Luís Furtado era homem de meia-idade, alto, robustez física invejável, pele rósea e conservada, bigode negro, tratado a brilhantina, olhos negros e comunicativos, um pouco lânguidos, talvez por afetação, talvez por temperamento.
Belo, verdadeiramente belo, ninguém o diria sem risco de profanar o ideal antigo da beleza máscula; no entanto, podia dizer-se dele que era, na acepção moderníssima, um bonito homem. A convivência na Corte dera-lhe tintas de nobreza ao rosto largo de provinciano setentrional. O Rio de Janeiro, com o seu maravilhoso poder de cidade cosmopolita, afinara-lhe a cútis e a educação. Davam-lhe doutor, mas, em verdade, nunca pusera os pés numa academia; os preparatórios mesmo, ele os não completara; e como no Rio de Janeiro, na Corte, toda a gente é doutor, ninguém punha dúvida no fictício diploma de Luís Furtado.
Mas a qualidade característica do secretário do Banco Industrial era o amor às mulheres, uma tendência notável para as conquistas de boudoirs, para o livre câmbio de afeições delicadas, para o culto imoderado de Vênus. Esse fraco, longe de o desprestigiar no conceito das rodas aristocráticas, tornava-o ainda mais querido de um e outro sexo, que viam no esposo de D. Branca, um homem de bom gosto, entendido em essências finas e em cotillons. Quem é que, em Botafogo, não o admirava, quem? Chegava-se até a dizer, num exagero, que era a alma do bairro!
O casamento não lhe tirava a liberdade de homem que se governa; cumpria seus deveres conjugais; nada faltava à mulher, nem aos filhos, todos em casa o estimavam; queria, portanto, sua liberdade; "a melhor coisa que Deus deu ao homem". Tinha idéias definitivas, absolutas, sobre o casamento e opunha-as a qualquer moralista indiscreto que lhe fosse criticar os atos.
D. Branca nunca se agastava com ele, nunca lhe fizera a menor objeção no tocante às suas aventuras donjuanescas. Quando alguém, homem ou mulher, os queria intrigar e levava ao conhecimento dela fatos particulares da vida do esposo, a ilustre senhora tinha sempre um risinho de incredulidade: "- O Furtado era um bom marido e um bom pai de família. Os invejosos é que o queriam desmoralizar".
No entanto, conhecia o gênio do Furtado e uma ocasião surpreendera-lhe no bolso do paletó uma cartinha de mulher, muito cheirosa e dentro da qual havia um amor-perfeito já desbotado como essas flores raras que se eternizam entre as paginas dos álbuns. D. Branca sorriu e devorou com os olhos a misteriosa epístola, em verdade bem misteriosa, porque nada tinha de indiscreto senão o caráter visivelmente feminino da letra. Nunca se vira maior laconismo, nem tão cautelosos dizeres numa correspondência de mulher. Assinavam as iniciais B. F. — "Branca Furtado!", pensou com estranheza e admiração.
E tornou a colocar o papel no bolso do marido, respeitosamente. Era um segredo e ela não tinha o direito de violar segredo a quem quer que fosse.
Outra ocasião deparou com o retrato da cuja. — "Sim senhor: uma mulher esplêndida! O Luís tinha gosto para mulheres..." No dorso da fotografia, em cartão imperial, a seguinte dedicatória:
Ao Luís — B. F.
PETRÓPOLIS, 18..
— Petrópolis! — exclamou D. Branca. — É gente fina... (e com uma ponta de despeito) esses homens... esses homens!...
O retrato voltou ao lugar onde estava, sem um arranhão.
Impossível haver mais liberdade e mais confiança entre marido e mulher.
O procedimento de Luís para com D. Branca era igualmente recatado e tudo fazia crer que a víbora do ciúme não lhe mordera ainda o coração de esposo. Compreendiam-se um ao outro, e, quando em um casal, a mulher compreende o marido e o marido compreende a mulher, não há mais bela instituição que o casamento. Ninguém peca por aceitar a vida como a vida sempre foi — tal a filosofia de D. Branca, e com pequenas restrições, a do secretário.
Dizer que se não amavam? Erro gravíssimo. Adoravam-se quase, e, em certos momentos, era como se fossem noivos em plena lua-de-mel. Segredos da alma humana...
