Dona Júlia não se pôde levantar na manhã seguinte.
Quando Paulo entrou no quarto para vê-la, achou-a a chorar.
— Que tem, mamãe?
— Nada. Deixa-me. Também não possa chorar?
— Mas isso faz-lhe mal. O médico recomendou a maior calma.
— Ora, o médico... O médico sabe lá o que eu tenho. Não hei de chorar. Ver minha filha assim... Eu mesma não sei que é que você pensa, rapaz. Ninguém era mais severo, agora só porque ela anda de carro, coberta de jóias, já você não se importa. Pois eu não. Preferia... - calou-se recalcando a frase que lhe subira do coração e ficou um momento de olhos perdidos, arfando.
— Que hei de eu fazer? Só se a senhora quer que eu lhe feche a porta. Se quer...
Ela não respondeu.
— Fiz o que fiz porque a senhora vivia chorando por ela. Eu devia ter ficado quieto. É assim: nunca o que faço agrada. Eu é que sou tolo.
— Paulo, pelo amor de Deus! deixa-me. Não me amofines mais. Se soubesses como tenho este pobre coração não vivias a torturar-me. Hás de sentir mais tarde, deixa estar. Velha assim mesmo e doente, como estou, sempre sirvo para alguma coisa. Deixe estar.
Felícia pôs-se a vociferar na cozinha, atirando panelas.
— Olha, vai lá ver aquela rapariga.
Paulo saiu a conter a negra. Quando ela deu com ele aprumou-se hostilmente, com os olhos muito brilhantes, parados. Ele receou repreendê-la. Chamou-a com mansidão procurando acalmá-la:
— Então, velha? que barulho é este?
A negra avançou e curvando-se, com o braço hirto, como a mostrar alguma coisa ao longe, rouquejou:
— Está ouvindo? Então não é assim? Vosmecê pensa que o mar não conta? vá lá na praia escutar. Eu estou aqui, estou ouvindo. Que é que ele fez? Mode quê? Uma voltou, outro não volta. Mode quê? Ela é melhor? não é. Eu também sou mãe. Quem manda está lá em cima.
Saiu precipitadamente ao quintal, o braço erguido para o céu luminoso.
— Ele há de vir também.
— Pois sim, mas é preciso que fiques quieta, que cuides do serviço como dantes. Deus não gosta de gente má.
— Má... Quem é que é má?
Resmungou uma obscenidade e foi encostar-se ao fogão, ainda apagado.
— Má. Eu sou mãe como sua mãe! - gritou com fúria frenética fitando nele os olhos lampejantes.
— Sim senhor. Mãe como sua mãe.
Paulo deixou-a e a negra ficou a bradar esmurrando as paredes. Dona Júlia chamou-o:
— Olha, meu filho, o melhor é despedires essa rapariga. Vê se arranjas alguém que fique comigo porque eu até tenho medo que ela me faça alguma coisa, no estado em que está.
— Mas como hei de sair? Quem ficará com a senhora?
— Vai e leva a chave. Eu fico só. Não te demores.
Ele hesitou:
— Para fazê-la sair só se eu chamar uma praça.
— Prendê-la? Isso não, coitada! Olha, manda-a cá. - Soergueu-se e chamou: Felícia!
A negra respondeu do fundo da cozinha:
— Nhora!
— Vem cá.
Ela apareceu à porta do quarto com as roupas em frangalhos, o colo seco descoberto, as magras pernas à mostra.
— Chega aqui.
A negra adiantou-se humilde, arrepanhando os andrajos.
— Eu estou doente, não me posso levantar. Se não queres tomar conta da serviço dize porque eu faço um sacrifício e vou assim mesmo para a cozinha.
Rapidamente a negra levou as mãos aos olhos e, atirando-se de joelhos junto à cama, rompeu a chorar.
— Que foi que eu fiz, sinhá? Que foi que eu fiz? Eu não estou quieta no meu serviço? Por que é que vão mexer comigo? Eu não faço mal a ninguém... Coitada de mim!
— Mas ninguém mexeu contigo. Tu é que andas a fazer criançadas, não tens pena de mim que sou tão tua amiga.
— Então eu não quero bem a vosmecê?
— Não parece.
— Eu já abandonei vosmecê?
— Não; mas agora não pareces a mesma Felícia.
— É, vosmecê fala assim... Quem ouvir há de pensar que eu sou exigente, que peço mundos e fundos. Que é que eu peço? Porque falo com meu filho? Então não sou mãe?
