III

 

Maio 1871

O sr. Anthero de Quental abriu no dia 19 as conferencias domocraticas no Casino. É a primeira vez que a revolução, sob a sua for. ma scientifica, tem em Portugal a palavra. O mundo revolucionario, ou antes, na sua feição partidaria e politica, o mundo republicano, tinha-se até hoje manifestado muito indistinctamente, — por alguma voz isolada que sem écho se extinguia no silencio da opinião, ou pelas agitações, mais suspeitadas que verificadas, de especuladores e de intrigantes. As vezes meia folha de papel era distribui. da gratis, com alguns insultos aos ministros, ao rei, e a um ou outro regedor. Outras vezes apparecia um jornal, que, em tom lyrico, cantava a fraternidade e os seus encantos, dirigia apostrophes ao rochedo de Guernesey, citava o Golgotha em questões de fazenda, e voltando-se para o rei dizia-lhe: — Tu! Por vezes ainda um jornal de capa verme. de outras cores, a propósito de liberdade insultava senhoras, e, sob pretexto de ser um jornal de combate, era um jornal de difamação. Havia outros republicanos: todos os jornais na oposição se dão vagamente esse ar, falam então no suor do povo... (Imaginarão que a aristocracia não sua? Como se iludem!) O Jornal do Comércio, representante da burguesia liberal, foi algum tempo republicanos e dizia aos tiranos coisas desagradáveis que deviam magoar Napoleão III, o defunto Calígula, e outros ex-opressores. O partido do Sr. Marquês de Angeja parece que também tendia para republicano; pelo menos assim o pensavam os criados do Martinho. Alguns reformistas têm dito que o sr. bispo de Viseu, bem no seu fundo — é republicano. Corre que outros chefes de partido o são também. E isto vai numa tal contaminação democrática, que o único conservador constante que nos fica — é Danton!

Tal era o partido republicano, que causava hilaridade! Por isso o espanto é grande, vendo aparecer homens que apresentam a revolução serenamente — como uma ciência a estudar. Não o fariam mais tranquilamente se se tratasse de anatomia.


As conferências hão-de encontrar resistências. Em primeiro lugar o nosso público inteligente e literário, ama sobretudo o bel-esprit, a oratória, a frase. Moda peninsular. Ora as conferências pela sua natureza científica e experimental — exigem justamente o contrário dos aparatos retóricos. São a demonstração, não são a apóstrofe; são a ciência, não são a eloquência. As declamações têm tirado à democracia o seu carácter privativo de realidade e de ciência. Temos ouvido cantar a democracia, berrá-la, soluçá-la: é tempo de a vermos demonstrar. Deixemos no bengaleiro a nossa perpétua inclinação nacional de escutar odes — e entremos só com a tendência humana de resolver problemas.

A revolução aparece ao mundo conservador, como o cristianismo ao mundo sofista. Os solistas tinham tomado o partido de rir daqueles nazarenos. É o que faz agora o periódico a Nação, quando se trata da revolução. Não és original, ó Nação!

Tenhamos bom senso! Escutemos a revolução; e reservemo-nos a liberdade de a esmagar — depois de a ouvir.

Uma coisa que a compromete é ela falar em nome do proletário. O proletário pretende explicar-se; quer por um lado contar a sua miséria, por outro provar o seu direito. O simples bom senso indica que se deixe falar o proletário. Silêncio ao pobre! gritava Lamennais em 48. Esta palavra horrorosa, que é um dobre a finados pela dignidade humana, inspira ainda as instituições. — Santo Deus! Parece que lhes dói a consciência, às instituições! Deixemos falar o proletário. Que receiam? Não temos os nossos exércitos, os nossos parlamentos, a nossa polícia? Deixemo-lo falar.


