. Condicional, porque nunca dizia as coisas em tom afirmativo: tinha sempre um mas..., um talvez..., um se..., quando criticava obras alheias. Ninguém para ele era escritor feito, nem mesmo os consagrados: todos haviam de ser grandes poetas, grandes romancistas, grandes homens..., se continuassem a estudar. Outra mania de Valdevino Manhães era falar na sua viagem à Europa. — Oh, em Lisboa merecera os maiores elogios, as mais belas referências de quanto jornalista sabe terçar a pena (terçar a pena era uma de suas frases prediletas). O poeta João de Deus...
E ninguém o interrompia, ninguém dizia palavra enquanto ele comentava João de Deus e o Chiado.
O novo escriturário do Banco Industrial não confiava muito no Valdevino. — "Se todos os literatos do Rio de Janeiro fossem como o autor do Juca Pirão, a literatura brasileira tinha de pedir licença à Câmara para andar de quatro pés" — dizia ele a Furtado.
E Furtado, surpreendido:
— Pois olha: é o critico da moda hoje, no Rio de Janeiro.
— Prefiro o visconde de Santa Quitéria ou mesmo o comendador Pinto, que ao menos têm juízo para ganhar dinheiro...
Foram andando.
Uma tarde conversavam os dois sobre a vida na Corte, sentados à janela, quando o hóspede do secretário lembrou-lhe que era tempo de procurar casa e de instalar-se definitivamente com Adelaide: — uma casinha barata, um cômodo, qualquer aposento, inda que fosse nos "subterrâneos da Cidade Nova".
— Qual instalar-te! Daqui não sairás enquanto formos amigos — respondeu Furtado. — Minha mulher gostou muito de D. Adelaide — vivem muito bem, dão-se perfeitamente... Podemos chegar a um acordo nas despesas...
— Não, isso não! Vocês têm sido muito incomodados... isso não!
— História, homem! Incomodados têm sido vocês naquele quartinho... Mas a Branca falou-me que os do segundo andar estão procurando casa... Uma bela aquisição para vocês o segundo andar.
Evaristo levou o dedo à boca, refletindo, e apertando os lábios:
— É... assim bem...
— Pois então? Esperem um pouco mais... não há vexame...
D. Branca aproximou-se, com o braço na cintura de Adelaide.
— Ó Branca — disse Furtado -, não é exato que os estrangeiros de cima vão se mudar?
— É sim. Andam em procura de casa. Por quê?
— O Evaristo, que lembrou-se agora de bater a linda plumagem, inda que fosse, diz ele — para os subterrâneos da Cidade Nova!
— Qual, Sr. Evaristo, qual! Adelaide está muito bem. A Cidade Nova é um lugar infecto, um horror! Esperem pelo segundo andar.
— E o aluguel? — perguntou, interessado, o rapaz.
— Oitenta mil-réis, filho! oitenta mil-réis... não é dinheiro.
— Não é dinheiro, para os capitalistas...
— Oitenta mil-réis, nunca foi dinheiro.
— Eu, por mim, não me mudava... — ousou discretamente Adelaide.
Evaristo arregalou os olhos:
— Oh! então já vais gostando do Rio!
— Não desgosto...
— O Sr. Evaristo quer conversar — disse, rindo, a esposa de Furtado. — Vamos a tocar um pouquinho de piano...
A tarde estava calma. Crianças brincavam na rua, enchendo-a de alvoroço, em toilettes de verão. O desembargador Lousada passeava no jardim, com o seu indefectível gorro de seda bordado a retrós, enquanto a mulher e a filha, sentadas à porta, abanavam-se de leque. Dezembro morria numa explosão de sol. A família imperial estava toda em Petrópolis, gozando as delícias de um clima pregoadamente aristocrático, os que não podiam sustentar o luxo de Petrópolis, a vida fidalga de Petrópolis, os hotéis de Petrópolis, corriam para o ar livre da rua, em trajos brancos, ou para a janela das casas, num alvoroço de formigueiro incendiado.
À parte o clima, na estação outonal, a vida em Botafogo tinha qualquer coisa da vida em Petrópolis, era como um prolongamento do high-life, cuja sede firmara-se na antiga colônia alemã. Falar na Cidade Nova a um morador de Botafogo, era o mesmo que cair no ridículo e no desprezo de uma sociedade que não admitia plebeismos sentimentais, nem alusões de mau gosto... Cidade Nova, isto é Saco do Alferes, Gamboa, preto-mina, lenço no pescoço, violão, maxixe... e outras belezas de igual jaez. Tudo isso era contra as boas normas de um povo civilizado e muito principalmente contra os brios de um homem que vive na mesma atmosfera de Sua Majestade o Imperador! Botafogo odiava a Cidade Nova como quem repugna um meio asqueroso.
