Paulo estava à janela quando uma carrocinha de mão parou à porta. O carroceiro adiantou-se e ele, antes que o homem falasse, disse: "É aqui mesmo." Era a bagagem de Ritinha: um baú de couro, uma pequena lata, dois caixotes e a gaiola do canário que esvoaçava, assustado. Justamente o carroceiro arrastava a baú pesado, tombando-o sobre a calçada, quando a mulata apareceu risonha. Paulo recebeu-a e, dizendo ao carroceiro que deixasse tudo na sala, levou-a para o sofá. Ela queixou-se de cansaço.

— Vieste a pé?

— Não, vim de bonde até o Largo da Lapa, mas de lá toquei-me numa batida até aqui e com este calor... E sua mãe?

— Está lá dentro. Nós precisamos conversar. Deixa o homem acabar o serviço. Temos uma combinaçãozinha. - E, voltando-se para o carroceiro, que deixara a gaiola a um canto: Pronto?

— Sim, senhor.

— Ajustaste? perguntou à Ritinha.

Ela disse-lhe o preço. Pagou, fechou a porta e tornou ao sofá sentando-se muito chegado à mulata que parecia examinar a sala, escura àquela hora da tarde.

— Ouve, eu falei à mamãe: disse-lhe que vinhas a mandado do Mamede. Tendo-lhe eu dito que ela estava sem uma pessoa de confiança em casa, ele fez questão de que viesses para tratá-la. Dormes no meu quarto, eu vou lá para dentro... Isto é só nas primeiras dias, já se vê; depois... fica por minha conta. - E beijou-a. - Agora vamos lá, quero apresentar-te á velha. Hás de gostar dela.

Ritinha estava receosa, e, no sofá, retorcendo o lenço, parecia meditar.

— Anda!

— Olhe lá! Veja bem o que vai fazer...!

— Não tenhas medo. Deixa de tolice. Mamãe está doente, não se levanta. Anda.

— Se ela me disser alguma coisa eu volto, vou-me embora. Isso tão certo...

— Ora... Vamos.

A mulata levantou-se e foram juntos pelo corredor escuro. Paulo acendeu o gás na sala de jantar e, chegando à porta da quarto, anunciou:

— Mamãe, está aqui a moça de que lhe falei. Ela pode entrar? A velha desculpou-se:

— Oh! meu filho, isto está num desarranjo... nem foi varrido. Pede desculpa.

— Ela sabe, mamãe.

— Não sou de cerimônia, - disse Ritinha já no quarto.

A luz da lamparina mal aclarava uma parte do aposento. A enferma sentou-se na cama e procurou ver a mulata que se adiantava, estendendo a mão. Houve um momento de travado silêncio - as duas mulheres pareciam examinar-se. Por fim Dona Júlia falou tranqüilizada, como se a fisionomia de Ritinha a houvesse serenado:

— É ainda muita mocinha.

— É o que parece. Então que é isso?

— Eu sei, minha filha?! Estou fazendo horas para seguir o meu destino. E queira Deus que não demore porque já estou cansada de sofrer.

— Qual! a senhora fica boa. Eu estou aqui para o que for preciso. Não valho muito, mas os meus préstimos ficam às suas ordens. Antes mesmo de Mamede me falar eu já tinha dito a seu filho que, se fosse preciso...

— Obrigada. Nem sei como a senhora vai se arranjar nesta barafunda. Isso lá por fora está que é uma vergonha. Eu imagino! A nossa criada, coitada! lá está na cozinha gemendo, gritando.

— Ainda!

— Ora!

— Se eu digo à mamãe que o melhor é pedir que a mandem tirar daqui...

— Tenho pena... - E tomando à Ritinha: A senhora compreende, foi uma criatura que sempre nos acompanhou com a maior dedicação, muita amiga de todos. Teve a infelicidade de ficar assim e eu, francamente, não tenho coração para tocá-la de casa.

— Aqui é que ela não pode ficar, mamãe. É impossível. Não há tanta gente boa no Hospício? Aquilo não é um presídio, é uma casa de caridade.

— Sim, mas a gente sempre tem pena. Enfim, tu é que sabes. Eu não digo nada.

Paulo convidou Ritinha para ver o quarto, ela devia querer ficar a gosto.

Levou-a à sala e, ligeiramente, atirando-lhe os braços ao pescoço, rosto contra rosto, perguntou:

— Então?

— Parece uma boa criatura.

E na sombra uniram as bocas demoradamente.

Instalando-se no quarto de Paulo, Ritinha pôs-se logo à vontade e, cheia de solicitude, muito carinhosa com a enferma, insistiu com ela para que tomasse alguma coisa: um pouco de chá, ao menos.

Dona Júlia cedeu ao carinho e a mulata entrou na despensa, acompanhada de Paulo, que fazia empenho em que ela tudo visse. Abria latas, pacotes, com uma grande vaidade de dono de casa a exibir a abundância. Foram à cozinha. A um canto, encolhida, Felícia resmungava como um animal medroso. Os seus olhos luziam na sombra, de quando em quando um suspiro subia-lhe do peito. Arrepanhava os molambos, fazia-se humilde, chegava-se à parede como se procurasse refúgio.

— Esta é que é a maluca? - perguntou Ritinha inclinando-se, com a vela muito chegada ao rosto da negra.

— É. Um diabo que só nos dá trabalho. É até capaz de morrer aqui. Não come, nem sei como vive. A noite é um horror.

