Outubro 1871.
Na Foz foram presos vinte pescadores por usarem redes de arrastar.
O sr. juiz respectivo levou os pescadores para o cárcere, com as famílias atrás a chorar: os barcos ficaram em estado de arresto: o peixe apreendido foi vendido em leilão: o dinheiro cuidadosamente guardado no depósito judicial.
No Egipto, no tempo de Mehemet-Ali, ainda depois de 1820, os cádis (autoridades locais) que, ou por violência de temperamento, ou por imbecilidade, ou por exploração, vexavam o trabalhador, o fellah, eram pregados a uma porta pelas orelhas, como morcegos, e ali ficavam dois dias, pendurados, gotejando sangue. Não estão sen-tindo uma forte saudade por este exemplar Mehemet-Ali, o astuto tirano que foi pastor?
Ah! realmente uma autoridade dá muitas garantias quando está sujeita a ver as suas orelhas pregadas por dois pregos de cabeça amarela, no travejamento de uma porta!
Raciocinemos! As redes de arrastar prejudicam a pesca; o peixe desaparecia das nossas costas se se fizesse de tais redes um uso imoderado. Uma lei proibiu as redes de arrastar: mas até 1867 nunca foi posta em prática. Começa, por uma portaria, a vigorar em 1867. No ministério seguinte a portaria cai em desleixo, e as redes de arrastar varrem livremente as costas. Vem o sr. bispo de Viseu, e proíbe de novo as redes. Surge o Sr. Dias Ferreira e dá ampla liberdade às redes. No ministério seguinte nova proibição. Outra vez esta proibição se relaxa. E uma derradeira portaria, enfim, impõe vigilância escrupulosa.
Como vêem, temos aqui uma legislação complicada e flutuante. E necessário seguir com cuidado o Diário do Governo para conhecer com precisão quando as redes são legítimas e quando as redes são criminosas. O acto varia de perfil, ora meritório ora culpado, conforme o temperamento do ministro e o seu amor pela pesca. Um advogado, consultado, teria de folhear a colecção de leis: o Sr. Governador Civil do Porto, certa-mente, não conhece de cor esta legislação confusa: os srs. Administradores não poderiam diferençar com exactidão as épocas tolerantes e as épocas proibitivas: os Srs.
Regedores são totalmente alheios a esta parte da jurisprudência.
Pois bem, foi justamente por não saberem corno rábulas estas portarias sucessivas, que os vinte pescadores da Foz foram encarcerados na Relação!
Um pobre homem passa o seu dia remando, quebrado pela luta com o mar, para comer à noite, na promiscuidade da mesma gamela, com uns poucos de filhos, uma pouca de sardinha. Levou para isso a sua rede de arrastar com que trabalha há muito, que ele vê no barco do seu amigo, do seu vizinho, do seu patrão. Desembarca ao pôr do
Sol, esfomeado, encharcado de agua - e encontra pela frente o Sr. Regedor! - E como existe a portaria de tantos de tal, revogada por uma portaria posterior, posta em vigor por outra, caída depois em desleixo, novamente revogada, alterada por uma diferente legislação, ultimamente anulada, e agora rediviva e activa - ele, por ignorar inteiramente esta jurisprudência trapalhona, vai ser levado por aqueles soldados ao
Porto e aferrolhado numa enxovia!
O crime deste homem, portanto, é não ler o Diário do Governo! Esse homem está preso por não ser um jurisconsulto! Esse homem será condenado por ousar ser pescador
— antes de ser bacharel formado!
Foram presos vinte. Vinham em dois barcos, eram duas companhas. O arrais é dono do barco e mestre da companha. É ele quem dirige a pesca, quem vai ao leme. Pela manhã manda-os embarcar. As redes estão no barco! mãos aos remos! vela ao largo!
Partem; e se o mar tem a condescendência de os não esmagar na negra rocha de Leixões ou de Felgueiras, é realmente singular que à volta, com os barcos mal cheios de peixe, doze horas de remos, e todos molhados das voltas do mar - vão dali do cais, em chusma, presos por não terem ido consultar um advogado, antes de obedecerem ao seu arrais!
— «Mas tinham-se afixado editais!» Lêem eles editais? sabem eles ler? Trabalham.
O barco tem as redes, o vento refresca, o mar aplaina, o arrais diz: larga! Largam.
E, se algum arrais leu o edital, quantos editais não têm visto na esquina! Quantas vezes pregados, quantas vezes arrancados! Quantas vezes pescou com as redes, claramente, diante do regedor! Quantas vezes elas têm sido proibidas e quantas vezes toleradas? Vê o mar bom, o céu limpo, o vento mudo, e naturalmente não manda este telegrama à secretaria: «Cá vou à pesca, há aí alguma lei nova que o proíba?»
Porque então torna-se difícil ser pescador; serão necessários para arrais, grandes estudos de legislação; e o único homem que pode, com a consciência tranquila, sem receio de desacatar alguma portaria, pescar a sardinha - é o Sr. Martens Ferrão, procurador-geral da Coroa!
E além disso foram presas três crianças de 10 anos! Ah! estes criminosos vão decerto ser tratados com as penas mais severas! Lá estão na enxovia, as mães choram às grades! É justo! estes indignos entezinhos também pescavam! Aos 10 anos, quando todas as crianças brincam, até as dos lavradores miseráveis, que guiam os bois, trepam aos ninhos, se rolam rias altas ervas - estes bandidos que já trabalham, que já vão ao mar, que já aprendem a morrer na idade em que os outros ainda nem sequer aprendem a viver, que já ajudam os pais, que já são um braço ao remo, uma mão à escota, às vezes uma criança ao mar, estes celerados tinham ido nos barcos com as redes, ganhar o seu pedaço de pão, enquanto as mães, inquietas, esperavam na praia, ousando também eles, os facínoras, ignorar as portarias do sr. ministro do Reino! Por isso agora choram na cadeia!
E são vinte pescadores! Vinte famílias, dez pelo menos, sem pão, sem lume! Os pais, os maridos, os irmãos presos, têm ao menos o rancho da cadeia: as mulheres pedem pelas esquinas! E estamos em pleno Inverno, e vêm os temporais, e começa aquele mar violento, varrido dos ventos, que as pobres mães olham dias e dias da praia, com os seus mantéus pela cabeça, sem o verem jamais condescendente, sem o verem jamais piedoso!
E no entanto o peixe apreendido é vendido em leilão, o dinheiro guardado no depósito. É justo: os homens na cadeias as mulheres na miséria, o dinheiro na algibeira do Governo.
Não sentem unia imensa saudade de Mehemet-Ali, o velho tirano que pedira esmola aos piratas do Arquipélago nas praias de Cavala? Bom Mehemet-Ali! Excelente
Mehemet-Ali! Cismemos! Um cádi, pendurado pelas orelhas, e elas repuxadas, arroxeadas, ensanguentadas, laceradas! Bom Mehemet-Ali! Evidentemente eras um justo! Dois bons pregos! uma trave segura! e as duas orelhas de um regedor da Foz!