Pela margem do grande rio caminha Jaguarê, o jovem caçador. O arco pende-lhe ao ombro, esquecido e inútil. As flechas dormem no coldre da uiraçaba.
Os veados saltam das moitas de ubaia e vêm retouçar na grama, zombando do caçador.
Jaguarê não vê o tímido campeiro, seus olhos buscam um inimigo capaz de resistir-lhe ao braço robusto.
O rugido do jaguar abala a floresta; mas o caçador também despreza o jaguar, que já cansou de vencer.
Ele chama-se Jaguarê, o mais feroz jaguar da floresta; os outros fogem espavoridos quando de longe o pressentem.
Não é esse o inimigo que procura, porém outro mais terrível para vencê-lo em combate de morte e ganhar nome de guerra.
Jaguarê chegou à idade em que o mancebo troca a fama do caçador pela glória do guerreiro.
Para ser aclamado guerreiro por sua nação é preciso que o jovem caçador conquiste esse título por uma grande façanha.
Por isso deixou a taba dos seus e a presença de Jandira, a virgem formosa que lhe guarda o seio de esposa.
Mas o sol três vezes guiou o passo rápido do caçador através das campinas, e três vezes como agora deitou-se além nas montanhas da Aratuba, sem mostrar-lhe um inimigo digno de seu valor.
A sombra vai descendo da serra pelo vale e a tristeza cai da fronte sobre a face de Jaguarê.
O jovem caçador empunha a lança de duas pontas, feita da roxa craúba, mais rija que o ferro.
Nenhum guerreiro brandiu jamais essa arma terrível, que sua mão primeiro fabricou.
Lá estaca o jovem caçador no meio da campina. Volvendo ao céu o olhar torvo e iracundo, solta ainda uma vez seu grito de guerra.
O bramido rolou pela amplidão da mata e foi morrer longe nas cavernas da montanha.
Respondeu o ronco da sucuri na madre do rio e o urro do tigre escondido na furna; mas outro grito de guerra não acudiu ao desafio do caçador.
Jaguarê arremessou a lança, que vibrou nos ares e foi cravar-se além no grosso tronco da emburana.
A copa frondosa ramalhou, como as palmas do coqueiro ao sopro do vento, e o tronco gemeu até à raiz.
O caçador repousa à sombra de sua lança.
Salta uma corça da mata e veloz atravessa a campina.
Mais veloz a persegue gentil caçadora com a seta embebida no arco flexível.
Ergue-se Jaguarê.
Seu olhar ardente voou, sôfrego de encontrar o inimigo que lhe tardava.
Avistando uma mulher, a alegria do mancebo apagou-se no rosto sombrio.
Pela faixa cor de ouro, tecida das penas do tucano, Jaguarê conheceu que era uma filha da valente nação dos tocantins, senhora do grande rio, cujas margens ele pisava.
A liga vermelha que cingia a perna esbelta da estrangeira dizia que nenhum guerreiro jamais possuíra a virgem formosa.
A corça veio cair aos pés de Jaguarê, atravessada pela flecha certeira da jovem caçadora que a seguia de perto.
A virgem reconheceu o cocar da nação que na última lua chegara aos campos do Taari e da qual os pajés tinham dado notícia.
- Guerreiro araguaia, pois vejo pela pena vermelha de teu cocar que pertences a essa nação valente; se pisas os campos dos tocantins como hóspede, bem-vindo sejas; mas se vens como inimigo, foge, para que tua mãe não chore a morte de seu filho e tenha quem a proteja na velhice.
- Virgem dos tocantins, Jaguarê já soltou seu grito de guerra. Ele pisa os campos de teus pais como senhor. Tu és sua prisioneira. Não que vencer a corça tímida seja glória para o caçador; mas tu chamarás o inimigo que ele espera.
- Se o veado te der a sua ligeireza, jovem guerreiro, ela não te servirá senão para ver o rasto de meu pé antes que o vento o apague.
A linda caçadora desferiu a corrida pela imensa campina. Após ela se arremessou Jaguarê que muitas vezes vencera o tapir.
Mas a virgem dos tocantins corria como a nandu no deserto, e o caçador conheceu que seu braço nunca a poderia alcançar.
Travou do arco e o brandiu. A seta obedeceu-lhe, pregando no tronco do açaí a faixa que flutuava ao sopro do vento.
- A filha dos tocantins tem no pé as asas do beija-flor; mas a seta de Jaguarê voa como o gavião. Não te assustes, virgem das florestas; tua formosura venceu o ímpeto de meu braço e apagou a cólera no coração feroz do caçador. Feliz o guerreiro que te possuir.
- Eu sou Araci, a estrela do dia, filha de Itaquê, pai da grande nação tocantim. Cem dos melhores guerreiros o servem em sua cabana para merecer que ele o escolha por filho. O mais forte e valente me terá por esposa. Vem comigo, guerreiro araguaia, excede aos outros no trabalho e na constância, e tu romperás a liga de Araci na próxima lua do amor.
