XVI

 

Julho 1871.

Falou-se muito durante este mez, n’um facto de grande coragem praticado por s. ex.ª...

Foi o caso que s. ex. subia n’uma carruagem a rampa de S. Bento, as Côrtes, quando um policia civil advertiu ao cocheiro que não era permittida a passagem. S. ex.ª, com animo notavel, deitou, em risco de vida, a cabeça fora da portinhola, gritando ao policia: Para traz! e bradando ao cocheiro: Ávante! Mais adeante, novo perigo Outro policia faz parar a carruagem. S. ex.ª, repetindo a façanha heroica, com a simplicidade de Turenne, varou o policia com uma reprehensão, regritou marcialmente: Para a frente! E tomou o reducto — isto é, subiu a rampa. A historia raras vezes regista tão altivos rasgos. Ainda não seccaram os louros de Montes Claros!


Alguns jornaes — a imprensa invejosa amesquinha os heróis — tiveram para este facto censuras ásperas, e fortemente argumentadas.

Quiseram dizer — que S. Exª pretendeu colocar-se ridícula e presunçosamente, como excepção, superior às determinações da polícia: que S. Exª, militar, deu o exemplo do desacato à disciplina militar: que S. Exª, chefe de polícia, tornou irrisórias as disposições policiais: que S. Exª, legislador, ensinou o desdém das leis: que S. Exª, homem de bem que deve cumprir o seu dever, repreendeu dois homens pelo facto de eles cumprirem o seu dever: que S. Exª obriga as pessoas de senso a lembrarem-lhe que ele não é o tirano Nabucodonosor — mas o comandante obscuro de uma milícia civil, e que a fama do seu nome ainda não passou de Cacilhas, e só a muito custo vai conseguindo penetrar para os lados de Aldeia Galega.

Isto disseram alguns malévolos. Nós, porém, que costumamos, sob a aparência exterior dos factos, procurar-lhes a realidade secreta, dizemos afoitamente que aquele acto só prova em S. Exª — exuberância de brio guerreiro!

S. Exª é um homem valente, bateu-se bem. Mas as guerras acabaram, e S. Exª está como um homem gordo que não faz exercício: S. Exª sofre de excessos de valor — como esse homem sofreria de excessos de sangue. S. Exª tem congestões de brio. A coragem faz-lhe já vertigens, como aos sanguíneos a abundância de vida. E verão, meus senhores, que ainda há-de acabar por lhe fazer — furúnculos!

Imagine-se com efeito um homem forte, febril de batalhas a dar, palpitante de redutos a tomar, sôfrego de sangue inimigo — vivendo burguesmente e pacatamente na

Baixa, ou no quartel do Carmo, e tendo por única glória estratégica destacar patrulhas para o Arco do Bandeira, e por único troar de artilharia os foguetes do Sr. Cardim! Um bravo, nestas circunstâncias, acumula dentro em si, dos gorgomilos ao estômago — quantidades prodigiosas de furor guerreiro. A cada movimento que faz, sobem-lhe à cabeça, vêm-lhe à boca — ondas de ardor bélico. Acrescentem a isto a atmosfera militar em que esta época se move e respira: guerras no Reno, guerras civis, províncias conquistadas, cidades que ardem, nomes de generais heróicos que cintilam em tele-gramas, o ruído, a fulguração da glória, a imortalidade na história — e ele, S. Exª, condenado, como única acção radiosa, a repreender o 73 da 2ª porque furtou uma correia ao 48 da 5ª!

Esta castidade na luta pesa a S. Exª. S. Exª necessita de dar satisfação às exigências do seu temperamento — e S. Exª está viúvo de glória! Por isso, ao mais pequeno motivo, S. Exª de dentro do deputado da maioria saca o herói da municipal.

Falou-se muito, durante este mês, num facto de grande coragem praticado por S.

Exª...

Houve um tempo feliz entre todos, em que S. Exª andou ferindo as grandes guerras — dos penicheiros. Então S. Exª vivia nos interesses da luta, nas comoções soberbas. Era o tempo das patrulhas dobradas e dos grandes recontros da Rua Nova do

Carmo. Então, quando as guardas avançadas lhe vinham dizer: — «Há penicheiros para os lados da Bitesga» — S. Exª, sorrindo, respondia: — «S. Jorge e Portugal» E partia.

E o nome de s. Exª aparecia nos telegramas do correspondente de Lisboa — para o

Clamor de Alpedrinha!

Outras vezes eram vultos suspeitos que tinham entrado numa casa, a horas lôbregas. S. Exª corria, cercava, bloqueava, destacava um corpo de exército composto do Bento da 5ª — outro composto do José Prefeito da 1ª. Mas ai! os bandidos que S. Exª surpreendia minando as instituições, eram mesários da confraria das Chagas!

Esse período épico, porém, acabou. O mundo cada vez se torna menos interessante. E S. Exª está de novo na disponibilidade do heroísmo. Por isso atacou com tão cru arremesso os dois polícias civis. Tem ele culpa? Pode ele dizer ao seu sangue que não corra e à sua espada que não vença? Pode ele impedir-se de tomar Cacilhas — e orchata?

Ora, nestas circunstâncias, julgamos que há uma única maneira de salvar este temperamento, fatalmente belicoso:

E estabelecer, no matadouro, reses — para uso do herói. Dá-se assim um calmante

à sua ferocidade. O guerreiro todas as manhãs, como quem vai tomar o seu leite de burra, vai matar o seu vitelo. Sangra o boi — e o brio. Doente de valor, S. Exª chega, brande a espada, e a cabeça armada do bezerro inimigo rola-lhe aos pés. O herói limpa a espada, vem almoçar, e fica para todo o dia repousado, tranquilo, sem ímpetos de bravura, pacato como uma couve. E a polícia civil entrará de novo no gozo da sua dignidade e da sua pele Assim seja!