Este livro é irmão de Iracema.
Chamei-lhe de lenda como ao outro. Nenhum título responde melhor pela propriedade, como pela modéstia, às tradições da pátria indígena.
Quem por desfastio percorrer estas páginas, se não tiver estudado com alma brasileira o berço de nossa nacionalidade, há de estranhar em outras coisas a magnanimidade que ressumbra no drama selvagem a formar-lhe o vigoroso relevo.
Como admitir que bárbaros, quais nos pintaram os indígenas, brutos e canibais, antes feras que homens, fossem suscetíveis desses brios nativos que realçam a dignidade do rei da criação? Os historiadores, cronistas e viajantes da primeira época, senão de todo o período colonial, devem ser lidos à luz de uma crítica severa. É indispensável sobretudo escoimar os fatos comprovados, das fábulas a que serviam de mote, e das apreciações a que os sujeitavam espíritos acanhados, por demais imbuídos de uma intolerância ríspida.
Homens cultos, filhos de uma sociedade velha e curtida por longo trato de séculos, queriam esses forasteiros achar nos indígenas de um mundo novo e segregado da civilização universal uma perfeita conformidade de idéias e costumes.
Não se lembravam, ou não sabiam, que eles mesmos provinham de bárbaros ainda mais ferozes e grosseiros do que os selvagens americanos.
Desta prevenção não escaparam muitas vezes espíritos graves e bastante ilustrados para escreverem a história sob um ponto de vista mais largo e filosófico.
Entre muitos citarei um exemplo. Barlaeus referindo as justas que se faziam entre os selvagens para obterem em prêmio de seu valor a virgem mais formosa, não se esqueceu de acrescentar este comento - finis spectantium est voluptas.
Narrados com este pessimismo, as cenas da cavalaria, os torneios e justas não passariam de manejos inspirados pela sensualidade. Nada resistiria à censura ou ao ridículo.
Por igual teor, senão mais grosseiras, são as apreciações de outros escritores acerca dos costumes indígenas. As coisas mais poéticas, os traços mais generosos e cavaleirescos do caráter dos selvagens, os sentimentos mais nobres desses filhos da natureza são deturpados por uma linguagem imprópria, quando não acontece lançarem à conta dos indígenas as extravagâncias de uma imaginação desbragada.
Releva ainda notar que duas classes de homens forneciam informações acerca dos indígenas e dos missionários e a dos aventureiros. Em luta uma com outra, ambas se achavam de acordo nesse ponto, de figurarem os selvagens como feras humanas. Os missionários encareciam assim a importância da sua catequese; os aventureiros buscavam justificar-se da crueldade com que tratavam os índios.
Faço estas advertências para que ao lerem as palavras textuais dos cronistas citados nas notas seguintes não se deixem impressionar por suas apreciações muitas vezes ridículas. É indispensável escoimar o fato dos comentos de que vem acompanhado, para fazer uma idéia exata dos costumes e índole dos selvagens.