Junho 1871.

Este mês, quando os cravos abriam, as Câmaras fecharam. Fecharam, isto é, foram expulsas!

Houve talvez umas certas fórmulas, fez-se decerto o programa do encerramento; mas a verdade é que elas foram precipitadas, aos empurrões, pelas escadarias de S.

Bento abaixo.

A Câmara estava quieta, bem barbeada, comodamente sentada nas suas cadeiras, sem desconfiança, esperando com gravidade cívica que o Governo manifestasse a sua ideia por um projecto, um relatório, um dito, um grito, uma carranca!

O Governo entrou, e, com um gesto palaciano e galhardo, fez evacuar a sala!

E aí está como a grande ocupação do mês são as ELEIÇÕES.

É necessário que te expliquemos, leitor pacífico que não pertences aos centros, o organismo interior de uma eleição. É ao alegre fugir da pena, um curso de anatomia política.

Lê-o ao chá aos teus pequerruchos, a quem tua mulher prepara as fatias com manteiga. E o melhor ensino que lhe podes dar do abaixamento do seu tempo. Se eles adormecerem no meio mais pungente da declamação, não penses que foi a sonolência comunicativa das nossas palavras severas. E que em Portugal tudo faz sono — até a anarquia!

Quando uma Câmara se fecha, o Governo nomeia outra. Nomeia — porque uma

Câmara não é eleita pelo povo, é nomeada pelo Governo. O deputado é um empregado de confiança. Somente a sua nomeação não é feita por um decreto nitidamente impresso no Diário do Governo: o processo dessa nomeação é mais complicado e moroso. É por meio de votos, os quais são tiras de papel, onde está escrito um nome, e que se deitam num domingo, numa igreja, dentro de umas caixas de pau, que se chamam roman-ticamente urnas. Uns homens graves, de camisas lavadas, estão em roda da urna. Estes homens chamam-se a mesa. São eles que, com gesto cívico e cheios do espírito das instituições, metem gravemente o papelinho branco (o voto!) na caixinha (a urna!).

A urna afecta várias formas, segundo as freguesias: Há urnas do feitio de caixas de açúcar, do feitio de vasilhas, do feitio de chávenas, etc.

Os candidatos gritam sempre, no último período dos seus manifestos, transportados de furor constitucional:

— Cidadãos, à urna!

E puramente uma denominação sentimental.

Para serem exactos deveriam exclamar, em certas freguesias:

— Cidadãos, ao caixote!

E noutras:

— Cidadãos, à vasilha!

Ora, apesar desta nomeação aparatosa e de grave cerimonial, o deputado é tão igualmente funcionário como se fosse nomeado por oito linhas triviais e burocráticas do

Diário do Governo. O deputado obedece ao Governo, e exerce uma função. Há o apagador, o gritador, o interruptor, o homem dos incidentes, o homem dos precedentes, etc. E quando desagrada, é demitido. Somente não se diz demitido. Diz-se, com menos asseio, dissolvido.

O Governo pois nomeia os seus deputados. Estes homens são, naturalmente e logicamente, escolhidos entre os amigos dos ministros. Por dois motivos:

1º Porque a amizade supõe identidade de interesses, confiança inteira.

2º Porque sendo a posição de deputado ociosa e rendosa, é coerente que seja dada aos amigos íntimos — àqueles que vão ao enterro dos parentes e trazem o pequerrucho da casa às cabritas.

Os amigos dos ministros são, naturalmente, os primeiros escolhidos. Para completar o número de uma maioria útil, estes amigos, mais em contacto, indicam depois outros, seus parentes que procuram colocar, ou seus aderentes que querem utilizar.

— Tu não tens ninguém pelo círculo tal? — pergunta X ao ministro, seu íntimo.

— Não.

— Espera! tenho eu um primo. O pobre rapaz tem poucos meios, é pianista. Mas é fiel como um cão. Um escravo! Posso dizer ao rapaz que conte com a coisa?

— Podes dizer ao rapaz.

Lentamente a lista da maioria vai-se formando em Lisboa. Os pretendentes são numerosos. Os amigos íntimos agitam-se em volta do ministro, como um bando de pardais em torno de um saco de espigas. Um tem um primo que casou; outro sabe de um folhetinista com talento e língua fácil; outro quer um cunhado; outro deseja um homem a quem deve uns centos de mil-réis (mas dispensa a candidatura para esse ladrão, se o ministro fizer esse ladrão recebedor de comarca)... Depois os candidatos são mudados como figuras de um jogo de xadrez. A um, a quem se prometeu o círculo D, dá-se o governo civil de B — como indemnização. Tira-se a C a candidatura, porque se descobre que C tomou chá com o chefe da oposição. Mas dá-se a E, que foi quem denunciou C.

Às vezes é um influente pelo círculo X, que, em paga da sua influência, pede que seu genro venha pelo círculo Z, onde é proprietário.

— Mas o círculo Z está prometido a Fulano, que é um professor distinto, um publicista! Seu genro tem pelo menos algum curso?

