Quem transitava pela estrada de Campinas via, meia légua antes de Santa Bárbara, dous casebres unidos por uma espécie de rancho ou telheiro.
Um dos edifícios era bem velho, o outro novo; porém ambos de grosseira fábrica, sem reboco nas paredes mal emboçadas, que mostravam entre os torrões de barro as varas atadas com cipó aos frechais. O chão despido de ladrilho, ou qualquer espécie de soalho, estava cheio de buracos e poças; de pintura não havia traços, nem mesmo de uma simples caiação.
Na extremidade da casa velha, as duas portas abriam para uma espécie de taberna, a julgar pelo balcão de pau que dividia o aposento a meio, e por duas ou três ordens de prateleiras, onde se viam alguns rolos de fumo em corda, rapaduras envolvidas com palha de milho, e uma dúzia de garrafas arrumadas em fila.
Da venda passava-se por uma porta lateral para o aposento próximo que, em sendo preciso, servia de pousada.
Era uma quadra de tamanho regular. Ao centro da parede interna encostava-se uma tosca mesa, ladeada em todo o comprimento por um só banco estreito. Em cada canto havia uma cama, cuja barra era feita de tiras de couro cru entretecidas a modo de esteira.
Era já sol fora.
Abrira-se de pouco a taberna, que parecia deserta, como todo o resto da habitação. Ao menos quem passava na estrada, acertando de enfiar os olhos pela porta, não via no meio da silenciosa imobilidade do interior outro sinal de vida a não ser o voo das moscas pousando sobre o balcão para sugarem o mel de umas farpas de rapadura, que ali tinham deixado os viajantes da véspera.
Não era, porém, tão absoluta como parecia aquela solidão.
Na venda, por trás de uma quartola, arrumado em cima do balcão e de bruços neste, cochilava um sujeito com a cabeça posta sobre os dous braços cruzados em cima da tábua. Quando algum tropel soava na estrada, levantava ele a meio a testa, e enfrestava pela aberta que havia entre a parede e o bojo da quartola uma vista encandeada pela claridade. Passado que fosse o viajante, voltava à contínua modorra.
Ainda moço e robusto, derramava-se não obstante no físico desse homem certo ar de indolência, que nesse momento mais se carregava com a sonolenta expressão do rosto seco, pálido, baço, e levemente sombreado por alguns raros fios de barba. O cunho especial dessas feições, e particularmente o viés dos olhos com os cantos alçados para as têmporas, revelavam o cruzamento do sangue americano com a casta boêmia.
Do lado oposto da habitação, em um compartimento, que tinha jeito de varanda, cozinha e pátio de criação, tudo ao mesmo tempo, fervia a panela posta em uma trempe de pedra no meio do chão. O fogo, apenas alimentado por gravetos, mal cozia o feijão e couves, destinados ao sustento daquele dia.
Fronteira à janela, sentada ao chão, com os joelhos levantados e os braços caídos sobre eles, estava uma rapariga de seus vinte e cinco anos, que parecia muito e muito ocupada em observar a fervura da panela; pois não tirava dela os olhos, nem fazia outra cousa. Perto dela jaziam, espalhados pelo chão, ou dentro de uma gamela, vários pratos brancos de beira azul, uma tigela igual e algumas colheres de estanho.
Diferentes vezes já, a rapariga lançara um olhar de enfado para a louça ainda suja do serviço da véspera, e alongava depois a vista pela porta afora até lá embaixo no brejal, onde passava o rego da água, e media a distância a percorrer. Abria então a boca em um interminável bocejo, espreguiçava o lombo estirando os braços; e, quando parecia levantar-se para cuidar na lavagem dos pratos, achatava-se ainda mais no chão, murmurando:
— Tem tempo!
Ouvindo o estrupido de animal na estrada, ergueu o sujeito a cabeça para olhar pela fresta; e seu rosto debuxou, através da sorna habitual, um gesto de aborrimento e agastura, produzido pela vista do viajante que se aproximava.
