XXIII
Março 1872.
A valia de uma geração depende da educação que recebeu das mães. O homem é «profundamente filho da mulher, , disse Michelet. Sobre tudo pela educação. Na creança, como n’um marmore branco, a mãe grava; -mais tarde os livros, os costumes, a sociedade só conseguem escrever. As palavras es· criptas podem apagar-se, não se alteram as palavras gravadas. A educação dos primeiros annos, a mais dominante e a que mais penetra, é feita pela mãe: os grandes princípios, religião, amor do trabalho, amor do dever, obediencia, honestidade, bondade, é ellà que lh’os deposita na alma. O pae, homem de trabalho e de actividade exterior, mais longe do filho, impõe-lhe menos a sua feição; é menos camarada e menos confidente. A creança está assim entre as mãos da mãe como uma materia transformavel de que se pode tazer — um heroe ou um pulha.
Diz-me a mãe que tiveste — dir-te-ei o destino que terás.
A acção de uma geração é a expansão pública do temperamento das mães. A geração burguesa e plebeia de 1789 a 93, em França, foi livre, sensível e humana — porque as mães que a conceberam tinham chorado e pensado sobre as páginas de
Rousseau.
A geração de 1830, gerada durante o primeiro império — foi nervosa, idealista, romântica, porque as mães tinham vivido nas emoções heróicas das guerras, na contemplação das fortunas maravilhosas.
Se a geração de 1851, em Portugal, foi mais forte e original do que a nossa — é porque as mães, de onde ela saiu, tinham sido as raparigas vivamente sacudidas pelos tempos dramáticos das lutas civis.
É, pois, superiormente interessante saber o que são hoje, em 1872, estas gentis raparigas de 15 a 20 anos de quem nascerá, para bem ou para mal, a geração portuguesa de 1893. Assim poderemos prever o que elas serão mais tarde como mães, como educadoras.
Que elas nos perdoem, essas gentis meninas, se a nossa pena nem sempre for glorificadora como um soneto de Petrarca: mas a tinta moderna s ai do poço da Verdade.
O madrigal ficou para sempre suspirando esterilmente sobre a lombada dos livros de
Curvo Semedo, o pastoril desembargador; não se atreve a pôr o seu pé florido nestes caminhos revoltos da vida presente. Está tão longe de nós como os pastores vestidos de seda, apoiados a bordões de cristal. Hoje os pastores são rudes miseráveis, cobertos de farrapos. Não suspiram, em versos sonoros, as meiguices a Clóris: pedem mais pão aos patrões!
O madrigal é triste como uma flor de laranjeira de papel, desbotada, atirada para o sótão. Não há nada como belas verdades, sadias e robustas, frescas e moças!
A menina solteira! Vejamos o tipo geral de Lisboa. E um ser magrito, pálido, metido dentro de um vestido de grande puff, com um penteado laborioso e espesso, e movendo os passinhos numa tal fadiga, que mal se compreende como poderá jamais chegar ao alto do Chiado e da vida.
O primeiro sinal saliente é a anemia. Taine diz, pintando o sólido vigor inglês — que o dever essencial de uma menina é ter saúde. A saúde é o esplendor físico da inocência. Mens sana in corpore sano. Uma pele fresca e lisa, músculos que jogam livremente, busto direito, beiços vermelhos — indicam juízo forte, consciência recta, um
A valia de uma geração depende da educação que recebeu das mães. O homem é
«profundamente filho da mulher», disse Michelet. Sobretudo pela educação. Na criança, como num mármore branco, a mãe grava; — mais tarde os livros, os costumes, a sociedade só conseguem escrever. As palavras escritas podem apagar-se, não se alteram as palavras gravadas. A educação dos primeiros anos, a mais dominante e a que mais penetra, é feita pela mãe: os grandes princípios, religião, amor do trabalho, amor do dever, obediência, honestidade, bondade, é ela que lhos deposita na alma. O pai, homem de trabalho e de actividade exterior, mais longe do filho, impõe-lhe menos a sua feição; é menos camarada e menos confidente. A criança está assim entre as mãos da mãe como uma matéria transformável de que se pode fazer — um herói ou um pulha. sentir puro. A palidez, as olheiras, o peito deprimido, o ar murcho — revelam um ser devastado por apetites e sensibilidades mórbidas. Ora entre nós, as raparigas não têm saúde. Magrinhas, enfezadas, sem sangue, sem carne, sem força vital — umas padecem de nervos, outras de estômago, outras do peito, e todas da clorose que ataca os seres privados do sol.
