VIII

A BATALHA


A um lado da immensa campina move-se a multidão dos guerreiros tocantins, de outro lado a multidão dos guerreiros tapuias.

As duas nações se estendem como dois lagos formados pelas grandes chuvas, que se trasformam em rios e atravessam o valle.

De um e outro campo levantou-se a pocema guerreira; e os dois povos arremettendo travaram a batalha.

Itaquê achou-se em frente de Canicran. Ambos se buscavam; dez vezes tinham combatido; vencedores ambos, nenhum fôra vencido.

Emquanto viverem os formidaveis guerreiros, não é possivel quebrar a flecha da paz entre as duas nações.

Era preciso que um delles morresse para que o vencedor encostasse o tacape do combate e désse repouso á sua nação para reparar os estragos da guerra.

Quando os dois chefes se encontraram, os guerreiros de um e outro campo ficaram immoveis, contemplando o pavoroso combate.

Ubirajara de longe, apoiado em seu grande arco, admirava os dois guerreiros e pensava qual não seria o seu orgulho em vencel-os ambos.

Durava a peleja o espaço de uma sombra. Em torno dos chefes lastravam o chão os tacapes e escudos que tinham espedaçado aos golpes de cada um.

Immoveis no mesmo lugar, só agitavam a cabeça e os braços; semelhante a dois candores, que, de garras presas aos pincaros do rochedo, se dilaceram com o bico adunco.

Um rugido espantoso atroou pela campina, que estremeceu a batalha e rodou pelas profundezas da floresta.

Pahan, a setta, era o ultimo filho de Canicran. Ainda corumim, peleja ao lado do irmão, o guerreiro Creban, cujo hombro mal alcançava com o braço.

Elle tinha nos olhos a vista da gaivota e nas settas do seu arco, feitas de espinhos de ouriço, a velocidade e a certeza do vôo do guanumby.

Quando caçava na floresta, divertia-se em matar as motucas traspassando-as com suas flechas, que voavam mais rapidas e certeiras que as vespas venenosas.

Pahan saltara sobre os hombros do guerreiro Creban para assistir ao combate. Admirando o valor de Canicran, teve orgulho e inveja do pai.

Itaquê desfechára tão formidável golpe, que o tacape e escudo de Canicran se espedaçára em suas mãos, deixando-o á mercê do inimigo.

O chefe tocantim arrojou-se e já sua mão descia sobre a espadua do tapuia para fazel-o prisioneiro.

O arco de Pahan sibilou duas vezes. Os olhos de Itaquê, os olhos do varão forte que nunca uma lagrima humedecera, choraram sangue.

As settas do corumim tinham vasado as pupillas do fero guerreiro, cuja vista era raio. Assim a Jandaia róe o grello do procero coqueiro.

Foi então que Itaquê soltou o rugido pavoroso que fez tremer a terra. Mas o grito de espanto sossobrou no peito dos guerreiros e rompeu em um grito de horror.

Itaquê estendera os braços, hirtos como duas garras de condor. A mão direita abarcou o pennacho e a cabelleira de Canicran, a esquerda entrou pela bocca do tapuia e travou-lhe o queixo.

Separaram-se os braços do guerreiro cego e a cabeça de Canicran abriu-se como um côco que se fende pelo meio.

Agitando no ar o craneo sangrento como um maracá de guerra, Itaquê arrojou-se contra os inimigos, buscando a morte que lhe fugia.

Quando o sol entrou, não havia na campina a sombra de um tapuia.

O velho heroe voltou á cabana conduzido por Pojucan:

— Tupan viu que Itaquê não podia ser vencido pela mão dos homens; e quiz vencel-o elle mesmo pela mão de um menino.

Quando Ubirajara viu o exito do combate, lamentou que dos dois grandes guerreiros não restasse nenhum, para que elle o vencesse.

Seus olhos descobriram Pahan que fugia no meio dos destroços de sua nação. Ergueu a mão, mas não chegou a retezar a setta.

A aguia não persegue a andorinha. Era indigno de um guerreiro, quanto mais de um chefe, empregar seu valor contra um menino.

O chefe chamou á sua presença Tubim, um dos jovens caçadores, que tinham acompanhado a guerra para prover o alimento.

Tubim tem azas de abelha; si elle alcançar o corumim tapuia que eu estou olhando, Ubirajara lhe dará o nome dè Atjeguar.

O joven caçador seguiu o olhar do chefe e sumiu-se num turbilhão de poeira. Quando os vagalumes começaram a luzir no escuro da matta, elle estava de volta no campo dos araguayas; e trazia o corumim fechado nos braços.

Nessa mesma noite, Tubim recebeu o nome de Abeguar, senhor do vôo, em honra da façanha que tinha realisado.

Os cantores entoaram seu louvor; e o joven caçador teve a gloria de receber os applausos dos moacaras de sua nação e de um chefe como Ubirajara.

Ao raiar da manhã, Murinhem foi á taba dos tocantins, acompanhado por vinte guerreiros que conduziam o corumim.

Quando chegou em frente á cabana do grande chefe, o cantor viu Itaquê no terreiro sentado em uma sapopema.

O guerreiro fitava os olhos no céo, onde o calor lhe dizia que estava o sol. Mas não encontrava a luz que para sempre o abandonara.

Então o velho guerreiro abaixava os olhos para a terra, como si buscasse o lugar do repouso.

Quando soaram longe os passos dos estrangeiros, o chefe alongou a fronte para ver pelo ouvido o que os olhos lhe recusavam.