Os aristocratas que não tinham podido acompanhar o monarca a Petrópolis bufavam de calor, e, à porta dos jardins ou à janela, iam refrescar o sangue, os pulmões, como o desembargador Lousada. Ao anoitecer, recolhiam à frescura do linho, pensando na volta das andorinhas imperiais.
D. Branca executou ao piano uma valsa de Strauss, para Adelaide ouvir. Tocava bem, na opinião de vários professores ilustres; já se exibira em concertos de primeira ordem.
Quando as tardes eram demasiado quentes, iam os dois casais arejar à praia, onde passeavam famílias numa liberdade encantadora, trajando garridamente suas roupas de verão, sem luxo, sem cerimônia, parando à sombra das árvores, em grupos, vendo deslizar em pequeninas embarcações de recreio na água cintilante. Que bom! Adelaide examinava tudo com essa curiosidade infantil dos recém-chegados, comparava as toilettes, as fisionomias, lendo histórias mundanas no sorriso dos rapazes e na franqueza das raparigas, que se entrecruzavam piscando os olhos à vista dos homens sérios. Como tudo aquilo tinha um encanto particular! Como tudo era novo para ela! Sentia nalma um remoçar impetuoso, uma vontade de possuir jóias com que se enfeitar, com que realçar a sua beleza, e toilettes de luxo, à última moda, e essências caras, embriagantes, e tudo o mais que seus olhos viam, desde que ela pusera os pés no Rio de Janeiro.
D. Branca enchera-lhe os ouvidos de tanta coisa, meu Deus! de tanta história! — Que no Rio de Janeiro as mulheres timbravam em se apresentar cada qual mais bem vestida; que Botafogo era o bairro da aristocracia e do bom gosto; que o luxo nada tinha com a honestidade de uma senhora, desde que ela se portasse bem..., ao menos aparentemente; que, enquanto se era moça, devia-se gozar, levar a vida rindo, passeando, nos bailes, nos concertos, nos teatros; que os homens eram muito egoístas; enfim, Senhora D. Branca despertara nela um sentimento novo, que lhe abafava toda a nostalgia da província e deixava-a oscilando, remoendo, entre a vida simples e calma de burguesinha honesta e a vida tumultuosa de mulher elegante e adorada nos círculos aristocráticos de uma cidade como o Rio de Janeiro.
Enquanto Evaristo aborrecia-se — ele, que falava tanto da província: "porque a província era o statu quo, a imobilidade, o abandono" — ela deliciava-se agora, em plena Corte, em pleno Botafogo, cheia de vida e de ambições, a exemplo de D. Branca e de outras senhoras, que, sem desprezar os maridos, gozavam quanto podiam, vestindo-se bem, trajando com elegância, ostentando beleza e mocidade aonde quer que se apresentassem. Nos primeiros dias estranhara o Rio, achara tudo falso, tudo superficial, tudo para enganar os olhos. Agora, não: tudo impunha-se ao seu espírito como um dever, como uma necessidade lógica e humana.
E sempre que ia à praia, sempre que ia a um teatro, a um passeio, voltava triste, desalentada, com uma dor no coração... Não poder "como as outras" ostentar o frescor dos seus vinte anos, aparecendo nas rodas elegantes, de braço com o Evaristo — ele todo nobreza, todo modernismo, aristocraticamente enluvado; ela chique, numa pompa de rainha, um sorriso à flor dos lábios — os dois em carruagem aberta ou num camarote do Lírico! Oh, não poder gozar, como as outras mulheres que ela via, deslumbrada e abatida, da sua pobreza honesta, da sua triste posição de mulherzinha dócil, de esposa exemplar!
Aquilo ia calando em seu espírito, onde um princípio de orgulho feminino brotava ocultamente.