— Meu genro não tem curso nenhum. Eu é que tenho influência. O jornal da localidade já provou que meu genro era um animal. Mas meu genro espancou a redacção.

E quem vem pelo círculo Z não é o professor distinto, mas o sujeito convencido de animal pelo periódico da localidade!

Há ainda os amigos do Governo, que residem na província. Esses escrevem ao ministro:

«Tenho aqui tudo preparado pelo círculo, e gasto um dinheirame. Por isso, querido amigo, espero que me mandes apoiar a eleição... Sabes que sou fiel como um cão, quando tu estás no poleiro.»

Meses depois deste exercício o Governo possui enfim, inteira, compacta, abarrotada de nomes fiéis, a lista da sua maioria.

Quando o Governo não tem política própria, nem programa próprio, nem amigos próprios, e vive, como o actual, apoiado em dois partidos — são esses partidos que dão ao ministério as listas das suas maiorias particulares. O Governo aceita, e nomeia estas maiorias.

Constituída a Câmara, cada partido retira a sua maioria, e o Governo, desamparado, cai de costas, estatelado no lodoso chão da intriga.

E as duas maiorias livres da fastidiosa ocupação de amparar um Governo antipático, e com os braços disponíveis, rompem logo a invectivar-se uma à outra com galhardo brio.

Tal é este prodigioso e baixo imbróglio!

Logo que o Governo possui completa a sua lista, comunica-a aos governadores civis. Começa aqui o que se chama o trabalhinho das autoridades. O governador civil chama particularmente cada administrador de concelho, e troca com ele estes nobres dizeres:

— Pelo seu círculo o Governo propõe Fulano. Compromete-se a fazê-lo vencer?

— Farei as diligencias...

— Nada de palavras equívocas. Ou a eleição certa para o Governo, ou a demissão certa para si. De resto peça, intrigue, compre, ameace, maltrate. Isso é consigo... O que nós queremos é que o Governo vença!

O administrador tem família, vive daquele escasso rendimento, quer seguir a carreira administrativa, sente o seu interesse que o insta, e cede a S. Exª.

— Pois bem — diz — respondo por tudo... Mas tenho exigências.

— Venham elas.

— E necessário que seja demitido o reitor do liceu, que é todo oposição

— Tomo nota.

— Que seja transferido o escrivão de fazenda. Coitado, grande transtorno lhe vai fazer! Mulher e quatro filhos. A mulher é da vila... Mas enfim

— Está claro, para a frente!...

— Além disso preciso uns 300$000 réis para a freguesia de tal, que está muito trabalhada pela oposição

— Conte com eles.

— Precisava também de tropa...

— Com todo o gosto. Trabalhar, meu amigo, trabalhar! Esta nossa vida administrativa é o demónio! Mas, que diabo, alguma coisa se há-de comer! Adeus.

E cada administrador vai trabalhar para o seu círculo.

Honesto sistema!

A primeira dificuldade é que, no círculo, ninguém conhece o candidato.

— Mas quem é ele?

— Eu sei lá quem ele é! — responde a própria autoridade. — É um sujeito de Lisboa.

É do Governo!

O administrador, para ordenar a escaramuça, reúne os seus regedores:

— O candidato é Fulano. Mãos à obra! É trabalhar-me bem essas freguesias! É pedir, ameaçar...

Os regedores partem; e, trotando pelas estradas do concelho, ruminam os seus meios.

Esses meios são:

A compra pura e simples. Regateia-se o voto: 500, 1$000, 1$500 réis. Há-os de meia libra, mas são raros.

A pressão. E o mais eficaz. A pressão é uma arma geral, simples, acessível a todos. O proprietário exerce pressão sobre os rendeiros, que exercem pressão sobre os trabalhadores. Nos centros de distrito ou de concelho a autoridade superior exerce pressão sobre todos os empregados do governo civil, da administração, da repartição de fazenda, da repartição de obras públicas, do liceu, da câmara, etc. Os coronéis exercem pressão sobre os oficiais — com ameaça de participação para a secretaria da guerra, de destacamento para longe, de mudanças de corpo com despesas, etc.

3º A ameaça. A ameaça é mais especialmente feita pelo regedor na sua freguesia.

O regedor dirige-se ao eleitor e verte-lhe esta honesta eloquência:

— Tu tens um filho de 20 anos. Está para entrar no recrutamento. Se votas no

Governo livro-te o filho. Se não, tens o filho com a farda às costas.

Ou então:

— Tu sabes que tua filha tem aí um namoro. Se não votares com o Governo, a tua filha será chamada à presença da autoridade, e tens a vergonha em casa

Ou quando não:

— Tu andas colectado em 10. Se votares com o Governo, arranjo-te a que o sejas apenas em 9. Se votas contra, tens para o ano no cachaço 16 ou 17.

E aqui está como o Governo arranja votos — por cabeça.