— Coitada!

— Coitada!? Hás de ver logo mais: grita, sapateia, chora.

Ritinha pôs-se a acender o fogo juntando gravetos, Paulo ajudava e, passando por ela, sem importar-se com a louca que os olhava, beliscava-a, atirava-lhe beijos à nuca, emprazando-a para a noite alta, quando a velha dormisse.

— Olhe lá! não comece com imprudências. Eu não quero histórias comigo.

— Quê! pensas que eu hei de dormir sozinho tendo-te aqui em casa, minha, minha só?...

Num frenesi lúbrico agarrou-a, levantou-a nos braços e a sombra dos dois corpos enlaçados tremia nos muros negros da cozinha fuliginosa. Felícia foi-se arrastando, meteu-se debaixo da pia, sem sentir a umidade, ficou a olhar assombrada. Dona Júlia chamou:

— Paulo!

— Senhora!

— Dá-me um bocadinho d'água.

Ele foi pronto em servi-la. Depois de beber, a enferma perguntou:

— Que estás fazendo lá dentro?

— Fui mostrar a despensa, a cozinha.

Sentou-se e, meigo, perguntou:

— Então, que lhe parece?

A velha não respondeu; ele continuou:

— É uma excelente criatura e a senhora não imagina o que ela sofre do Mamede.

— Por quê?

— Ora! Não lhe dá vintém. Tudo quanto ganha é para o jogo; e ela, a bem dizer, quem sustenta a casa com o que faz lavando e engomando. A senhora há de gostar dela. Eu já lhe disse que vou tomar uma criada para o serviço pesado. Ela fica apenas para fazer-lhe companhia.

— E Violante? perguntou Dona Júlia.

— Que tem?

— Não tens tido notícias?

— Não. Talvez vá vê-la amanhã. Quer que ela venha cá?

— Sinto-me tão mal, esta falta de ar...

— Isso passa. É questão de dias. Foi uma felicidade acharmos esta moça, porque a senhora não imagina como ando agora cheio de trabalho. Se for feliz, como espero, em certos negócios em que me meti, talvez faça exame em março. Tudo depende de tranqüilidade.

Ritinha apareceu à porta perguntando onde estava o pão. Paulo precipitou-se, abriu o guarda-comida, solícito:

— Quer umas torradas, mamãe?

— Umas duas, não tenho fome.

A mulata tornou à cozinha. Pouco depois aparecia com a bandeja e, acendendo o gás no quarto, ficaram os dois juntos à enferma, vendo-a comer, animando-a. Distraíram-se em conversa. Ritinha a falar de uma moléstia que também a martirizara durante meses. Andara nas mãos de um bando de médicos e ficara boa com remédios caseiros.

— A gente não acredita, mas a verdade é que não é um caso nem dois, quantos!?

— Mas a minha moléstia não tem cura. Não imagina como estou inchada e esta aflição que me mata. As vezes, de noite, fico sem ar, levanto-me, abro as janelas. É uma agonia que só Deus sabe! Dizem que é o coração, não sei.

Palmas estrondaram na sala. Paulo saiu precipitadamente do quarto e, chegando ao corredor, viu a porta da rua escancarada e um vulto branco de pé no limiar: era a vizinha.

— A sua criada saiu correndo e deixou a porta aberta. Foi lá para baixo, atirando murros, desesperada.

— Há muito tempo?

— Não, senhor. Agora mesmo. Parece que ela não está muito boa da cabeça.

— Está perdida. Nós conservamo-la aqui por pena.

— Vai por aí à toa. São até capazes de prendê-la.

— Isso com certeza.

— Bom. Boa noite.

— Muito obrigado. Entrou, fechou a porta, exclamando: Melhor! Reaparecendo no quarto, deu logo a notícia de chofre: Felícia fugiu.

— Como? perguntou a enferma, emocionada.

— Sei lá. Foi a vizinha que bateu, porque a maluca deixou a porta escancarada.

— E agora, meu filho! - exclamou Dona Júlia de mãos postas.

— Agora o quê, mamãe?

— Que há de ser dela?

— Sei lá. Eu é que não me vou cansar por aí atrás de doidos. Foi melhor assim. Tinha de sair mesmo, se havia de ser com escândalo, à força, foi melhor assim. Acham-na, levam-na à polícia, mandam-na para o Hospício e está tudo acabado.

— Pobre coitada! - suspirou Dona Júlia e, voltando-se para Ritinha, murmurou: Filhos, vê a senhora? é o que eles fazem. Era uma criatura excelente, não imagina. Veio para aqui e, duma hora para outra, virou a cabeça. Deus tenha pena dela.

— Mas não se incomode. Que se há de fazer? Trate de descansar.

A velha revoltou-se contra a indiferença do filho.

— Ah! Paulo, tu não tens coração... Não sei a quem saíste assim.

— Hei de chorar?

— Não digo que chores, mas a gente tem pena: é uma infeliz.

Ele resmungou passando à sala e, sentando-se diante da janela, ficou a olhar a noite estrelada, ansioso pelo silêncio, pelo sono da enferma, para realizar o desejo tantas vezes sufocado no seu quarto quando, recolhendo ao leito, cansado da vida errante, excitado com o contato das mulheres que se roçavam lascivamente por ele, insone, punha-se a pensar em Ritinha, vivendo-a na imaginação.