Evaristo ganhava pouco ainda, o essencial para se ir mantendo com alguma independência, sem dever a ninguém. Era inimigo de contrair dívidas; um alfinete, que comprasse, havia de ser pago logo, na ocasião mesma do negócio; por forma que o dinheiro do Banco, o ordenado, ia-se num abrir e fechar de olhos, para a mão do homem da venda e para o bolso do alfaiate. Ele próprio conservava a roupa que trouxera da província; não tinha luxo, nem jóias de valor. Afinal não passava — como dizia — de um pobretão mísero, empregado subalterno. D. Branca podia luxar, aparecer — não era admiração; o Luís ganhava tanto como oitocentos mil-réis, fora a renda das apólices que possuía no Tesouro e de umas açõezinhas do Banco Industrial. Onde, pois, a admiração? Nenhuma. Feria-lhe também o amor-próprio de marido extremoso ver Adelaide, a sua Adelaide, com os mesmos vestidos, com o mesmo chapéu, sem um brilhante, uma jóia de ouro, envergonhada no meio das outras. — Mas... que se havia de fazer? Por isso é que desejava ter uma casinha na Cidade Nova, "um albergue", de cinqüenta mil-réis, longe desse rumor de etiquetas e ostentações. Um dia pra diante, quando pudesse — muito bem! alugava um chalé em Botafogo e Adelaide não tinha de que baixar a cabeça às exigências do high-life. Por enquanto a palavra de ordem era — economia, muita economia!
De resto, o procedimento de Adelaide para com o esposo não mudara. Evaristo continuava sendo o mesmo Evaristo, bom e leal, por vezes de uma ternura lânguida, quase pueril, achando muita razão em tudo quanto ela dizia, tratando-se como noivos.
D. Branca estranhava que eles ainda não tivessem filho, ao menos um morgado para dar que fazer à mamãe...
E aconselhava banhos de mar no Flamengo: — por que não experimentavam os banhos de mar no Flamengo? Um filhinho era indispensável a um casal...
Evaristo ria e jurava, rindo, que no mês seguinte iam começar os banhos ali mesmo na praia de Botafogo.
A propósito de filhos, a mulher do secretário anunciou o batizado da Julínha no primeiro domingo de janeiro. Ia fazer uma festa sem cerimônia, entre pessoas de intimidade.
Evaristo recebeu a notícia com um — oh!... de surpresa. — Muito bem! muito bem! Era preciso batizar a menina... Ele, se tivesse filhos, batizava-os ao nascer.
E com ironia:
— Temos, então, a princesa?
— Como, Sr. Evaristo?
— Digo: a princesa há de comparecer à festa.
— Qual o quê! Pensa o senhor que a princesa anda se exibindo assim?
— Pensei.
— Vai ser a madrinha de minha filha, por procuração; isso bem...
E Evaristo, sempre irônico:
— O imperador é o padrinho...
— Não senhor, não senhor... O padrinho é o Lousada, o velho Lousada. O imperador já é padrinho do Raul.
— Onde estamos nós metidos, Adelaide! exclamou o bacharel, arregalando os olhos. Tudo aqui é principesco, minha senhora!
D. Branca compreendeu o debique, mas atalhou risonha:
— Tudo aqui não é principesco, não senhor! Não queira fazer pouco...
— Eu, fazer pouco? Oh, não se lembre de tal coisa! Principesco é uma maneira de dizer.
— Ah! o senhor é republicano?
— Republicano não: democrata.
— Pois está muito bem arranjado com a sua democracia!
Furtado, que estava lendo o Comércio do Rio, saltou:
— Quem é democrata — o Evaristo?
— Eu, sim...
— Democrata enquanto não conheceres bem o Rio de Janeiro...
— Por quê?
— Ora, por quê! Porque o Rio de Janeiro em globo é monarquista e quem diz monarquista diz aristocrata.
— Não é razão. Se o Rio de Janeiro em globo (quero dizer o município neutro...) é monarquista, eu posso muito bem sair um republicano às direitas.
Furtado abriu numa gargalhada estridente.
— Aonde vens pregar essas teorias, meu caro? Na Corte do Império, e o que é mais, em Botafogo! Ilusões da academia, rapaz, ilusões de estudante de retórica!
— Não senhor, que o partido republicano está ganhando terreno aqui mesmo, na Corte, às barbas d'El-Rei! Fala-se na ida do velho à Europa; o velho está doido, já não pode governar, e o resultado é que...
— É que estás a dizer tolices... A monarquia está guardada por sentinelas da força do barão de Cotegipe, do visconde de Ouro Preto, do João Alfredo e de outros... Cada um desses homens é um obstáculo contra qualquer tentativa de assalto às instituições.
Chegou a vez do bacharel rir, mas rir com gosto, dando pulinhos na cadeira.
— O Cotegipe! (e ria). O Ouro Preto! (tornava a rir). O João Alfredo! No momento psicológico voam todos, como aves de arribação, para Petrópolis! Desaparecem como por encanto, somem-se na noite do medo...