- Não, filha do sol; Jaguarê não deixou a taba de seus pais onde Jandira lhe guarda o seio de esposa, para ser escravo da virgem. Ele vem combater e ganhar um nome de guerra que encha de orgulho a sua nação. Torna à taba dos tocantins e dize aos cem guerreiros cativos de teu amor, que Jaguarê, o mais destemido dos caçadores araguaias, os desafia ao combate.
- Araci vai, pois assim o queres. Se fores vencido, ela guardará tua lembrança, pois nunca seus olhos viram mais belo caçador. Se fores vencedor, será uma alegria para a virgem do sol pertencer ao mais valente dos guerreiros.
A virgem disse e desapareceu na selva. Os olhos de Jaguarê seguiram o passo ligeiro da formosa caçadora, como o guaxinim que rasteja a zabelê.
Quando ela desapareceu o jovem caçador recostou-se ao tronco da emburana e esperou.
Do outro lado da campina assoma um guerreiro.
Tem na cabeça o canitar das plumas de tucano, e no punho do tacape uma franja das mesmas penas.
E um guerreiro tocantim. De longe avistou Jaguarê e reconheceu o penacho vermelho dos araguaias.
As duas nações não estão em guerra; mas sem quebra da fé pode um guerreiro, cansado do longo repouso, oferecer a outro guerreiro combate leal.
Quando o tocantim armou o arco, Jaguarê já tinha brandido o seu e disparado no ar uma seta, mensageira do desafio.
Respondeu o guerreiro disparando também uma flecha no ar, para dizer que aceitava o combate.
Então os dois campeões caminharam um para o outro com o passo grave e pararam frente a frente.
- Eu sou Jaguarê, filho de Camacã, chefe da valente nação dos araguaias, que vem de longe em busca da terra de seus pais. Minha fama corre as tabas e tu já deves conhecer o maior caçador das florestas. Mas Jaguarê despreza a fama do caçador; ele quer um nome de guerra, que diga das nações a força de seu braço e faça tremer aos mais bravos. Se tua nação te aclamou forte entre os fortes, prepara-te para morrer; se não, passa teu caminho, guerreiro vil, para que o sangue do fraco não manche o tacape virgem de Jaguarê.
- O caraíba guiou teu passo ao encontro de Pojucã, o matador de gente, guerreiro chefe da terrível nação tocantim, que enche de terror as outras nações. Há três luas, desde que fugiram espavoridos os bárbaros tapuias, que Pojucã não combate; e seu tacape tem fome do inimigo. Tu não és digno dos golpes de um guerreiro chefe; mas Pojucã se compadece de tua mocidade e consente em combater contigo. Terás a glória de ser morto pelo mais valente guerreiro tocantim. Os cantores de meus feitos lembrarão teu nome; e todos os mancebos de tua nação invejarão tua sorte.
- Jaguarê agradece a Tupã que te fez um grande guerreiro e o chefe mais feroz da grande nação tocantim, Pojucã, matador de gente. A tua morte será a primeira façanha do caçador araguaia e lhe dará um nome de guerra que se torne o espanto dos teus e o terror das outras nações.
Os dois campeões recuaram passo a passo até que se acharam a um tiro de arco.
Então soltaram o grito de guerra e se arremessaram um contra o outro brandindo o tacape.
Os tacapes toparam no ar e os dois guerreiros rodaram como as torrentes impetuosas no remoinho da Itaoca.
Os animais que passavam na floresta fugiram espavoridos, como se a borrasca ribombasse no céu.
Ainda uma vez encontraram-se os dois tacapes e voaram em lascas pelos ares.
- O ubiratã é forte; mas há outro ubiratã que lhe resiste. Como o braço de Pojucã é que não há outro braço. Já viste, jovem caçador, o veado nas garras da jibóia? Assim vais morrer.
- Se tu fosses a cascavel que somente sabe morder, Jaguarê te esmagaria a cabeça com o pé e seguiria seu caminho. Mas tu s a jibóia feroz; e Jaguarê gosta de estrangular a jibóia. Não morrerás pelo pé, mas pela mão do caçador. Lança teu bote, guerreiro tocantim.
Pojucã estendeu os braços e estreitou os rins de Jaguarê, que por sua vez cingiu os lombos do guerreiro.
Cada um dos campeões pôs na luta todas as suas forças, bastantes para arrancar o tronco mais robusto da mata.
Ambos, porém, ficaram imóveis. Eram dois jatobás que nasceram juntos e entrelaçaram os galhos ligando-se no mesmo tronco.
Nada os desprende; nada os abala. O tufão passa bramindo sem agitá-los; e eles permanecem quedos pelo volver dos tempos.
Um pajé que passou na orla da mata viu os lutadores e esconjurou-os pensando que eram as almas de dois guerreiros presos no abraço da morte.
Já a sombra se desdobrava pelo vale fora e o sol despedia-se dos cimos dos montes, sem que os campeões se movessem.
