VII
A GUERRA
Itaquê esperava sentado na cabana e cercado do carbeto dos anciões.
Jurandyr entrou; Aracy ficou na porta, orgulhosa do esposo que a conquistara e da admiração que ella ia inspirar aos guerreiros de sua nação.
Itaquê fallou:
— Quando o estrangeiro chegou á cabana de Itaquê, ninguém lhe perguntou quem era e donde vinha. O hospede é senhor.
«Mas agora o estrangeiro saiu vencedor do combate do casamento e conquistou uma esposa na taba dos tocantins.
«E' preciso que elle se faça conhecer; porque a filha de Itaquê, o pai da nação dos tocantins, jamais entrará como esposa na taba, onde habite quem tenha offendido a um só de seus guerreiros.»
O estrangeiro disse:
— Morubixaba, abarés, moacaras e guerreiros da valente nação tocantim, vós tendes presente o chefe dos chefes da grande nação araguaya.
«Eu sou Ubirajara, o senhor da lança; e o maior guerreiro depois do grande Camacan, cujo sangue me gerou. Si quereis saber porque tomei este nome, ouvi a minha maranduba de guerra.»
Ubirajara contou o seu encontro com Pojucan; o combate em que o venceu e a festa do triumpho, até o momento em que deixou a taba dos araguayas.
Terminou dizendo que no seguinte sol partiria, para assistir ao combate da morte, como promettera ao prisioneiro.
Ninguém interrompeu a maranduba de guerra. Ubirajara ouviu um gemido; mas não soube que rompera do seio de Aracy.
Itaquê arquejou como o rio ao peso da borrasca.
— Tu és Ubirajara, senhor da lança. Eu sou Itaquê, pai de Pojucan. Tenho em face o matador de meu filho; mas elle é meu hospede!
«Chefe dos araguayas, tu és um joven guerreiro; pergunta a Camacan que te gerou, qual deve ser a dôr do pai, que não póde vingar a morte do filho.
O grande chefe vergou a cabeça ao peito, como o cedro altaneiro batido pelo tufão.
Pojucan tinha sua taba mais longe, na outra margem do rio. Elle partira na ultima lua para rastejar a marcha dos tapuias; e voltava senhor do caminho da guerra quando encontrou Ubirajara.
Seu pai e os guerreiros de sua taba pensavam que elle buscava na floresta o caminho da guerra. Mal sabiam que a essa hora esperava prisioneiro na taba dos araguayas o combate da morte.
Anciões e guerreiros emmudeceram. Todos respeitaram a dôr do pai e não ousavam perturbal-a.
Jacamim, a mãe de Pojucan, approximara-se. O grande chefe ouviu seu gemido.
— A esposa de Itaquê não chora na presença do matador de seu filho.
Á voz do esposo, a mãe teve força para esconder no seio sua tristeza e mostra-se digna do grande chefe dos tocantins.
Ubirajara fallou:
— A vingança é a gloria do guerreiro; Tupan a deu aos valentes. Ubirajara venceu Pojucan em combate leal e aceita o desafio de Itaquê e de todos os chefes tocantins.
— Tu és meu hospede, emquanto Itaquê brandir o grande arco da nação tocantim, ninguém offenderá o amigo de Tupan na taba de seus guerreiros.
Dizendo assim, o grande chefe ergueu-se e trocou com o estrangeiro a fumaça da despedida.
— Parte. O sol que viu o estrangeiro na cabana hospedeira o acompanhará amigo; mas com a sombra da noite, mil guerreiros, mais velozes que o nandú, partirão para levar-te a morte.
Ubirajara tomou suas armas e disse:
— O hospede vai deixar tua cabana, chefe dos tocantins; tu verás chegar o guerreiro inimigo.
Itaquê seguiu o estrangeiro até o terreiro;
em torno delle se reuniram os abarés, os moacaras e os guerreiros para assistirem á partida.
Ubirajara caminhou com o passo lento e grave até o fim da taba.
Chegado alli, tornou rápido á entrada da cabana e retrocedeu, apagando no chão o vestígio de seus passos.
A nação tocantim o observava immovel.
Por fim o estrangeiro postou-se no centro da ocara e com o formidavel tacape vibrou no largo escudo um golpe, que repercutiu pela taba como o estrondo da montanha.