Levantou-se de salto, escancarou a porta do quarto, mostrou a cozinha:
— Ele vai para lá, fica comigo, eu converso com ele. Que é que tem? faz mal? Vosmecê não fica até tarde esperando nhonhô? Nhá Violante não esteve ontem aqui? Então eu não vejo? Eu estou calada, estou quieta, mas vejo tudo. Vosmecê é mãe, eu também sou. A dor que vosmecê sentiu eu também senti. O leite é da mesma cor: por ser preta não sinto menos, sinhá.
Ficou a encará-la, com uma expressão dolorosa no rosto escaveirada; e concluiu:
— Mãe é uma só. Eu vou fazer o meu serviço, mas não bulam comigo que eu não bulo com ninguém.
Deu alguns passos e retrocedeu:
— Vosmecê olhe e há de ver; eu vou para o meu serviço, daqui a pouco a cozinha está cheia. Não me deixam fazer nada. Vosmecê fique olhando.
E, arrepanhando as molambos, foi-se. Depois dum silêncio Dona Júlia murmurou:
— É tudo, meu Deus! Uma rapariga tão boa...! Eu é que sou a infeliz. Chego, às vezes, a pensar que espalho desgraças. É o meu caiporismo. Até parece coisa feita. Enfim, há de ser o que Deus quiser.
Vendo o filho encostado à cômoda, pensativo, disse-lhe:
— Vai, tens que fazer. Não te prendas por minha causa.
— E a senhora?
— Não te incomodes comigo.
Ele ainda hesitou. Ela insistiu:
— Vai.
— Então eu vou, porque tenho mesmo que fazer e volto cedo.
— Pois sim. Fecha a porta e leva a chave.
— E se vier alguém?
— Quem vem aqui?
— Quer alguma coisa lá de baixo?
— Não.
— Então até já.
Sentia necessidade de ar, de movimento. A casa, cada vez mais triste, sempre a ecoar esconjuros e lamentações da louca, tornava-se-lhe insuportável. A mãe, por outro lado, a suspirar, a chorar no quarto alumiado dia e noite pela lamparina devota. Vestiu-se e saiu, fechando a porta e levando a chave.
Ia à aventura, sem destino. Foi caminhando vagarosamente, preocupado com o estado da velha.
"Achava-a mal... e só, com a louca... Enfim, como contava voltar cedo... Onde poderia encontrar uma criada?" Seguia pensando, sem dar pelo caminho. De repente lembrou-se de Ritinha. Súbito calor aqueceu-lhe o sangue reavivando desejos. Se fosse vê-la? Talvez que ela lhe pudesse inculcar alguém, conhecia tantas raparigas. Era uma idéia. Estugou o passo e no Largo da Lapa tomou um tílburi, mandando tocar para a estalagem.
Ao chegar à casinha de Mamede ficou surpreendido vendo a porta e a janela fechadas e já se decidia a voltar, quando, da cerca da casa contígua, uma mulheraça, em mangas de camisa, com grandes peitos derramados sobre o ventre cheio, disse-lhe chuchando os dentes:
— Bata. Tem gente.
Ele agradeceu, atravessou o jardinete e bateu à porta. Falaram dentro, ele reconheceu a voz da mulata.
— Sou eu, Paulo.
— Responderam? perguntou a mulher.
— Sim, senhora. Obrigado.
A parta entreabriu-se e Ritinha, reconhecendo-o, não teve sequer um sorriso. Ele entrou e, na meia escuridão da sala, exclamou espantado:
— Que é isto? Tudo fechado. Por quê?
Ela deu d'ombros, amuada.
— Que é dele?
— Quem?
— Mamede.
— Sei lá!
Sentou-se aborrecida.
— Houve alguma coisa entre vocês?
— Sei lá!
— Brigas, ciumadas; aposto.
— Ciumadas. Eu é que vou procurar a minha vida. Estou farta de aturar grosserias e de passar vergonhas. Quem não pode com o tempo não inventa modas. Aquilo é lá homem?! Não se importa com a casa - se tem dinheiro é pro jogo, se não tem, mete-se aqui bebendo, resmungando desaforos e eu que me vire em comida. O senhorio não sai aí da porta e, volta e meia, são cobradores batendo, com atrevimento. E ele? Há três dias que não aparece. Estão dizendo que foi preso numa casa de jogo. Não sei.
— E você agora?
— Eu vou por aí. De fome é que não hei de morrer.
Depois dum silêncio Paulo aproximou a sua cadeira e, tomando a mão da mulata, voltou à proposta antiga.
— Bem podias estar livre de tudo isto. Não queres...
— O quê?
— Sair comigo.
Ela baixou a cabeça, calada.
— Não queres viver em cômodos. Pois vem morar comigo.
— Com o senhor? Que é isso?! E sua mãe?