— É o que pensas. A opinião é deles, o povo não permitirá que eles sejam desacatados.
— O povo! — exclamou Evaristo com voz de trovão. — A que chamas tu povo?
— À população do Rio de Janeiro, à população do Brasil — a treze milhões de almas que adoram o imperador!
— O povo brasileiro não se envolve nisso, meu Furtado; se fôssemos esperar pelo povo, estávamos bem arranjados.
— E então?
— E então, é que a força armada.
Basta de política, basta de política, Sr. Evaristo. Ó Luís, por favor, continua a ler teu jornal — interveio D. Branca. — É favor!
Adelaide correu a tapar a boca do marido com a mão espalmada: — "Não senhor, nada de política!"
E continuou-se a falar no batizado da pequena, sem alusões à princesa, nem ao monarca. A esposa do secretário disse que tinha mandado fazer um vestido para estrear nesse dia — uma toilette simples, de um tecido novo, muito usado em Paris, que A Notre Dame recebera...
Adelaide mordiscou a pelezinha do beiço com tristeza. — Um vestido novo, chegado de Paris!... E ela como se havia de apresentar no dia da festa? Oh, com o seu vestido de provinciana, de mangas compridas e babados! Que vergonha, Santo Deus! O melhor vestido que possuía era o de gorgorão, com que embarcara..., mas estava fora da moda e da etiqueta. Antes nunca tivesse vindo ao Rio de Janeiro...
Quase não dormiu, essa noite, pensando no batizado. À hora de recolher, Evaristo achou-a triste, com um arzinho de choro, descobrindo mesmo uma lágrima vagarosa na face dela. Mas não disse nada. Adelaide continuou a se despir à meia-luz do gás, e rolou na cama silenciosamente, de rosto para a parede.
— Ó Adelaide!... — chamou Evaristo, já desconfiado.
A mulher não respondeu.
Adelaide! tornou ele, aproximando-se.
— Que é?... choramingou a rapariga, encolhendo-se.
— Olha...
Ela não se moveu.
— Olha!
Mesma posição, mesmo silêncio.
— Olha cá uma coisa.
— Que é?
— Estás chorando?
— Não...
Mas pelo tom da voz, conheceu bem que alguma coisa havia no coração de Adelaide.
— Como não, se te ouvi soluçar?
— Eu?!...
— Exatamente. Queres ocultar-me algum desgosto?
E devagarinho, como para não acordar uma criança, o bacharel foi-se inclinando no leito.
— Vamos: é a primeira vez que choras em minha companhia, depois que estamos casados.
— Nada... lembrei-me da Balbina.
Da Balbina? Homessa!
Falavam muito em segredo, cochichando, ela de costas para ele. A casa estava toda no escuro. Furtado e a mulher não davam sinal de vida.
— Que tens tu com a Balbina? — tornou Evaristo. — Não é má a lembrança! Como se a Balbina fosse tua mãe!
— Mas lembrei-me.
— Se me não dissesses, eu não acreditaria, palavra de honra!
E admirado:
— Chorar com saudades da Balbina! É curioso, é singular!
Os inquilinos do segundo andar apagaram a luz e um relógio bateu meia-noite.
Involuntariamente, por causa de Adelaide, Evaristo adormeceu pensando na Balbina, a negra velha de Coqueiros, sem atinar com a significação da lágrima que vira na face da esposa.
Certo é que a amiga de D. Branca recolhera com o pensamento no batizado da Julinha. Quis desabafar, dizer tudo a Evaristo, suplicar-lhe que trouxesse um vestido novo para a festa de D. Branca, rogar-lhe, pelo amor de Deus, que fizesse um pequeno sacrifício... Mas não teve ânimo: podia parecer uma exigência, uma falta de atenção, e ela nunca abrira a boca para pedir a Evaristo um grampo, quanto mais um corte de fazenda! Não era por vaidade, nem por orgulho, nem por capricho — é que tinha obrigação de se apresentar à aristocracia em trajos de mulher educada e não com um pobre vestido fora da moda, sem elegância, mal cosido, mal ajustado ao corpo — horrível!
No outro dia Evaristo, inda na cama, interpelou-a sobre o acidente da véspera, gracejando, rindo, na melhor boa-fé, longe de adivinhar o que se passava no espírito de Adelaide. — Chorar pela Balbina — ela! Que extraordinário coração, que alma cândida!