Uns olhos cobiçosos e apaixonados como os de Luís não podiam, decerto, ver indiferentemente um rosto lindo de mulher. Foi o que se deu com relação a Adelaide, a meiga esposa de Evaristo de Holanda. O secretário viu-a no dia da chegada e admirou-a intimamente, com olhadelas furtivas e traiçoeiras, enquanto o carro rodava para Botafogo. Ria, e o seu riso tinha um tique muito delicado, muito nobre, muito fino, de cavalheiro gentil, que se aprimora numa cortesia de salão. E, era a todo o instante — "vossa excelência", a todo o instante uma frase elogiosa e comedida e mais uma perguntazinha discreta que Adelaide respondia com o natural embaraço de quem chega a um lugar estranho e pela primeira vez ouve linguagem desconhecida.
O que logo provocou a atenção da jovem esposa de Evaristo foi um grande anel de brilhante que Furtado trazia no dedo — uma pedra enorme, de primeira água, cujas facetas se multiplicavam à vista incisivamente, como um prisma, quando ele erguia a mão morena para cofiar o bigode.
No outro dia, ao almoço, Adelaide estava com um vestido branco de cassa e Furtado achou-a mais comunicativa e mais bela. A toilette de gorgorão dava-lhe uns ares de respeito, que não iam bem com a frescura primaveril do seu rosto; e aquela mudança de vestuário, aquela nonchalance obrigou-o também a mudar o tratamento de "vossa excelência" que tantas vezes repisara na véspera. Evaristo mesmo já lhe havia observado que estavam "em família", que deixasse o "vossa excelência" para pessoas de cerimônias, do contrário não se entendiam, nem podiam estimar-se como bons e velhos amigos.
E entraram todos na mais ampla intimidade, no mais belo convívio doméstico e na mais franca harmonia. — Era pena que o andar superior não estivesse desocupado, oh, era pena! — lamentava o marido de D. Branca. — Uns estrangeiros que ninguém sabia donde tinham vindo!...
Mas, no íntimo, desejava que os estrangeiros não se mudassem nunca; ele assim estava mais perto do seu novo ideal... Em casa ou no Banco, uma só preocupação enchia-lhe o espírito: — Adelaide. Como e por quê? Mistério! E a vida o que é senão um grande e tenebroso mistério?
Luís coçava a cabeça, atordoado, impaciente, fechando os olhos como para ver melhor no fundo da sua alma, e quer os fechasse, quer os abrisse, tinha diante deles a imagem de uma criatura excepcional — anjo e mulher — e essa criatura tinha os olhos de Adelaide, a boca de Adelaide, o sorriso de Adelaide! Como resistir à tentação, ele, que julgava a mulher uma força divina, um poder acima de todos os poderes humanos e acima de todos os preconceitos sociais? .
E nesse filosofar à-toa, nesse monologar do cérebro, perpassava também o riso bom de Evaristo, a alma simples do amigo, cheio de confiança e de um otimismo às vezes ingênuo. Furtado espancava uma imagem para deliciar-se com a outra, com a dos olhos meigos e sorriso angelical...
À noite, fora de horas, acordava, abria os olhos num êxtase sonâmbulo — enquanto a mulher se imobilizava — e punha-se a fazer cálculos, a maquinar planos de general em véspera de batalha. — Como havia de ser isso? Como havia de ser aquilo?...
E, no outro dia, eram os mesmos olhares, as mesmas finezas, que Adelaide já não estranhava, por virem donde vinham. Não padecia dúvida que o Sr. Furtado era um cavalheiro de educação e ela achava muito bonito um homem de educação... Os modos do Sr. Furtado, quem é que os não apreciava?
Ao almoço e ao jantar, longamente discutiam assuntos caseiros e D. Branca via-o quase sempre de bom humor à hora das refeições, dizendo pilhérias, mostrando-se entendido em matéria culinária e em coisas de boudoirs, improvisando anedotas, gracejando, servindo à mulher e ao Evaristo, para poder servir a Adelaide, fito único dos seus olhos e da sua imaginação.
À noite escancaravam-se as janelas da frente e jogava-se à luz do gás amortecido por causa do calor. Nos jogos de parceria, Furtado sentava-se defronte de Adelaide, tocando-se os joelhos, a pontinha dos pés, em torno da pequenina mesa de charão colocada ao centro da sala, e divertiam-se horas e horas, num tête-à-tête voluptuoso e calmo, perturbado, às vezes, por uma gargalhada geral que irrompia uníssona das quatro bocas.
Evaristo chamava aquilo, aquelas reuniões familiares "uma pândega", sempre melhor que as da Rua do Ouvidor: mais honesta e menos tumultuosa.