Há votos por influência. Isto é — arranja-se um sujeito que dispõe de 50, 100, 200 votos: dá-se a esse homem uma comenda, um título; nomeia-se-lhe um primo recebedor ou apontador de estradas; e esse homem dá generosamente, para maior esplendor da monarquia, esses 50, 100 ou 200 livres votos ao candidato do Governo!

E por todos os círculos se trabalha sem descanso! As autoridades têm dias pesados de fadigas, noites cortadas de telegramas. Bate-se por todo o concelho a áspera e ávida caça ao eleitor. Aqui ameaça-se, além compra-se. Demite-se aqui um regedor que é suspeito, além muda-se um pároco que é hostil. O eleitor é acariciado, saudado. Paga-se- lhe o vinho na taberna, promete-se-lhe a isenção do recrutamento para o filho, e excepção da décima para ele. Não há interesse que se não seduza, fraqueza que se não ataque, miséria com que se não especule.

E o pobre eleitor, aturdido, diz à mulher em casa:

— Oh! senhores, não me deixam! Por causa do tal conselheiro Felizardo.

— Mas quem é o Felizardo?

— Ora! É o Felizardo! Eu sei lá quem é! É um para deputado!

No entanto a oposição trabalha também. Os seus meios são menores. Recorre sobretudo à prosa. Manifestos nas vilas, discursos populares pelas freguesias, etc. Fala nos impostos, nas vexações do escrivão de fazenda, nas poucas estradas que o Governo faze nas muitas infâmias que o deputado governamental tem feito

No meio disto agita-se um dos tipos característicos da província, o influente de eleições. Lugar nas Farpas ao influente! Lugar à pesada corpulência do sr. influente!

O influente ordinariamente é proprietário. Antigo cavador de enxada, enriqueceu, tem ambições, quer ser da junta de paróquia, da junta dos repartidores, e mais tarde, num futuro glorioso, vereador! Já não usa jaqueta, nem tamancos. Tem uma casa pintada de amarelo, calça um par de luvas pretas, e fala na soberania nacional. Em vésperas de eleição todos o vêem, montado na sua mula pelos caminhos das freguesias, ou, nos dias de mercado, misturado entre os grupos, gesticulando, berrando, com uma importância tremenda. Dispõe ordinariamente de 200 ou 300 votos: são os seus criados de lavoura, os seus devedores, os seus empreiteiros, aqueles a quem livrou os filhos do recrutamento, a bolsa do aumento de décima, ou o corpo da cadeia. A autoridade passa-lhe a mão por cima do ombro, fala-lhe vagamente no hábito de Cristo. Tudo o que ele pede é satisfeito, tudo o que ele lembra é realizado. As leis afastam-se para ele passar.

As suas fazendas não são colectadas à justa: é o influente! Os criminosos por quem se empenha são absolvidos: é o influente! Se são proibidos no concelho os arrozais, ele pode tê-los: é o influente! Se são proibidos os portes de armas, ele é exceptuado: é o influente! Só ele caça nos meses defesos: é o influente! Só a sua rua é calçada: é o influente!

Se algum dia, leitores das Farpas, encontrardes o influente, tirai-lhe o vosso chapéu. Ele reina, e o seu reino assenta sobre a coisa que, apesar de ser a mais lodosa, é ainda a mais sólida — a corrupção.

Nasce enfim o dia, o domingo desejado.

Os regedores começam a chegar à frente das suas freguesias. Os homens vêm de cara lavada, de grandes colarinhos brancos.

Para os deter até às 10 horas, impedir que eles se desmantilhem, e que, dispersos, fora das vistas zelosas do regedor, estejam expostos às tentações da oposição — há um casarão, ou um grande pátio, ou um enorme armazém, em que são recolhidos. Estão ali uns poucos de centos de homens, amontoados, sentados no chão, com o varapau na mão, a lista no bolso do colete. No entanto vem vinho e bacalhau. Passam os copos em redor, os queixos mastigam, e viva lá seu compadre! e à saúde do nosso regedor! e grandes risadas daqui e empurrões além, e pragas mais longe — e toda aquela multidão avinhada, impaciente, aborrecida, com um cheiro enjoativo e um rumor de troça, espera que chegue a hora de dar o seu voto ao Governo, livre, espontâneo e consciente!

Cada freguesia vai votar arrebanhada, de regedor à frente. Os tamancos soam no lajedo da igreja, o secretário da mesa chama numa voz dormente. A cada nome o regedor volta-se para o indivíduo:

— Vá! és tu. Chega-te... perdeste a lista? Pensei! Deita ali! Rua!

E a igreja vai-se esvaziando, os sacristães apagam as velas nos altares, os senhores da mesa bocejam, as beatas persignam-se com água benta, os papelinhos brancos acumulam-se na urna, os influentes satisfeitos fumam no adro, os Cristos sobre os altares agonizam nas cruzes. Viva o sufrágio!

Bem te compreendemos, leitor! Querias comentários, conclusões, e a moral desta farsa? Olha, se sentires, no fim desta narração, a necessidade de uma liga de todos os homens sérios contra o triunfo progressivo desta corrupção — esse será o único comentário justo e fecundo.