— Chora-se até pelos animais, por um gatinho, por um cachorro, por um pássaro que a gente criou!...
E Adelaide, ocultando ingenuamente o desgosto que a pungia, lembrou ao marido o fato de ter ele chorado a morte de uma patativa, antes de vir para o Rio de Janeiro.
O bacharel não disse que não, mas afirmou que o caso era diverso e que entre a patativa e a Balbina preferia a patativa.
E a lágrima da jovem senhora caiu no esquecimento como todas as coisas deste mundo.
Ela, porém, via se aproximar o domingo do batizado, cheio de tristeza, maldizendo a nova situação em que a colocara o destino. Positivamente Evaristo não enxergava além das grosseiras necessidades da vida doméstica e não via que uma dona-de-casa no Rio de Janeiro tinha a obrigação de ser, ao mesmo tempo, uma dama elegante, uma senhora distinta, com todos os requisitos para figurar num sarau pomposo ou em qualquer parte aonde houvesse aristocracia e luxo... Como é que ela, vivendo na casa de um homem fino, de uni capitalista, vivendo entre pessoas de "tratamento" em Botafogo, ia-se apresentar aos olhos de D. Branca, aos olhos de D. Sinhá e da mulher do desembargador, aos olhos de uma gente fidalga, na sua humilde toilette de provinciana pobre? Todo o mundo havia de reparar e dizer mal. N0 entanto, com qualquer dinheirinho comprava-se um vestido sério, novo, que ao menos aparentasse... A própria D. Branca lhe dera a perceber que se obtinha, no Rio, muita coisa de alto valor por "preços baratíssimos..."
Oh, aquela festa, domingo, tirava-lhe o sono! Que belo, se caísse uma grande chuva, um aguaceiro medonho, de alagar a cidade inteira, de deixar tudo quanto fosse rua na lama! Quem dera! Ficava transferido o batizado ou ninguém ia à casa de D. Branca, e ela, então, ela, Adelaide, não tinha de se envergonhar, de baixar a cabeça a estranhos.
Mas — nem de propósito! — fazia um tempo claro, azul, luminoso, adorável, como os belos dias de primavera, sem o menor sintoma de variação barométrica, sem nuvens na limpidez cristalina das montanhas.
E a jovem esposa de Evaristo perdia-se em cogitações de toda a ordem, moralmente abatida no seu orgulho, na sua vaidade latente de mulher nova que se vê roubada nos seus direitos à partilha dos gozos. Lembrava-se, por uma natural associação de idéias, de que D. Branca lhe dissera certa vez: "O homem é egoísta e finge não compreender as necessidades da mulher, quando se trata de um vestido novo ou de uma despesa extraordinária. A mulher é obrigada a pedir, a reclamar, a dizer o que precisa, o que lhe falta." Ela pedir a Evaristo? Pedir o quê? Uma toilette para o batizado da pequena? E a roupa que trouxera do Norte, um enxoval quase completo, inda que fora da moda? Que havia de dizer? Que razões apresentar a ele, que sempre a conhecera pobre e refratária à etiqueta e ao luxo? Não, não tinha coragem, nem queria, com uma exigência descabida, molestar o grande coração de Evaristo.
Esperou, resignada, abafando impulsos d'alma.
Em casa de Luís Furtado, naqueles dias mais próximos à festa, era este o assunto obrigado de todas as conversas. D. Branca, principalmente, cuja loquacidade contrastava com a moderação dos inquilinos do segundo andar — não fazia outra coisa senão remexer nas gavetas, polir os móveis, expor os cristais, num açodamento, numa impaciência que lhe dava ares de inseto doido. Queria tudo nos seus lugares, para quando chegasse o domingo. Mandou afinar o piano, lavar a casa de um extremo ao outro, inclusive o quarto dos hóspedes e o escritório de Furtado, no rés-do-chão, substituir as cortinas da sala de visitas; enfim, toda a casa ficou pronta com quatro dias de antecedência para receber o desembargador Lousada e alguns convidados "sem cerimônia". Era pouca gente: o visconde de Santa Quitéria, o Dr. Condicional, dois amigos quase íntimos do secretário, o Loiola, tesoureiro do Banco, a viúva Tourinho, muito boa senhora, também rica e prendada, o Xavier, do Jornal de Notícias e um ou outro rapaz, de intimidade.
Evaristo caiu das nuvens.
— Minha mulher — disse ele à esposa — temos grosso forrobodól Esta gente chama festa sem cerimônia a uma reunião de altos personagens que se divertem aristocraticamente. Com que vestido te vás apresentar?