— O hospede passou o limiar da cabana que o linha acolhido e apagou seu rasto na taba dos tocantins.
«Quem está aqui é um guerreiro armado, que pisa, senhor, a taba de seus inimigos.
«Itaquê, morubixaba dos tocantins, Ubirajara, o senhor da lança, grande chefe dos araguayas, te envia a guerra na ponta da sua setta.»
Quando o guerreiro acabou de proferir estas palavras, Itaquê levantou os olhos e viu cravada na figura do tocano, que era o symbolo da nação, a setta de Ubirajara.
Mil arcos se ergueram, mil tacapes brandiram. A voz possante de Itaquê abateu as armas de seus guerreiros.
Disse o morubixaba:
— A lei da hospitalidade é sagrada. A colera do estrangeiro não deve perturbar a serenidade do varão tocantim.
Depois voltou-se para o inimigo:
— Ubirajara, grande chefe dos araguayas, Itaquê, o pai da poderosa nação tocantim, acceita a guerra que tu lhe enviaste. Recebe em teu escudo o penhor do combate.
A corda do grande arco da nação tocantim brandiu, e a setta de Itaquê mordeu o escudo de Ubirajara.
— Vae buscar teus guerreiros e nós combateremos á frente das nações.
— Ubirajara combaterá até que lhe restituas a esposa; assim como elle a conquistou a seus rivaes, saberá conquistal-a a ti e á tua nação.
O chefe araguaya partiu. No seio da floresta encontrou Aracy que o esperava.
A formosa virgem fôra á cabana do casamento buscar a rêde nupcial e preparar-se para acompanhar o esposo.
— Ubirajara parte; mas antes de cinco soes elle estará aqui para te conquistar á tua nação.
— A esposa te acompanha. Teu braço valente já a conquistou; e ella entregou-se a seu senhor. Aracy te pertence; deves leval-a.
A virgem tocantim desejava seguir Ubirajara á taba dos araguayas. Fallava em sua alma a ternura da esposa e da irmã.
Partindo, ella unia-se para sempre a seu guerreiro e esperava que o amor o moveria a salvar Pojucan.
Ubirajara pensou e disse:
— Si Ubirajara tivesse rompido a liga de Aracy, ella era sua esposa; e ninguém a arrebataria de seus braços. Mas a virgem tocantim não póde abandonar a cabana onde nasceu, sem a vontade de seu pai.
Aracy suspirou:
— Ubirajara vai deixar a lembrança de Aracy nos campos dos tocantins. Jandyra o espera na taba dos araguayas; e lhe aguarda o seu sorriso de mel.
— A luz de teus olhos, Aracy, estrella do dia, foi buscar Ubirajara na taba dos seus, onde resoavam os cantos de seu triumpho, e o trouxe á tua cabana.
«Quando elle partiu encontrou Jandyra, e para que a filha de Magé não o acompanhasse a deu a Pojucan, como esposa do tumulo.
— O goaná do lago, vôa longe, longe, para banhar-se nas aguas da chuva que alagaram a varzea; mas logo volta ao seu ninho, e não se lembra mais da moita onde dormiu.
— Ubirajara é um guerreiro: elle não aprende com o goaná do lago, que foge do perigo, mas com o gavião, grande chefe dos guerreiros do ar, que nunca mais abandona o rochedo onde assentou a sua oca.
Se Ubirajara amasse a esposa, também não a abandonaria. Os braços de Aracy já cingiram o collo de seu guerreiro. O tronco não desprende de si a baunilha que se entrelaçou em seus galhos.
Ubirajara calcou a mão sobre a cabeça de Aracy:
— Itaquê respeitou a lei da hospitalidade no corpo de Ubirajara; Ubirajara não deixará a traição na terra hospedeira.
«Aracy não deve querer para esposo um guerreiro menos generoso do que seu pai.»
A virgem emmadeceu. Ella sabia que a honra é a primeira lei do guerreiro.
Antes de partir, o chefe consolou a esposa:
— Ubirajara vai pedir ao gavião suas azas para voltar ao seio de Aracy. Elle virá á frente de sua nação, conduzido pela luz de teus olhos.
«As outras mulheres são o premio de um combate entre os servos de seu amor. Aracy terá essa gloria; que ella será o premio da maior guerra que já viram as florestas.»