Era este homem de trinta anos, de tão alto e esguio talhe que se curvava ao peso de uma cabeça enorme e guedelhuda, ou talvez pelo hábito de cavalgar derreado à banda, como usam os caipiras. Sua fisionomia grosseira nada tinha de notável, a não ser a malha que lhe marchetava de nódoas brancas a tez acobreada, bem como as costas das mãos.
Vestia um pala em bom uso, sobre fina camisa de morim e calça de brim de listra. O chapéu era novo e de meio castor; as botas de couro de veado com chilenas de prata. Trazia no arção da sela uma espingarda de dous canos; e na cinta uma garrucha.
Parando a mula à entrada da venda, o cavaleiro bateu com o cabo do rebenque na porta, gritando:
— Ó de casa!... Ainda se dorme por aqui, nhô Chico?... Querem ver que o diabo do Tinguá está mesmo ferrado na soneira?... Foi volta de samba esta noite, e samba grosso que deu de si até a madrugada. Não tem dúvida! Ó lá de dentro! Basta de dormir! Já deve estar bem cozida a camueca!
Desenganado de que não se ia o importuno, resolveu-se afinal o sujeito da venda a fingir que despertava da sonata; e, estorcendo-se em um ruidoso bocejo, estirou a cabeça por fora do bojo da quartola.
— Quem é?... Ah! nhô Gonçalo!
— Ora, bem aparecido!... Parece que por cá anoiteceu de madrugada!...
— Não sei o que é; mas ando com uma canseira agora. Tenho cismado que seja dureza. Levo só a dormir!...
No rosto do Chico nem vestígios restavam mais da expressão aborrida que provocara a presença do Gonçalo. Ao contrário, com o riso postiço, e a oficiosidade própria dos estalajadeiros, que sabem seu ofício, se erguera para falar ao freguês; e, apenas o viu apear, preparou-se para acudir pressuroso a seu serviço.
Neste ponto fazia o dono da taberna uma exceção à habitual indiferença com que de ordinário via chegarem à sua casa, e nela pousarem, viajantes de posição muito superior à do Gonçalo. Haveria porventura a respeito deste alguma razão particular.
— Bebe-se café por aqui, ou não se usa?
— Sempre há de se arranjar!
— Pois então vamos a isto; enquanto descanso um tantinho. Aqui onde vê este degas, já desanquei uma capangada! Quiseram se meter de gorra!...
— Nhanica!... bradou o Chico para dentro. Coa um bocado de café!
Ergueu-se então a rapariga e sem espreguiçarse; tirou da trempe a panela de feijão para deitar o boião d'água; e arranjando o saco, onde ainda estava o polme da véspera, que servia para dous dias, correu a buscar água para lavar a louça.
Entretanto o Gonçalo, derreado sobre o balcão, chalrava com o Chico sobre o que vinha a pelo:
— E o Bugre, como vai? perguntou de repente o Gonçalo.
— Eu lá sei, homem! Anda pelos matos, enquanto não dão cabo dele, que não tarda muito!...
— Então acha que o filam mesmo? acudiu o Gonçalo com um alvoroto de prazer, que mal disfarçou.
— É o mais certo! Dizem que estão lhe pondo cerco.
— Ora, isso há muito tempo!
— Mas um dia chega a caipora.
— Como? Se ninguém sabe onde ele vive?...
— Lá isso é verdade! Ninguém!
— Pois eu cá não me escondo! Quem quiser que venha!
De costas para o interior da venda, o Gonçalo, embora olhasse para fora, espreitava de soslaio o Tinguá, que nesse momento, debruçado sobre o tampo do balcão, onde fincava os cotovelos, parecia inteiramente absorvido em examinar as ferraduras da mula.
— Um dos cravos da mão está bambo! disse ele apontando para o casco do animal.
— É mesmo! tornou o Gonçalo, que levantara a pata da mula. Pinche-me cá o martelo.
Nesse instante, no topo do caminho que descia à esquerda pela rampa de uma colina, apareceu uma troça de caipiras. Vinham a pé, com as espingardas ao ombro; e diante deles trotavam a cruzar o caminho e farejar as moitas, dous cães de caça.