— Eu?... O melhorzinho é o de casimira cinzenta, não falando no de gorgorão...
— De casimira?.
Evaristo levou a mão ao queixo e fitou os olhos na mulher em atitude contemplativa.
— Que dizes?
— Não sei... — respondeu Adelaide com indiferença.
O bacharel agarrou-se aos bigodes, repuxando-os com a língua, mordendo-os, como se empacasse na resolução dalgum problema de direito.
— Aonde nos vimos meter! — dizia, passeando no quarto. — Aonde nos vimos meter!
— É o teu grandioso e espetaculoso Rio de Janeiro!
Evaristo sorriu da ironia, e continuando a passear:
— Há um remédio...
— Qual?
— Fazer um negócio com o Banco...
— Negócio?
— Sim, levantar um pequeno empréstimo.
Noutras quaisquer circunstâncias, Adelaide o aconselharia que não, como já o fizera uma vez na província; mas D. Branca acenava-lhe de longe, no seu espírito, "que não desse uma nota, que não fosse tola."
— Que dizes? — repetiu o bacharel.
— Não sei...
— Pois eu sei: vou falar ao Furtado. Achei a incógnita da equação. Isto de dever, todos devem mais ou menos; a questão é pagar.
Com duzentos mil-réis, sim, com duzentos mil-réis, arranjava-se tudo: uma toilette para Adelaide, uma calça de casimira, e... e charutos.... O vestido, comprava-se feito, numa modista.
Entraram em acordo, ele e a mulher, sobre as despesas, fizeram cálculos à ponta de lápis, rabiscaram papel até quase meia-noite. Adelaide já agora também pedia a Deus que não chovesse. Era uma ótima ocasião para se apresentar às amigas de D. Branca, ficar conhecendo a viúva Tourinho, a esposa do desembargador e outras senhoras do grand monde fluminense.
Evaristo falou, com efeito, ao secretário, no próprio Banco, acerca do empréstimo, alegando razões de ordem doméstica. — Era mais um grande favor ao "amigo Furtado...
— Queres um conselho de amigo? pergunta Luís.
— Não contraias empréstimo ao Banco. O Banco foi criado para altas transações financeiras, e... e o diretor é um homem... um homem...
— ... um homem de têmpera antiga, velho e rabugento. Espera aí um bocado...
O secretário levantou-se, abriu um cofre de ferro, que estava no gabinete de trabalho, e contou duzentos mil-réis.
— Toma lá, sou eu quem tos empresta sem juros e sem prazo. Restituirás no fim do mês... daqui a um ano, daqui a um século...
— Isso não! interrompeu o marido de Adelaide. — Vim pedir ao Banco e não quero que te sacrifiques por minha causa. Isso não!
— Toma lá, homem, não sejas menino. Eu que tos empresto, é que tenho absoluta confiança em ti — que diabo!
— Qual confiança! Isso já não é ser amigo, é ser pai!
— Pois quero ser teu pai — dá-me essa honra.
Riram e o bacharel guardou as notas na algibeira da calça, com um movimento discreto e reconhecido. — Ora, muito obrigado, Sr. Luís, muito obrigado!
— Cavalheiros somos, na carreira andamos... — disse enfaticamente, com um sorriso, o fidalgo de Botafogo.
Às quatro horas iam os dois no mesmo bonde a caminho de casa.
O bacharel entrou radiante, com um estranho fulgor na pupila. Adelaide acompanhou-o ao quarto.
— Sabes o que é isto? — foi dizendo com a mão espalmada no bolso.
E, antes que Adelaide respondesse, tirou o dinheiro, erguendo a mão em triunfo.
— Quanto? — perguntou a rapariga com aquele risinho ingênuo que lhe era muito natural.
— Vinte!
— Vinte? apenas vinte?
— ... notas de dez!
— Ah!...
Evaristo, então, narrou, palavra por palavra, o diálogo entre ele e Furtado, no Banco, e não ocultou o seu entusiasmo pela "generosidade" do amigo, que ainda uma vez se revelara "digno e correto!"
— Belo homem, o Luís!
Eu também acho... — murmurou Adelaide.
— Olhe que me colocou, deu-me hospedagem, trata-nos à vela de libra, e agora... duzentos mil-réis, para pagar amanhã, no fim do ano, daqui a um século!
Adelaide aprovou com a cabeça o entusiasmo do marido.
E na mesma tarde, ao anoitecer, foram ambos dar um giro à Rua do Ouvidor.