— Inda havemos de fazer um piquenique no Jardim Botânico! — disse uma noite o secretário.
— É verdade, é verdade! — aplaudiu, com entusiasmo, D. Branca.
— Vamos um dia, um domingo, ao Jardim Botânico!
— À Tijuca não seria melhor? — lembrou Evaristo, que ardia por fazer um passeio à "tal Tijuca".
Mas Furtado apontou inconvenientes de ida e volta: — era muito longe a cascatinha, lá onde o diabo perdeu as esporas, enquanto que o Jardim Botânico ficava perto e era mais elegante. Depois, com o tempo, ir-se-ia à Tijuca...
— Em primeiro lugar — concluiu Evaristo — é preciso que esses estrangeiros do segundo andar ponham-se ao fresco, vão para o diabo que os carregue!
E ficou assentado que num belo domingo iriam os dois casais ao Jardim Botânico, em piquenique.
Antes disso, porém, havia o batizado da Julinha. Estava tudo pronto como para uma grande recepção de aniversário: vidros, móveis, tapetes, cristais, o serviço da copa, o buffet, uma quantidade enorme de garrafas, mesa lauta sobre à qual via-se toda a baixela da casa e vasos com flores naturais e altas pirâmides de doce, pondo manchas na brancura da toalha, e em cada prato um buquezinho de violeta arranjado especialmente pelas mãos de D. Branca; e em toda a casa, desde a sala de visitas até os fundos da cozinha, um ar alegre de interior holandês, um ar festivo e risonho, cheirando a flores como a atmosfera matinal dos jardins. Viam-se em todo aquele esmero, em toda aquela simplicidade grega — na composição de um vaso, no arranjo dos buquês — o zelo aristocrático de D. Branca e o gosto não menos aristocrático de Luís Furtado harmonizando-se nas menores coisas, traindo-se a cada hora. O papel da sala de visitas parecia mais novo; os quadros destacavam-se, muito nítidos, numa bela disposição ornamental de galeria pobre; o piano sofrera uma mão de óleo e guardava ainda o cheiro da fábrica, de costas para a janela, reluzindo como um espelho; as cortinas pendiam frouxamente das armações de ouro... Enfim, na alcova esponsalícia de D Branca estava o berço de Julinha> todo em festa, ao lado da grande cama de casal. Para aí é que deviam convergir os olhares do desembargador e da mulher, especialmente destes, porque D. Branca entendia que ser dama do paço era merecer as atenções devidas à própria imperatriz; além disso, o velho Lousada tinha, mais do que ninguém, direito a essas atenções como padrinho da pequena. D. Branca esforçara-se por dar ao berço um aspecto luxuoso e sereno, para que se não dissesse que ela, no meio das suas ostentações, pouco amor tinha aos filhos. E conseguira-o, sem desprezar um ou outro conselho quer de Adelaide, quer de Furtado, quer mesmo de Evaristo, que também fora chamado a dar sua opiniãozinha.
— Eu nunca tive filhos, minha senhora... — protestou ele.
Mas a esposa do secretário alegou que era justamente por ele nunca ter tido filhos que lhe pedia a opinião.
E, agarrado por um braço e pelo outro, o marido de Adelaide lembrou, espirituosamente, que se devia colocar na cúpula a seguinte inscrição: Este filho é o último da prole... — o que fez rir muito a D. Sinhá do desembargador, a ela só, porque os outros não acharam graça na idéia.
O leito de Julinha era todo de uma madeira escura e sólida, como ébano-da-índia, e custara um dinheirão ao Furtado. Imitava o casco de urna pequena gôndola com a proa recurva e estreita. Sobre ele caía fartamente uma nuvem de rendas, abrindo-se para um e outro lado e quase tocando o chão. A cúpula era um verdadeiro trabalho de arte, muito simples, mas curioso, representando uma coroa ducal com embutidos de marfim. No alto do cortinado, um grande laço de seda azul com franjas de ouro...
Ao todo seis carros, inclusive a berlinda, em que ia a pequena nos braços da ama e a mulher o desembargador. As outras eram ocupadas sucessivamente pelo funcionário do governo e D. Branca, pelo Furtado e o Raul, pela viúva Tourinho, pelo tesoureiro do Banco Industrial e a esposa, e o último carro por dois amigos do secretário, rapazes do comércio.
D. Sinhá não quis ir à igreja, deixando-se ficar em companhia de Evaristo e de Adelaide nas suas toilettes de pouca cerimônia, esperando a volta do batizado — "que era uma grande maçada vestir-se toda de luxo somente para ouvir o latim de monsenhor Teixeira; logo não estavam vendo?..."