Desdigamo-lo depois quando ele mentir, refutemo-lo quando errar. É muito mais cómodo encontrarmo-nos com quem represente o proletário, sossegadamente, na sala do Casino, do que encontrarmos o próprio proletário mudo, taciturno, pálido de ambição ou de fome, armado de um chuço à embocadura de uma rua. Fazer conferências — se bem atentamos neste acto — reconhece-se que é uma coisa diferente de fazer barricadas. É por lhe não permitirem fazer conferências que o proletário parisiense faz fogo. O proletário inglês não espingardeia os seus governos, pela razão de que fala nos meetings. E, quando aqueles que falam no poder os representam mal, os operários ingleses pedem-lhes contas nos seus comícios, cobrem-nos de impropérios, e atiram-lhes com cebolas à cara. Se a vítima tenta fugir ou fazer resistência à cebola ou ao insulto, um policeman segura-o gravemente pela gola da casaca, e convida em nome da moralidade, o procurador do povo, a esperar pelos restos da injúria e da hortaliça.


Temos ainda que, actualmente, o grande carácter das conferências é, segundo nos parece, a oportunidade. Há muito tempo que a opinião pública as pedia. O quê! há aí alguém que o negue?

Não o nega decerto o parlamento onde todos os dias ministros, maiorias e oposições, dizem que o País está desorganizado.

Não o nega decerto a imprensa, que todos os dias declara que o sistema constitucional está desautorizado! (Diário Popular, Jornal do Comércio, Gazeta, etc., passim).

Não o nega a opinião, que todos os dias exclama, com uma certa convicção desleixada, nos cafés, nas ruas, nos passeios, nos estancos:

— Ora! isto está podre!

Quando a opinião, tão geral, diz que um país está perdido dentro de um sistema, coloca-se por essa mesma confissão fora do sistema, e deseja, por uma propaganda nova, uma reforma social.

Sejamos lógicos. As Farpas não são o legitimismo, nem a república, nem o constitucionalismo, nem o sebastianismo. Desejam simplesmente ser a lógica e o bom senso.

Vejamos: não tem a imprensa confessado todos os dias a podridão do País e a desorganização das suas forças vivas? (Jornais políticos, passim).

Ou são sinceros, ou não. Se não são, então faltam duplamente à dignidade, porque desconsideram os outros enganando-os, e desconsideram-se a si mentindo. São perturba dores de profissão: querem lançar, de caso pensado, o cepticismo no espírito público, para o interesse da sua intriga. Pertencem portanto ao ministério público. — Se são sinceros então devem estar radiantes de alegria, porque têm essa propaganda nova que implicitamente pediam.

Não vemos nós os ministérios dissolvendo câmaras sobre câmaras, depois de lhes experimentarem um momento a inteligência — Outra, que esta não presta!?

Não vemos os partidos, em quem deve residir a consciência do Estado, derrubarem todos os dias ministérios, como um homem que num chapeleiro experimenta chapéus — Outro, que este não serve?

E vós, jornais políticos, não confessais vós todos os dias a impotência dos vossos políticos? Não vos tendes dito uns aos outros os extremos insultos? Não vos tendes destruído uns pelos outros? Apelamos para ti, leitor de bom senso. Não é verdade que o Diário Popular tem dito, dentro do sistema, que o Sr. Fontes é incapaz de organizar o  País? É. — Não é verdade que a Revolução tem provado à saciedade, dentro do sistema, que o sr. bispo de Viseu é incapaz de organizar o País? É. — Não é verdade que a Gazeta do Povo tem provado que ambos eles são incapazes? E não é verdade que a Revolução e o Diário Popular têm afirmado uniformemente que o incapaz é o Sr. Braamcamp? É. Por consequência parece que estais inutilizados uns pelos outros. Se um fala verdade, todos a falam. Se um a falseia, todos a falseiam. Portanto ou tendes de aceitar a vossa condenação, ou tendes de confessar a vossa falsidade.

Qual é a conclusão? A necessidade de uma propaganda nova. É o que a imprensa está pedindo há longo tempo; é o que o Casino enfim lhe fornece! Muito feliz ainda que lhe não apareça com chuços, tocando a rebate pelas ruas, e que lhe apareça apenas com ideias, e tocando a rebate através das consciências. Todos os partidos estão pois interessados nesta propaganda. Quem fala depois do Sr. Antero de Quental? Deve ser o sr. bispo de Vizeu!