Por fim afrouxaram os braços e cada lutador recuou para contemplar seu adversário. Nenhum mostrava no rosto sombra de fadiga.
Conheceram que podiam lutar corpo a corpo, a noite inteira, sem que um prostrasse o outro.
- Tu és igual na valentia e na força ao guerreiro chefe da nação tocantim. Mas Pojucã não consente que haja na terra quem resista a seu braço. É preciso que tu morras, Jaguarê, para que ele seja o primeiro dos guerreiros que o sol alumia.
- Pojucã, matador de gente, guerreiro feroz da nação tocantim, Jaguarê deixou-te viver até este momento para saber se tu eras digno de dar-lhe um nome de guerra. Agora que te conhece como o primeiro dos guerreiros que existiram até este momento, ele quer que tua derrota seja a sua primeira façanha.
Disse e arrancando do tronco da emburana a lança de duas pontas caminhou outra vez para Pojucã.
- Esta arma que tu vês é a lança de duas pontas. Jaguarê fabricou-a do rijo galho da craúba, endurecido pelo fogo. Sua mão foi a primeira que a arremessou e teu corpo é o primeiro cujo sangue ela vai beber. Empunha a lança de duas pontas, guerreiro chefe, e ataca Jaguarê para receberes a morte dos valentes.
Pojucã repeliu a lança que o jovem caçador lhe apresentara.
- Jamais no combate um guerreiro tocantim atacará seu adversário desarmado; nem Pojucã precisa da lança. Ataca tu, Jaguarê, que não tens confiança em teu braço; o de Pojucã basta para te prostrar.
- O orgulho te cega, guerreiro chefe. A lança conhece Jaguarê que a inventou e lhe obedece como o arpão à corda do pescador. Aperta-a bem em tua mão robusta, e Jaguarê estará duas vezes mais armado do que tu, que não sabes manejá-la.
O chefe tocantim cruzou os braços.
- Toma a lança, Pojucã, se não queres que te chame covarde; pois tu sabes que Jaguarê não te matará desarmado, mas te abandonará como indigno de combater com o filho do maior guerreiro araguaia, o grande Camacã.
O chefe tocantim arrojou-se contra Jaguarê que travou-lhe dos pulsos, e outra vez os dois campeões ficaram imóveis.
A noite veio achá-los na mesma posição. Três vezes cessaram a luta, e de novo a travaram. Mas afinal se convenceram que nenhum derrubaria o outro.
Então Pojucã disse:
- Guerreiro araguaia, é preciso acabar o combate. A terra não chega para dois guerreiros como nós. Finca no chão a lança e caminhemos até a margem do rio. Aquele que primeiro chegar, será o senhor da lança e da vida do outro.
Assim fizeram os dois campeões. Chegados à margem do rio, dispararam a corrida. Ao mesmo tempo a mão de ambos tocou a haste da lança; mas Jaguarê, arremessado pelo ímpeto da desfilada, não pôde arrancar a arma que ficou na mão de Pojucã.
O guerreiro chefe enrista desdenhosamente a lança e caminha para Jaguarê. Não vai como o guerreiro que marcha ao combate, mas como o matador que se prepara para imolar a vítima.
- Guerreiro chefe, Jaguarê não te quer matar como a serpente que ataca o descuidado caçador. Dez vezes já, se quisesse, ele te houvera ferido com tua própria mão.
- Abandona a glória do guerreiro, que não é para ti, nhengaíba. Pojucã te concederá a vida e te levará cativo à taba dos tocantins para que tu cantes as suas façanhas na festa dos guerreiros.
- Cativo serás tu, mas não para cantar os feitos dos guerreiros. Tu servirás na taba dos araguaias para ajudar as velhas a varrer a oca.
Arremessou-se Pojucã avante e desfechou o golpe; mas a lança rodara e foi o chefe tocantim quem recebeu no peito a ponta farpada.
Quando o corpo robusto de Pojucã tombava, cravado pelo dardo, Jaguarê d'um salto calcou a mão direita sobre o ombro esquerdo do vencido, e brandindo a arma sangrenta, soltou o grito do triunfo:
- Eu sou Ubirajara, o senhor da lança, o guerreiro invencível que tem por arma a serpente. Reconhece o teu vencedor, Pojucã, e proclama o primeiro dos guerreiros, pois te venceu a ti, o maior guerreiro que existiu antes dele.
- Se meu valor, que serviu para aumentar a tua fama, merece de ti uma graça, não deixes que Pojucã sofra mais um instante a vergonha de sua derrota.
- Não, chefe tocantim. Tu me acompanharás à taba dos araguaias para narrar o meu valor. A fama de Jaguarê precisa de um prisioneiro como o grande Pojucã na festa da vitória.
- Tu és cruel, guerreiro da lança; mas fica certo que se tua arma traiçoeira feriu-me o peito, o suplício não vencerá a constância do varão tocantim, que sabe afrontar as iras de Tupã e desprezar a vingança dos araguaias.