Caíam as primeiras sombras da noite quando um rodar de carros anunciou o regresso da Julinha com todo o seu acompanhamento. Encheram-se as janelas de curiosos que queriam ver a criança, e um ligeiro alvoroço percorreu, como um frêmito de novidade, aquele trecho do aristocrático bairro. — É o batizado! é o batizado! — exclamaram vozes alvissareiras; e os carros, um a um, foram parando na mesma ordem da saída, com a mesma distinção, e um a um foram-se apeando os convidados, primeiro os cavalheiros, depois as senhoras, risonhos todos, numa onda invisível de essências. À porta da casa, tapetada de folhas, houve um murmúrio, destacando a voz de Furtado:
— Entrem, meus senhores, queiram ter a bondade...
Seguiu-se o jantar — "um banquete de príncipe!" na opinião de Evaristo. Adelaide foi apresentada à viúva Tourinho e ao Loiola do Banco, houve brindes ao dessert, todos acabaram tratando-se familiarmente, esquecendo o vestido de seda e a casaca, e a própria Julinha que, depois de um berreiro infernal, adormeceu com a serenidade de um anjo.
Era noite quando Luís Furtado ergueu-se para levantar o último brinde, o brinde de honra à "Sereníssima senhora D. Isabel, princesa imperial e herdeira presuntiva do trono do Brasil!" O champanha espumava nas taças de cristal e os hip! hip! hurras! estrondearam em toda a casa.
— À Sereníssima!
— À herdeira da coroa!
— À imperial madrinha da Júlia!
E, todos de pé, esvaziaram as taças.
Furtado observou, então, limpando o bigode, que na sala estava mais fresco.
— Vamos, desembargador... Ó Evaristo, dá o braço à D. Rosa.
D. Rosa era a mulher do Loiola. O bacharel, estranho a etiquetas, muito filósofo, como dizia o secretário, deu dois passos à frente e recebeu amavelmente a mulher do tesoureiro.
— Muito obrigada, Sr. Evaristo, muito obrigada! — repetiu a gorda matrona.
— Oh, minha senhora...
E, em procissão, desfilaram os convivas pelo corredor. No alto da escada do segundo andar ocultou-se, rápida, uma sombra de mulher. Instintivamente o desembargador ergueu os olhos, baixando-os logo.
Furtado ia na frente, guiando os amigos, de braço com a ilustre dama de Sua Majestade a Imperatriz.
Agora é que a sala de visitas tinha um aspecto nobre e luxuoso, ao reflexo das serpentinas e do grande candelabro de cristal pendente do teto. Quadros e bibelôs, o piano e a mobília, o espelho de primeira ordem, rodeado de arabescos, a estante de música, as tapeçarias, as cortinas, o papel do forro, tudo resplendia e dava uns tons de alta nobreza ao conjunto.
Adelaide, sempre tímida, vinha de braço com um dos rapazes do comércio.
Sentaram-se todos, rindo, palrando, o tesoureiro com a face congestionada, a mulher idem, ambos muito gordos; a mulher do desembargador com o seu ar indefectível de nobreza pouco comunicativa, querendo parecer mais moça do que na realidade era, assestava de vez em quando o lorgnon de tartaruga, que pendia-lhe de um correntão de ouro, e punha-se a observar uma estampa do imperador, que havia na sala, entre dois consolos, enquanto o velho Lousada falava com a viúva Tourinho acerca dos últimos incômodos do monarca; o secretário instalara-se entre Adelaide e D. Branca e respondia prontamente às perguntas que lhe faziam, ora um dos rapazes, ora D. Sinhá, ora o tesoureiro do Banco, ora o próprio desembargador, interrompendo a conversa com a Tourinho, e volvia-se freqüentemente para a esposa de Evaristo. O bacharel divertia-se a gabar os trajos de Raul, dando-lhe palmadinhas no ombro.
E pouco a pouco ia-se tornando maior a familiaridade.
— E o Santa Quitéria? — lembrou Furtado com ar de desgosto. Ele, que é um dos meus bons amigos, faltar ao batizado de minha filha!
— E o Dr. Condicional? — saltou Evaristo. — Ainda ontem disse-me que vinha.
— Faltaram todos: o Santa Quitéria, o Pinto, comendador, o Condicional, o Xavier... todos, enfim!
— Todos não! — protestou o velho Lousada, sorrindo — eu aqui estou com minha mulher...