O chefe araguaya pôz as mãos nos hombros de Aracy; duas vezes uniu o seu ao rosto delia, por uma e outra face, para exprimir que nada podia separal-os.
Quando o guerreiro desappareceu na floresta, Aracy caminhou para a cabana do esposo, que ficára triste e solitaria.
A virgem fechou a porta; sentou-se na soleira e cantou sua tristeza.
Dois sóes tinham passado; e viera a noite.
A ultima estrella se apagava no céo, quando Ubirajara pisou os campos dos araguayas.
Sua mão robusta, vibrando a clava, feriu o trocano. A voz da nação araguaya derramou-se ao longe pelo valle, como o estrondo da montanha que arrebenta.
Com o primeiro raio do sol que subia o pincaro da serra, chegaram á grande taba os chefes das cem tabas araguayas, com todos seus guerreiros, convocados á ocara da nação.
Ubirajara mandou que Pojucan, o prisioneiro, viesse á sua presença:
— Vê o mar de meus guerreiros que enche a terra, como as aguas do grande rio quando alaga a várzea. Elles esperam o aceno de Ubirajara para inundarem teus campos.
«A nação tocantim carece neste momento do braço de seus maiores guerreiros; vai levar-lhe o soccorro de teu valor, para que se augmente a gloria de Ubirajara, seu vencedor.
Tu és livre, Pojucan; parte e vôa, que a guerra dos araguayas te segue os passos.
O semblante do filho de Itaquê ficou sombrio:
— Pojucan é um chefe illustre; não merece esta deshonra. Tu lhe prometteste a morte dos bravos. Elle exige o combate.
O chefe araguaya contou a maranduba da hospitalidade:
— Ubirajara não sabia que Pojucan era filho de Itaquê; pois elle nunca pisaria como hospede a cabana de um guerreiro, a quem tivesse decepado um filho.
— É preciso que recuperes a liberdade para que não se diga que Ubirajara surprehendeu a hospitalidade do grande chefe dos tocantins.
Pojucan não respondeu. Elle reconhecera que a honra de seu vencedor exigia sua volta a taba dos seus.
— Parte. Nós combateremos á frente das nações. Ubirajara pertence a Itaquê; mas depois delle terás a gloria de ser vencido outra vez por este braço.
— Ubirajara é um grande chefe e maior guerreiro. Si Tupan não consente que Pojucan seja vencedor, elle não quer maior gloria do que a de morrer combatendo Ubirajara.
Pojucan foi á cabana de seu vencedor buscar as armas. Ubirajara arrimou-se ao tacape, como o rochedo que se apoia ao tronco do ipé, e meditou.
Quando passou o chefe tocantim que voltava á sua taba, Ubirajara levantou a cabeça e disse:
— Os olhos de Ubirajara te acompanham: tu és irmão de Aracy e vaes para junto della. Dize á estrella do dia que seu esposo está com ella.
O conselho dos abarás se reunira para meditar sobre a guerra. O velho Magé, a quem irritava o desapparecimento da filha, reparou que sem o voto do carbeto se convocasse a nação.
Veiu um mensageiro chamar o grande chefe para o carbeto. Ubirajara chegou. Antes que fallasse a voz dos anciões, o guerreiro levantou o arco e disse:
— O conselho dos anciões governa a taba e medita nas cousas da paz. Toda a nação respeita sua prudência e sabedoria.
«Mas emquanto Ubirajara brandir o grande arco dos araguayas, tem a guerra fechada em sua mão.
«Quando elle soltar o grito do combate, a voz que fallar da paz, emmudecera para sempre, ainda que venha da cabeça do abaré que a lua já embranqueceu.
«Quem não quizer assim, venha arrancar da mão de Ubirajara este arco que elle conquistou por seu valor.»
Os abarés estremeceram. Mas o carbeto meditou e decidiu que a maior gloria e sabedoria da nação era ter o seu grande arco de guerra na mão de unv chefe, como Ubirajara.
Camacan tratou com os anciões ácerca da defesa das tabas; e o grande chefe abriu o caminho da guerra.
Quando Ubirajara desdobrou sua guerra pela margem do grande rio, elle viu que uma nação tapuia preparava-se para assaltar a taba dos tocantins.
