XVII

Fevereiro 1872.

Não nos parece justificável o despeito da Universi dade.

É verdade que um príncipe pode deixar de se comportar com a pompa de um rei — sem que por isso passe a comportar-se com a maltrapice de um varredor. Entre o manto de arminhos e a rabona — há gradações. Um rei por não ir ao passeio com o seu ceptro de oiro — não se segue que vá com as suas chinelas de ourelo: e por não receber as autoridades revestido do seu uniforme — não é honesto que as receba vestido apenas com a sua pele. Mas também não nos parece que uma quinzena e um chapéu desabado seja toilette que escandalize a douta Universidade!

É necessário que os srs. doutores saibam que a toilette só é realmente exigida — quando a toilette é um fim. Num baile, numa soirée, numa gala, na Ópera — a gravata branca, a luva cor de pérola, a gardénia ou a grã-cruz são essenciais, porque estas festas constituem unicamente uma reunião de elementos elegantes, entre decorações elegantes, para um fim elegante. Tudo aí deve convergir para a harmonia geral — desde as toilettes até às flores. Trata-se de um fino prazer dos sentidos — e a toilette, com o seu brilho exterior, é requerida para o tornar completo e perfeito.

Mas quando se trata apenas de doutorar o Sr. Fulano, bacharel — não nos parece que tenham cabimento as exigências de elegância. Se a veneranda cerimónia do capelo é uma festa que reclama os requintes de toilette — onde estão as rosas, os gelados, as jóias nos colos nus, o rumor dos flirts, as caudas de seda ondeando na valsa? Se o capelo é um sarau galante, porque é que o Sr. Dr. Brito, de direito, nos priva do maravilhoso contorno do seu seio, trazendo batina — afogada?

Porque não vemos os srs. lentes jubilados moverem os leques com a mão calçada em luva de 16 botões? E porque é que o Sr. Forjaz não dirige os arrebatamentos do cotillon? Ah, quereis toilette? Valsai! — Quereis gravatas brancas? — Oferecei gelados! —

Quereis luvas cor de palha? — Amai, venerandos doutores!

Mas para aturar uma enfiada de carões sorumbáticos e de batinas caturras, imóveis num estrado; para ouvir uma charanga torpe dilacerando a grandes golpes de figle um minuete da Srª D. Maria I; para admirar quatro archeiros sebáceos perfilados entre ramos de louro murcho — quereis vós que a gente ponha gravata branca e um jasmim do

Cabo na lapela? Pois não vemos aí os senhores de Teologia, antigos egressos espapados de gordura, com as suas velhas lobas enodoadas? Não vemos os senhores de Direito, antigos comentadores do Pegas, com os seus sapatos achinelados? — Quando foi que a

Universidade teve jamais a curiosidade e o respeito da toilette? Ela que ainda há pouco levava ao cárcere os estudantes que usavam colarinho! Ela que reprovava os estudantes que entravam nas aulas com luvas! Ela que proibia em Coimbra os estabelecimentos de

A Universidade e os seus doutores têm espalhado apreciações rancorosas, sobre a maneira como Sua Majestade o Imperador se apresentou na sala dos capelos, num dia de doutoramento e de cerimónia. Dizem que Sua Majestade, trajando jaquetão de viagem, com um chapéu desabado e um saco a tiracolo, se veio sentar nos bancos severos da antiga sala adamascada — com a mesma familiaridade com que se sentaria na almofada da diligência dos Arcos de Valdevez. E a Universidade quis ver no jaquetão de Sua Majestade e no seu chapéu braguês, a mesma significação desatenciosa que o

Parlamento de Paris viu, em outras eras, nas altas botas moles e no chicote de estalo do defunto Luís XIV. banhos! Ela que, destinada a bacharelar as novas gerações, conseguia sobretudo — sujá-las!

E abespinha-se porque Ele foi ver um capelo, ele viajante, ele Pedro, ele espectador, ele turbamulta — de jaquetão e chapéu braguês! E onde então? Na sala dos capelos — que

é a Igreja onde se professa para doutor, onde se troca a graça mundana pela sensaboria catedrática, onde o sujeito deixa de ser um homem para ser um lente, onde faz o voto de melancolia e de carranca perpétua, e onde se substitui a alma por um compêndio.

E é neste lugar funerário que os srs. Doutores emergem da sonolência sepulcral para murmurarem (talvez em latim!) — olha aquele de jaquetão!

A Universidade dando-se ares de saber que existe o alfaiate Poole! Irrisória vaidade conimbricense!

É célebre! Vimos sempre a Universidade, quando se tratava de pôr gravata branca

— desculpar-se com as suas preocupações científicas. E, agora que se tratava de uma consagração doutoral, a Universidade revolta-se porque um dos assistentes não está de gravata branca!

Pois quê! Recebe a Universidade um sábio, e em lugar de se perder com ele nos retiros difíceis das mais sérias questões do saber — recua, e exclama com uma exigência mundana de cocotte para trás! que horror! vós não estais de casaca! E não compreendo o que havia de intencional, de amável, na toilette de Pedro! Ele quis-se apresentar entre sábios, na rabona de sábio! Ele não quis humilhar nenhum sr. doutor — pelo asseio da sua roupa branca! Vestiu-se com o rigor científico. Antes de sair para o capelo, em lugar de molhar os dedos num frasco de água-de-colónia (sabe-se isto! ) ensopou as mãos num tinteiro! Ele seguiu a velha tradição universitária — que o rasgão é uma glória e a tomba na bota uma respeitabilidade! E, se a Universidade tivesse lógica, devia escandalizar-se e corar — não por ele se ter abstido da gravata, mas por ousar entrar, naquele recinto clássico da porcaria, com tão poucas nódoas no fato!