— O desembargador é gente nossa, é de casa — emendou Furtado.
— E eu também sou de casa? — perguntou maliciosamente a viúva.
— V. Exa., com a sua bondade, é de todo o mundo!
— Alto lá, meu amiguinho! — sorriu a boa senhora. — De todo mundo é que não.
E quis saber o que é que o Sr. Furtado entendia por todo o mundo.
Furtado explicou-se razoavelmente.
Nisso pára um carro à porta. Todos os olhares volveram-se para a entrada da sala. D. Branca e o secretário ergueram-se. Mas, antes que se aproximassem da escada, já o Raul anunciava indiscretamente que "era o Dr. Condicional!"
— Oh, o Manhães! — acudiu Furtado.
— Eu mesmo, caro amigo, eu mesmo. Venho dar-lhe os parabéns pelo glorioso dia!
Movimento nas cadeiras; leve sussurro.
— Ah, esse é que é o autor do Juca Pirão? — fez um dos rapazes do comércio.
— Sei que não vim de bonne heure... — tornou o literato dirigindo-se para o grupo, consertando a sobrecasaca. — Em todo o caso, antes tarde que nunca!...
Apresentações, cumprimentos, e o Dr. Condicional, dando jeito ao pincenê, sentou-se. Trazia um grande buquê de violetas na lapela.
Novo carro parou quase imediatamente. Furtado, que se ia acomodando, ergueu-se outra vez. Outra vez o Raul adiantou-se para anunciar, agora com toda a discrição e respeito, "o Sr. visconde de Santa Quitéria!".
— Oh!
A exclamação foi geral.
— O visconde de Santa Quitéria!
— Logo vi que não faltava! — disse Furtado.
E D. Branca teve um movimentozinho de surpresa muito especial, exclamando também: — Oh!
Era, com efeito, o visconde de Santa Quitéria, o grande capitalista, diretor do Banco Luso-Brasileiro.
Bem que todos tinham ouvido parar um carro!
Pelo menos naquele instante, ninguém se lembrou do ilustre poeta que acabava de entrar. A chegada do visconde enchia a todos de surpresa e de alta consideração. Entre a poesia e o capital — preferia-se o capital, tanto mais quanto o diretor do Banco Luso não representava simplesmente um capitalzinho de alguns mil-réis. Não. O Santa Quitéria tinha fortuna para mais de seis mil contos!.
O ilustre personagem estacou à porta, fez um cumprimento geral com a cabeça e entrou, muito correto, admirável de mocidade e de frescura. D. Branca recebeu-o no meio da sala com o mais belo dos seus sorrisos.
Era um perfeito cavalheiro, o visconde. Residia ora em Petrópolis, quando já não suportava o calor na Corte, ora no seu rico palacete das Laranjeiras, pelo inverno chuvoso e nublado. Para as transações da Bolsa tinha escritório na Rua da Alfândega, onde ocupava uma saleta de frente e uma alcova com toilette de mármore e outros objetos indispensáveis ao asseio de um homem. Idade média (pouco mais de quarenta anos), muitíssimo conservado, sem um fio branco na cabeça, olhos vivos, todo ele irrepreensível, tinha fama de beleza entre as mulheres, que o admiravam, não tanto pela fortuna, mas especialmente pela correção do trajo e pelo estranho conjunto das linhas fisionômicas. Muita gente achava-lhe pontos de semelhança com Luís Furtado que se orgulhava disso, que era uma honra para ele, uma grande honra! Por duas vezes o tinham saudado na Rua do Ouvidor julgando cumprimentar o Santa Quitéria: Sr. visconde!... — e ele correspondera delicadamente. Era um engano que o honrava.
O visconde descera de Petrópolis na manhã daquele dia para não faltar ao convite do secretário.
— Dou-lhe os meus parabéns — disse ele a Furtado. E voltando-se para D. Branca, antes de sentar-se: — Peço licença a V. Exa., para um presentezinho à pequena, uma simples lembrança.
D. Branca, humilhada, recebeu a dádiva do banqueiro, que este entregou dentro de uma caixinha de veludo grená. Era uma jóia de ouro e brilhante, uma linda medalha para pescoço.
— Oh, Sr. visconde!...
D. Sinhá quis logo ver o que era:
— Veja, mamãe, veja que bonita!
A dama de honra de Sua Majestade a Imperatriz tomou, cautelosamente, o brinde, assestou o lorgnon e achou, com efeito, lindo, muito lindo!