O grande chefe tocou a inubia, cuja voz chamava o joven Murinhem, primeiro dos cantores araguayas.
Correu nhengaçara á presença do grande chefe; e delle recebeu a mensagem que devia levar ao campo inimigo.
Os cantores eram respeitados por todas as nações das florestas, como os filhos de alegria; porque serviam de mensageiros entre as nações em guerra.
Elles penetravam no campo inimigo, entoando o seu canto de paz; e nenhum guerreiro ousava offender aquelle a quem Tupan concedera a fonte da alegria.
Murinhem atravessou rapido a campina e apresentou-se em frente de Canicran, chefe dos tapuias.
— Ubirajara, o senhor da lança, que empunha o arco da poderosa nação araguaya, te manda, a ti, quem quer que sejas, e a todos quantos te obedecem, a sua vontade.
O tapuia rugiu; mas seus olhos viam o mar dos guerreiros araguayas que o cercava e na frente o grande vulto de Ubirajara, semelhante ao rochedo sombrio e immovel no meio dos borbotões da cachoeira.
— Os guerreiros de Canicran só conhecem a vontade do seu chefe; e Canicran affronta a colera de Tupan e das nações que elle gerou. Dize, mensageiro, o que pede Ubirajara ao grande chefe dos tapuias.
— Ubirajara te manda que encostes o tacape da guerra. A nação tocantim aceitou a sua flecha de desafio e elle não consente que ninguém combata seu inimigo, antes de o ter vencido.
— Torna e dize ao grande chefe araguaya, que Canicran veio trazido pela vingança. Pojucan, um dos chefes tocantins penetrou, em sua taba e incendiou a cabana do pagé, que foi devorado pelas chammas.
«Ubirajara é um grande chefe; elle que diga si o pai da nação póde soffrer tão dura affronta. Canicran escutará voz de sua amizade.
O chefe tapuia tomou uma de suas flechas; arrancou o farpão e deu ao mensageiro a haste emplumada com as azas negras do anun, que era o emblema guerreiro da nação.
— Toma; entrega ao grande chefe araguaya o penhor da alliança.
Murinhem partiu e foi á taba dos tocantins levar igual mensagem. Itaquê escutou o que lhe mandava Ubirajara e respondeu.
— Antes que Itaquê trocasse com Ubirajara a setta do desafio, Pojucan tinha levado a guerra á taba dos tapuias.
— Canicran veio trazido pela vingança; e a nação tocantim não póde recuzar o combate. Mas Itaquê sabe honrar seu nome: si Ubirajara quer, elle combaterá juntamente os deis inimigos.
O mensageiro tornou ao campo dos araguayas com as respostas dos dois chefes. Ubirajara ouviu e meditou.
— Escuta a vontade de Ubirajara para leval-a aos inimigos. O grande chefe araguaya não roubará a Canicran a gloriada vingança; elle respeita a honra da nação tapuia, mas rejeita sua alliança. Restitue o penhor que recebeste.
«Itaquê póde aceitar o combate que Pojucan foi buscar; Ubirajara não offende o nome de um guerreiro, ainda mais de um morubixaba e do pai de Aracy.
«O chefe dos araguayas não carece de auxilio para triumphar de seus inimigos: deseja que a nação tocantim derrote aos tapuias, para ter elle a gloria de vencer ao vencedor.
«Si Itaquê não póde repellir os tapuias, Ubirajara toma a si castigar os bárbaros; e depois de varrel-os das florestas, combaterá as duas nações.
«Si os tocantins necessitam de alliados para resistir ao impeto dos araguayas, Ubirajara espera que Itaquê os chame e que elles venham.
«Murinhem fallará assim a um e outro chefe; a ambos dirá que a cabana onde estiver Aracy fica sob a guarda de Ubirajara; quem nella penetrar como inimigo soffrerá a morte vil do covarde.
O guerreiro deixou a voz do chefe e fallou com a voz do esposo:
— A' Aracy levarás o canto de amor de Ubirajara. Tu lhe dirás que arme a rêde nupcial e não deixe nossa cabana, emquanto Ubirajara não a fôr buscar.
«Conta-lhe tambem que o kanitar que ella teceu, ainda não deixou a cabeça de seu guerreiro e ha de acompanhal-o sempre.