— Que tem? Mamãe é uma criatura excelente, estou certa de que te hás de dar muito bem com ela. Só depende de ti.
— Mas então sua mãe vai recebendo assim uma pessoa que não conhece? que nunca viu?
— Que tem isso? Eu saí mesma para procurar alguém que a acompanhe. Ela está de cama, muito mal. Tu aqui trabalhas como uma moura, para quê? Vais lá para casa, eu tomo uma criada, só tens que dirigir o serviço.
— Mas... para viver com o senhor?
— Então?
A mulata ficou pensativa. Ele insistiu:
— Decide.
— Não sei. Isso assim de repente... Sei lá!
Ele acentuou:
— Olha, vamos fazer uma coisa. Eu vou agora para casa, digo a mamãe que tu, a companheira de Mamede, te ofereceste para fazer-lhe companhia. Ela aceita, estou certa, porque a rapariga que nos servia ficou maluca e temos de despedi-la; eu venho buscar-te ou tu vais, à noite, e, depois de lá estares, o mais arranja-se.
Ela ouvia, escabichando as unhas.
— Mas então eu vou como criada?
— Não, filha; vais como pessoa de amizade, fazer um favor. Amanhã mesmo eu tomo uma criada e ficas como dona da casa, porque mamãe está de cama e creio que, infelizmente, não se levanta mais.
— Está assim?
— Perdida!
— De quê!
— Coração.
Houve um silêncio. Paulo fitava-a, acariciando-lhe a mão.
— A questão é sair daqui.
— Por causa dos trastes?
— Os trastes são dele; mas a minha roupa, o que é meu. O senhorio, com certeza, não me deixa tirar. Mamede está devendo tanto!
— Isso é simples: vais ao senhorio, dizes que retiras apenas o que é teu, dás-lhe algum dinheiro, se ele exigir.
— Era bom que eu tivesse!...
— Tenho eu. Quanto queres?
— Sei lá!
— Chegam cem mil-réis?
— Acho que sim.
— Pois toma.
Deu-lhe o dinheiro escolhendo vagarosamente no maço, entre as notas grandes, duas de cinqüenta.
— E agora é tratar de arrumar as coisas e sair. Já devias ter feito isto. Mamede é um bom rapaz, mas não te serve. Levantou-se.
— Bem, vou para casa; deixei mamãe só. E olha que fico à tua espera. Vê lá. Não vás fazer alguma.
Ela respondeu, sem levantar os olhos:
— Já disse que vou.
— A que horas?
— À noitinha.
— Pois bem. Então até logo. E se precisas de mais alguma coisa...?
— Não.
Frente a frente encararam-se; ela sorriu e, num movimento repentino, atirou-lhe os braços ao pescoço, ofereceu-lhe a boca, cerrando as olhos lânguidos.
Entrando em casa, Paulo foi direito ao quarto da mãe, bateu de leve na vidraça da porta.
— Quem é?
— Eu, mamãe.
— Entra.
O ar morno, denso, cheirava a alfazema. A lamparina ardia tristemente diante das imagens. Ele sentou-se à beira da cama:
— Então? Como vai?
— Assim...
— Pus a anúncio. Felícia não veio cá?
— Andou aí pela sala mexendo, resmungando.
— E a senhora comeu alguma coisa?
— Não tenho fome.
— Mas precisa comer.
Depois duma pausa anunciou:
— A companheira de Mamede vem ficar aqui, com a senhora.
— Quem é?
— A rapariga que vive com ele.
— Não quero.
— Por quê?
— Não quero.
— Mas se a lembrança partiu dele! Encontreio na rua, disse-lhe como a senhora está, falei de Felícia e ele imediatamente ofereceu a sua companheira para vir ficar aqui uns dias. Vamos que eu não arranje uma criada, quem há de cuidar da senhora, tratar da casa? Eu não posso, não havemos de pedir aos vizinhos. Felícia está como a senhora vê. Aceitei o oferecimento e a moça ficou de vir à noitinha. E agora que hei de eu dizer?
— Que tipo é?
— É uma pardinha. Vive com ele como se fosse casada. A senhora há de gostar dela.
— E cômodo? Onde vai dormir essa moça? Tem o quarto de Violante, mas cama, o mais?
— Eu cedo-lhe o meu quarto, é por dias. Armo a rede no quarto de Violante e está pronto. O que eu não quero é que a senhora fique aqui assim, com uma doida que nem para lhe trazer um copo d'água serve. Tudo se há de arranjar. Hoje, por exemplo, a senhora não imagina como andei na cidade, com um ror de coisas a fazer. Deixei tudo e vim para casa, a correr, com medo.
— Medo de quê?