A jóia correu de mão em mão, arrebatando um — oh! — de cada boca. O Dr. Condicional lembrava-se de ter visto coisa semelhante na vitrina do Farani.
D. Branca não se esqueceu de apresentar Adelaide ao visconde.
— "Sua amiga Adelaide, esposa do Sr. Evaristo de Holanda, comprovinciano e amigo de Furtado..."
E a conversa continuou animada, picante, com um acentuado caráter de brasileirismo, entrecruzando-se as vozes, as opiniões, os ditos espirituosos.
O Dr. Condicional, que se sentara ao lado do desembargador, fez a apologia do Instituto Histórico, do que o velho magistrado era membro, discorrendo sobre os últimos trabalhos do barão da Corte Real, apresentados ao Instituto, e sobre os progressos da geografia e das letras no nosso país.
Lousada, inclinava a cabeça para ouvir melhor, e saboreava os elogios de Valdevino Manhães como quem escuta uma música voluptuosa, uma vaga harmonia encantadora, os olhos entrecerrados, meio adormecidos, a boca imóvel, serenamente imóvel...
De repente estalava uma risada e ele abria os olhos, com um sustozinho, pigarreando.
— E V. Exa. já apresentou algum trabalho, Sr. Desembargador? — inquiriu, por delicadeza, o poeta.
— Ainda não, meu amigo, ainda não, mas tenho pronta uma refutação aos Irmãos Pinzón do conselheiro Lisboa.
— Uma refutação?
— Exatamente, umas notas sobre os primeiros descobridores da América, uns documentos importantíssimos, que valem toda a fortuna dos Rothschilds...
O visconde de Santa Quitéria, ao ouvir falar nos Rothschilds, deitou o rabo do olho.
— ... Calcule o senhor que os fenícios, muito antes de Pinzon, numa época remotíssima, andaram no Amazonas...
— No Amazonas, desembargador? — repetiu Manhães com espanto.
— Pois não, no Amazonas... admira-se? Quanto mais se eu lhe disser que os Cananeus andaram na Paraíba do Norte! Pois é a pura verdade. Encontrei na biblioteca de Sua Majestade um fac-símile de inscrições fenícias descobertas numa pedra da Paraíba.
— Mas, então, Colombo não descobriu a América?
— Não senhor... Colombo não descobriu coisa alguma...
E o desembargador, pausadamente e circunspectamente, explicou a magna questão do ovo de Colombo.
— E o senhor, tem escrito muito? — inquiriu depois ao êmulo de Gonçalves Dias.
— Oh, muito. V. Exa não imagina! O pior é que no Brasil ainda não há editores. V. Exa decerto conhece o meu poema...
— Qual deles?
— Eu só escrevi um poema até hoje...
— Ah!... Como intitulou?
— Então V. Exa. não conhece? — insistiu o literato com surpresa.
— Homem, eu, para lhe falar a verdade, em matéria de verso, só conheço os Lusíadas, que tenho em casa.
Valdevino Manhães deu um jeitinho ao pincenê, verificou que as violetas estavam na lapela, e, como se acabasse de ouvir uma horrorosa blasfêmia, uma heresia medonha, exclamou, fitando os olhos do magistrado:
— Só os Lusíadas?!
— Só os Lusíadas.
Nesse instante aproximava-se um criado oferecendo sorvetes em conchazinhas de porcelana, e um ar frio inundou o ambiente.
— Só os Lusíadas! repetiu o poeta, estendendo a mão à bandeja.
Parecia-lhe incrível, extraordinário, fora de toda a verdade, que um membro do Instituto Histórico do Rio de Janeiro, autor de uma memória sobre os irmãos Pinzon, desembargador da Relação, não lesse os poetas do seu país. Era incrível. Mas o que ele estranhava ocultamente é que o desembargador não houvesse lido a paródia do "1-Juca-Pirama", que tantos elogios merecera da crítica nacional.
As outras pessoas ouviam interessadas o visconde de Santa Quitéria, bebendo-lhe as palavras, religiosamente fitos nos seus olhos.
O Dr. Condicional, porém, animado pelo desembargador e fingindo prestar atenção ao visconde, imobilizava os olhos sobre a esposa de Evaristo. Subitamente a presença dela o atraíra como um clarão que de repente se abrisse, mais forte que a luz do gás.