Murinhem chegou e disse:

— Ubirajara envia a Itaquê o resto da vingança. Este é Pahan, o filho de Canicran. Elle te roubou a vista; mas não salvou o pai de tua mão terrível. Faze do corumim tapuia um mancebo tocantim; e elle será a luz de teus olhos e caminhará na frente do grande chefe para abrir-lhe o caminho da guerra.

Pahan avançou:

— O filho de Canicran jámais será escravo; nasceu tapuia e tapuia morrerá, como o grande chefe que o gerou. Emquanto o ouriço viver nas florestas, elle roubará seus espinhos para furar os olhos dos tocanos.

Itaquê pousou a palma da mão na cabeça do menino:

— O corumim que ama seu pai é filho de Itaquê. Tu és livre, Pahan; vai caçar o ouriço. Quando fôres um guerreiro, acharás cem mancebos do sangue de Itaquê para castigarem tua audacia.

O chefe voltou-se para o cantor:

— Tupan tirou a luz dos olhos de Itaquê; mas augmentou a força de seu braço. Ubirajara terá para combatel-o um inimigo digno do seu valor.

— Murinhem tornou ao chefe araguaya com esta resposta.

Quando partia o cantor, chegaram á cabana de Itaquê os abarês da nação tocantim.

Os anciões sentaram-se em torno do guerreiro cego; e, bebendo a fumaça da sabedoria, formaram o carbeto.

Fallou Guaribú:

— O grande arco da nação carece de uma mão robusta para brandir sua corda; e de um olho seguro para dirigir sua setta. Itaquê é o maior guerreiro das florestas; seu nome faz tremer ao mais valente dos inimigos; seu braço fére como o raio. Mas a luz fugiu de seus olhos e elle não póde mais abrir o caminho da guerra.

O velho chefe ergueu-se com o passo tropego. Alcançando o grande arco dos tocantins abraçou-se a elle e fallou-lhe:

— Quando Itaquê te recebeu da mão do grande Jovary elle pensava que só a morte o separaria de ti, para transmittir-te a um guerreiro de seu sangue. Mas Itaquê ficou na terra, como um tronco levado pela corrente, que não sabe onde vae.

Um esguicho de sangue saltou dos buracos, onde o velho tivera os olhos. Era a lagrima que a desgraça lhe deixára.

Os abarés meditaram. Guaribú fallou de novo:

— O grande arco da nação que tu recebeste do grande Javary, teu pai, não te abandonará. Elle fica em tua mão invencivel; haverá outro arco na mão do mais valente guerreiro, que abrirá o caminho da guerra. Mas, em emquanto Itaquê viver, sua voz governará a nação que elle defendeu com seu braço.

O semblante do velho chefe cobriu-se de um sorriso, como o negro rochedo sobre o qual desliza um raio de luar.

— Pais da sabedoria, abarés, olhai aquelle jatobá que se levanta no meio da campina e que eu só posso ver agora na sombra de minha alma.

«Elle tem multas raizes que o sustentam nos ares, tem muitos galhos que o cercam e estendem ao longe a sua rama. Mas o tronco é um só.

«As grossas raizes são os abarés que sustentam o chefe com o seu conselho. Os galhos fortes são os moacaras que cercam o chefe e geram a multidão de guerreiros mais numerosa que as folhas das arvores. O tronco é o chefe da nação; si elle se dividir o jatobá não subirá ás nuvens nem terá forcas para resistir ao tufão.

«O lugar de Itaquê é no conselho. O ultimo dente de seu collar de guerra foi o que elle arrancou da bocca de Canicran. Convocai os guerreiros e o que for mais forte e mais valente empunhe o grande arco da nação.

O trocano chamou a nação ao carbeto. Vieram os moacaras, conduzindo suas tribus.

O velho Itaquê contava pelos passos os guerreiros que chegavam. O grande arco da nação, que elle segurava direito, parecia um dos esteios da cabana e tinha a corda tão grossa como a da rêde do chefe.

Os mais famosos guerreiros tocantins se apresentaram para disputar o grande arco; muitos conseguiram vergal-o; mas a setta não partiu.

Itaquê escutava com o ouvido attento; o som delle conhecido não feriu os ares.

— Onde está Pojucan? perguntou o velho chefe.

O valente guerreiro do sangue de Itaquê estava de parte, grave e taciturno. Algum motivo o separava do arco chefe, que elle devia ser o primeiro a disputar.

— Teu filho te escuta; respondeu.

— Empunha o arco chefe; si ha um guerreiro tocantim que possa conquistal-o esse deve ser do sangue de Itaquê.

Pojucan recebeu o arco. Fincando nelle os pés, o guerreiro arrojou-se para traz como a giboia quando se enrista para armar o bote.

A setta partiu e foi cravar a cabeça de um chefe tapuia, fincada na estaca, á entrada da taba.

Itaquê curvara a cabeça. Elle ouviu brandir a arma; não era porém aquelle o zunido da corda do arco, quando o vergava sua mão possante.

Pojucan, depôz o arco chefe aos pés de Itaquê e disse:

— Pojucan mostrou que em suas veias corre o sangue generoso de Itaquê. Mas o grande arco peza em sua mão. Só ha um guerreiro na terra que o possa brandir como Itaquê; e esse não cinge a fronte com o cocar das pennas de tocano.

— Pojucan negou a Itaquê esta ultima consolação. O arco invencível do grande Tocantim que foi o pai da nação vae sahir de sua geração. Tocantim o transmittiu a seu filho Javary, que me gerou; mas eu não soube gerar com seu sangue um guerreiro digno delles.