V
Maio 1876.
O sr. bispo do Algarve, patriarcha, publicou uma pastoral.
Ergueu-se a este respeito um debate na camara, em que se falou consideravelmente em placet e non placet. A opinião liberal irritou-se vendo o sr. bispo do Algarve lamentar com azedume a extincção do poder temporal. A opinião liberal não ama o poder temporal, e entende que o Papa se deve occupar unicamente dos negocios do céo. A opinião liberal faz a policia do espiritualismo.
Ora affirmar que o papado pode viver exclusivamente do poder espiritual é uma patente má fé (não é o caso da opinião liberal), ou um prurido revolucionario (não é tambem o caso da honrada maioria constitucional). O que é então? Uma falta notavel de principios e de logica.
O papado podia viver sem o temporal quando a religião lhe dava o dominio em todas as consciencias, e fazia d’elle o vicariato de Deus. us.
Escusamos de citar épocas históricas. O Papa tinha então também um domínio temporal — mas como uma jóia da sua tiara, não como condição vital da sua supremacia.
Não foi por possuir Roma e mais uns pedaços de terra que Gregório VII, Urbano II,
Inocêncio III se afirmaram tão grandes: as terras, de conquista ou de doação, eram apenas a glorificação do seu pontificado. O verdadeiro império tiravam-no eles da espontaneidade da fé católica e da força da unidade.
Desde que a fé se extinguiu, que por toda a parte o Estado fez cisão com a Igreja, e que a religião de dominadora passou a consentida — o que sustenta o catolicismo e a soberania espiritual? É a soberania temporal, o reino de Roma. Se o papado perder para sempre Roma, símbolo visível da supremacia religiosa — que fica? Um vago e indefinido interesse espiritual, falando em nome da fé que ninguém possui, e da tradição de S. Pedro que ninguém já sabe em que consiste.
O catolicismo degenera assim numa espécie de protestantismo — equilibrado entre o calendário e a indiferença.
De modo que a opinião liberal, que no parlamento protestou ser católica apostólica romana, censurando a defesa do poder temporal, censura a defesa do catolicismo e a defesa da unidade. E através dos seus protestos ortodoxos mostra-se inimiga do catolicismo — por consequência inimiga do cristianismo, porque o catolicismo é a expressão mais lógica do cristianismo — por consequência inimiga da religião, porque o cristianismo é a expressão mais lógica do conceito religioso.
E aqui temos, num país católico, os ilustres senhores deputados, em pleno parlamento. fazendo profissão de ateísmo!
De resto a pastoral de S. E. R. é um documento deplorável.
Se fosse um protesto católico, a condenação pura e simples da filosofia e da razão, uma pequena encíclica para uso nacional, uma defesa do temporal intransigivelmente posta — aplaudiríamos a pastoral. Seria um documento lógico.
Mas não! a pastoral é uma espécie de artigo de fundo molhado em água benta, o que quer que seja de beato e de lacrimoso, panfleto de sacristia sem critério, sem lógica, sem ciência, sem ortodoxia, com um cheiro a opa e a feno seco, começando por dirigir apóstrofes à arca de Noé e terminando por pedir esmolas para o Papa.
Esmolas! Esmolas! O papado quando tinha Roma, apresentava o estranho caso de um estado fundado unicamente sobre a mendicidade. Roma vivia das esmolas do
O sr. bispo do Algarve, patriarca, publicou uma pastoral.
Mundo. Papa, cardeais, clero e populaça eram todos mendigos de profissão.
Mas hoje o Papa não tem Roma, e as esmolas continuam a tomar o caminho de
Roma!
O caminho de Roma? Quem sabe?
Aí estão os jornais espanhóis que declaram que a subvenção católica para o Papa não é mais que unia inscrição disfarçada para o legitimismo; e que todos esses dinheiros, que os fiéis imaginam que vão tomar mais chorumenta a terrina papal, vão simplesmente ser empregados em comprar balas e pólvora para a insurreição da
Navarra.