Ainda não havia reparado! Como é que se achava ali aquela mulher e ele — cego! — não lhe fizera as devidas cortesias? O que mais o impressionava era o ar triste de Adelaide, o tom magoado do seu rosto, a expressão recolhida e meiga dos olhos dela... Pobre senhora! Talvez algum drama íntimo, talvez algum desses episódios "lutuosos" de família, talvez... — quem sabe? — alguma dor oculta pungindo-lhe a ignorada existência... E à sua imaginação vinham casos de adultério, romances de amor infeliz, tragédias em que os maridos matavam as esposas, num formidável acesso de loucura; — suicídios por amor; namorados que faziam saltar os próprios miolos e raparigas que ingeriam veneno... horrores do coração humano! — e repetia mentalmente, sensibilizado por uma vaga apreensão que o punha nervoso: — "Aquela senhora tem o que quer que seja!..."
Valdevino Manhães carregava de tintas sombrias o rosto de Adelaide, o rosto e a alma — embalado por seu natural pessimismo que ia até a negação de Deus e do Bem. Explicava tudo pela — fatalidade, e não podia ver uma pessoa triste que não dissesse logo: "Aí vai 'um desgraçado!" No fundo desse pessimismo havia, entretanto, uma compaixão pelo sofrimento alheio — compaixão que ele calculadamente escondia "para se mostrar superior às fraquezas humanas".
A natural expressão do rosto de Adelaide fazia-a mais triste do na verdade ela estava; seus olhos nunca se abriam completamente; eram olhos meigos, de uma vaga melancolia serena e cismadora, olhos recolhidos, quase mortos, onde às vezes brilhava, como por encanto, um reflexo de alegria, olhos contemplativos, olhos ideais... Naquele momento a esposa de Evaristo, dominada pela palavra do banqueiro, via diante dela, como um estranho fantasma, a Corte Imperial, desde o monarca, com a sua longa barba branca de rei Davi, carregando o pesado manto de arminho e ouro, rodeado de áulicos e cortesãos sob uma grande cúpula majestosa, até o último lacaio dando-se ares de fidalgo, indo e vindo pelos corredores na sua libré carnavalesca de súdito fiel e servo obediente.
O assunto do visconde era a doença do real personagem, a grave moléstia do imperador. Todos o ouviam em grande silêncio e com grande respeito, por se tratar ainda uma vez do homem para quem o Brasil inteiro voltava-se naquele momento da vida nacional. A aristocracia brasileira, já ouvindo falar em república, e zeloza das suas posições e dos seus créditos, temia um desastre político, um assalto ao Poder, naquela hora de tristeza, quando na verdade que os médicos tinham aconselhado ao Chefe da nação um passeio à Europa, uma vilegiatura em Spa ou em Cannes...
— E a imperatriz, como deixou o senhor a imperatriz? — perguntou a mulher do desembargador, inclinando-se para o visconde.
— A imperatriz, minha senhora, é aquele mesmo coração, aquela mesma brandura: diz que há de morrer onde morrer o velho... Uma santa!
— Mas, quando pretende embarcar a família imperial? — interrogou Furtado.
— Por enquanto nada está resolvido. Sua Majestade não quer precipitar uma viagem dolorosa, tem saudades do Brasil.
— Coitado!... — murmurou D. Branca, sem tirar os olhos do capitalista.
— E ninguém sabe, afinal, qual é a doença do imperador! — disse o velho Lousada.
— Não é coração? — atalhou a dama de honor.
O visconde, muito respeitosamente, pediu licença à nobre senhora para dizer que não, que o Sr. D. Pedro II estava com uma glicosúria...
— Glicosúria? Que é glicosúria?
— Diabetes...
— Creia o senhor que ainda não compreendi...
— Diabetes... glicosúria... — fez o visconde atrapalhado, esfregando-se os dedos.
— Enfraquecimento cerebral, minha mulher — explicou Lousada convictamente.
— Não é bem enfraquecimento cerebral; o enfraquecimento, segundo ouvi dizer, é um dos múltiplos sintomas da diabetes... — emendou o banqueiro. — A glicosúria é... é uma doença dos rins.
— Açúcar na urina, homem, creio que está muito bem dito açúcar na urina! — opinou o Dr. Condicional interrompendo as suas reflexões poéticas para emitir juízo científico.
— É... — confirmou friamente o visconde.
— Pois eu já ouvi dizer por um médico ilustre que Sua Majestade sofre de um esgotamento nervoso... — falou o secretário.
— Em francês surmenage, isto é, excesso de trabalho mental... — explicou ainda uma vez, com um ar pedante, o literato.
As indiscretas e bruscas explicações do Dr. Condicional causaram má impressão ao visconde que perguntou baixinho a Furtado "se aquele moço era doido".