— De quê? de Felícia. Assim, estando aqui uma pessoa de confiança, não me incomodo.
— E conheces bem essa moça?
— Conheço.
— E séria?
— Então, mamãe!
— Sim, porque eu quero respeito aqui em casa. Lá fora, tudo quanto quiseres; aqui não.
Paulo não achou uma palavra para responder, ficou como atordoado, olhando a enferma que continuava em resmungo, defendendo a seu lar como se houvesse adivinhado a intenção do filho.
— Bem sabes como sou. Se é uma pessoa honesta, muito bem; mas troças aqui, isso não!
— Que troças, mamãe. Então eu havia de meter em casa uma vagabunda?
— Não sei... Conheço Mamede: bom rapaz, bom rapaz, mas lá fora. Vem a mulher, amanhã é ele que se mete aqui. Não quero. Prefiro morrer sozinha. Deus me acompanhará.
— Ele não vem.
— Pois sim, faze lá o que quiseres, contanto que haja respeito aqui.
E ele, procurando desviar a palestra do assunto escabroso, perguntou:
— E Felícia? posso despedi-la?
— Sim, mas não a maltrates, tem pena dela. Enquanto teve juízo foi muita boa para todos nós, agora, coitada...!
— Descanse, mamãe.
Foi à cozinha. A negra não estava, procurou-a no quarto, chamando-a. Saiu ao quintal, lá a encontrou acocorada, cavando a terra. Chamou-a. A negra voltou-se de ímpeto e fitou nele as olhos que ardiam.
— Felícia, nós vamos sair. Mamãe está mal, precisa mudar de ares. Vamos para longe, não podemos levar-te. Tens aqui o teu dinheiro. Arranja o que é teu e procura casa onde fiques. Quando voltarmos irei buscar-te.
A negra ouvia com um sorriso estampado no rosto. Levantou-se, sacudiu as mãos e foi caminhando devagar para a cozinha. À porta, porém, deteve-se e, voltando-se impetuosamente, como se fosse responder com fúria, olhou-o serena e, de novo, o sorriso abriu-se-lhe no rosto macilento e fulo. Entrou e, diante do fogão, repentinamente tomada pelo delírio, apanhou as pontas do vestido roto, ergueu-a e pôs-se a sapatear, a voltear, cantarolando:
Vou-me embora! Vou-me embora.
É mentira, não vou, não...
Dobrou-se a rir, derreando-se sobre o fogão, e ali ficou na rinchavelhada insana, sem dar pelo rapaz que a contemplava, parado à porta. Vendo que ela não se decidia, Paulo chamou-a, enérgica:
— Então, Felícia!
— Uai!
Outra gargalhada ralou, sinistra.
— Uai! Vancê vá inda, eu vou depois.
— Não, hás de sair agora.
— Agora não, respondeu a louca com toda a calma, meneando com a cabeça. Agora não.
Sentou-se a um canto, espichou as pernas magras e pôs-se a raspar o soalho, sempre com a cabeça em movimento negativo.
— Meu filho não falou. Quando meu filho falar. Tudo tem seu tempo. Pois então? Vosmecê quer, ele não quer. Eu fico esperando. O mar está aí. Vá, vá, nhonhô. Não bula com quem não faz mal. Que é que eu estou fazendo? Vancê olhe - e, apontou o ângulo do teto, negro de fuligem: Ali é que ele mora.
Paulo começava a irritar-se. Avançou alguns passos e, violentamente, agarrando a negra por um braço, puxou-a, rasgando-lhe a camisa e, como não encontrasse resistência, numa raiva que crescia, que a inércia da louca parecia acirrar, esmurrou-a, atirou-lhe pontapés, e a miserável rolava, enrodilhava-se, com os braços pela cabeça, chorando humildemente. Dona Júlia, ouvindo a rumor, chamou o filho. Ele saiu, deixando a negra por terra, descomposta, gemendo.
— Que é? perguntou a velha assustada.
Ele respondeu ofegante:
— É demais! Também não se pode ter paciência de santo.
— Deste na pobrezinha, Paulo?
— Ah, não... Está uma fera. Não se lhe pode falar: assanha-se como uma víbora. Não estou para aturá-la. Louca, pois que vá para o Hospício.
A negra chorava alto, lamentando-se. Paulo quis voltar à cozinha.
— Deixa-a, pediu Dona Júlia. Não lhe batas, coitada! Não tem consciência do que faz. Deixa-a.
Ele deu uma volta pela sala e, lembrando-se de que a mãe nada havia comido até aquela hora, tomou o chapéu e, chegando-se à porta do quarto, disse:
— Eu vou a um hotel mandar vir alguma coisa. Até já.
E saiu resmungando.