Os últimos incômodos do soberano interessavam mais à população fluminense que a alta ou baixa do câmbio ou que a queda estrondosa de um ministério em peso. Na Rua do Ouvidor, na Bolsa, nas secretarias de Estado, nas redações de jornais, todo o mundo comentava a diabetes do monarca, citando pareceres de alta valia, recordando feitos ilustres do segundo imperador, como se o homem já estivesse nas ânsias da morte, discutindo o caráter da enfermidade, que, para uns era diabetes, para outros lesão cardíaca, para outros ainda, esgotamento nervoso, e, finalmente, para um grupo de cortesãos, um ligeiro incômodo dos rins. E ninguém acertava com o verdadeiro mal que se apoderava lento e lento do imperial organismo. O governo, escrupuloso por demasia quando se tratava do chefe da nação, ficava mudo ante a curiosidade do povo, sem dar à Câmara o gostinho de lhe responder às sucessivas interpelações. Deputados e senadores erguiam a voz no seio do Parlamento, inquirindo sobre os "fatos que alarmavam o país inteiro" e quer o presidente do Conselho de Ministros, quer o Secretário do Império, diziam simples e laconicamente que "Sua Majestade estava em pleno gozo das suas prerrogativas e das suas faculdades". Mas o grande caso que os boatos enchiam as ruas, comunicando-se, num furor de incêndio, a todas as casas, a todos os arrabaldes e a todas as províncias. Falava-se mesmo na ida do imperador para a Tijuca e daí, se não melhorasse, para bordo de um vapor estrangeiro. Que ia fazer Sua Majestade na Tijuca — ele que só arredava o pé da Boa Vista para Petrópolis? O clima da Tijuca era quase o de Petrópolis: que ia ele fazer ao alto da Tijuca?
Multiplicavam-se as dúvidas e os comentários. Os barões e os viscondes, que se sentiam incomodados, apregoavam logo a sua diabetes, o seu enfraquecimento nervoso; e a palavra surmenage, até então pouco vulgarizada, tornou-se uma palavra à moda, um vocábulo chique para exprimir dor de cabeça, indisposição nervosa e até impurezas do sangue. Todo o Rio de Janeiro era uma grande surmenage...
O visconde de Santa Quitéria, ao cabo de meia hora, reconheceu que as notícias de que fora portador involuntário enchiam de tristeza os convidados de D. Branca, e, um pouco no ar, um pouquinho sem Saber o que dissesse, ele, o gentleman, o correto homem de salão,
nunca supérfluo, nem amigo de contrariar o próximo, bandeou-se para Adelaide.
— V. Exa. tem gostado da Corte?
A esposa de Evaristo acordou da abstração em que mergulhara e respondeu timidamente, com um leve suspiro:
— Sim, senhor... muito!
— Ah, naturalmente! A Corte é hoje um dos centros mais aristocráticos do mundo. Nas províncias, em geral, não se faz idéia do que isto é...
D. Branca interveio:
— Mas ainda não foi a Petrópolis, senhor visconde.
— Oh, então é preciso ir, é preciso fazer um passeiozinho à cidade dos reis... — tornou o banqueiro afetando um sorriso.
— Lá isso concordo — apoiou Valdevino Manhães, às voltas com o pincenê. — Petrópolis é o complemento do Rio de Janeiro, ou antes, do Município neutro.
Evaristo quis dar um aparte; mas por prudência, engoliu a expressão. Ia desgostar o Santa Quitéria com uma alfinetada na monarquia. Para quê?
Já era tarde. O calor sufocava. Não se ouvia uma pisada na rua. Tudo quieto. Longe, para os lados da praia, tilintavam as campainhas dos bondes. Os dois rapazes do comércio tinham-se erguido para fumar um cigarro à janela. — "Como estava escura a noite!" murmurou um deles. O gás da sala dava uma luz preguiçosa, uma claridade de antecâmara. O piano, sempre aberto, esperava que alguém o fosse animar com as teclas muito alvas, muito novinhas.
O primeiro a retirar-se foi o visconde. Tinha cumprido o seu dever. Pedia licença...
Luís Furtado acompanhou-o à porta da rua, embaixo.
E aquela noite, que devia ser de festa e de regozijo pelo batizado da Julinha, acabou como todas as noites que não são de festa, nem de regozijo — tristemente, quase lugubremente.
Quando todos saíram, Luís Furtado abriu a boca num grande bocejo, que estrondeou na casa e acendeu um cigarro, cantarolando.