Em primeiro lugar não respiram. Os seus dias são passados na preguiça de um sofá, com as janelas fechadas; — ou percorrendo num passinho derreado a Baixa e a sua poeira. Portanto, falta de ar puro, são, restaurador. O ar da Baixa corrompe o sangue; e o ar das salas, resguardadas por cortinas ou alumiadas a gás, não tem oxigénio e portanto não alimenta.
Depois, não fazem exercício. Uma inglesa tem por dever moral, como a oração, o passeio — o largo passeio, bem marchado durante duas horas, sem preocupação «janota», todo de higiene. Aqui, as que andam a pé, depois de ir de uma loja na Rua do
Ouro a uma igreja no Loreto, arquejam e recolhem à pressa no ónibus. Algumas mesmo não sabem andar; escorregam, saltitam, oscilam. Nada dá tanta ideia da constância de carácter, como a firmeza do caminhar. Uma alemã, uma inglesa, anda como pensa — direita e certa. As nossas raparigas, constantemente sentadas e aninhadas, quando têm de se pôr a pé e de marchar, gingam e rolam. Além disso, o hábito do sofá, do recosto e da almofada — acostuma às posições lânguidas; cabeça errante, braços amolecidos, corpo abandonado. Uma inglesa nunca toma, por pudor, estas atitudes. São atitudes de serralho ou de pomba amorosa. Uma menina está direita e firme. É como na pintura e na estatuária se representa sempre a Inocência.
Depois não comem: é raro ver uma menina alimentar-se racionalmente de peixe, carne e vinho. Comem doce e alface. Jantam as sobremesas. A gulodice do açúcar, dos bolos, das natas, é uma perpétua desnutrição. Os antigos moralistas atribuíam-lhe mesmo uma influência deplorável nos costumes e no carácter. Nas casas de província, onde a moral existe guardada em decrépitos provérbios como em frascos, dizem os velhos, com ingénuo horror: mulher gulosa, bicha manhosa.
Lisboa é uma cidade doceira, como Paris é uma cidade intelectual. Paris cria a ideia e Lisboa o pastel. Daí a grande quantidade de doenças de estômago e de maus dentes. A deterioração pelo doce começa aos quatro anos. O sangue alimentado a massa, ovos, natas, dá estes corpos débeis e estas almas amolecidas. O Baltresqui, o Ferrari, a
Confeitaria Lisbonense arrasam o nosso organismo social.
Outra causa de doença é a toilette. Com estes penteados enormes, eriçados, insólitos, em forma de capacete, de fronha, de chalé, de concha, e com os materiais tenebrosos que metem por baixo para sustentar e erguer mais a construção inclemente — acumulam sobre a cabeça um fardo, uma trouxa, que não deixa arejar o crânio. A transudação acumula-se à raiz do cabelo, fecha os poros, cria um estado de inflamação.
Ouve-se dizer quase sempre às mulheres — Sinto hoje um peso na cabeça!... É o fardo! E o crânio que, sem ar, amolentado, está adoecendo como um corpo que se não despe.
Lisboa é a cidade do Universo onde as meninas mais se apertam e se espartilham.
O espartilho que destrói a beleza da linha, a melodia das curvas naturais, dificulta, ao mesmo tempo, a circulação, a respiração e a digestão. Fere as três causas da vida.
De modo que o balanço das condições físicas de uma rapariga portuguesa é este:
Músculos sem exercício;
Pulmões sem ar;
Circulação comprimida;
Digestão estrangulada.
A primeira consequência é que uma rapariga assim destrói a sua beleza, a vivaz mocidade, e a graça. A pele amarelece, os olhos encovam, os lábios gretam, as orelhas despegam do crânio, o nariz afila, as mãos humedecem, todo o corpo corcova — e na bela idade da florescência, e na fresca expansão da vida, uma pobre rapariga de quinze ou dezoito anos está como alguma coisa de amarrotado, de melado, de murcho, de em segunda mão, com aquele aspecto safado que o pó das estradas dá à virgindade das folhas.
Começam a precisar, para serem bonitas, da luz do gás. No brilho artificial daquela luz crua uma menina, com os cabelos lustrosos, um pouco de pó de arroz, e muitos tules espalhados, tem encanto e pode seduzir. Mas que venha, ao outro dia, a sincera luz da manhã! Todas as mácula’destacam: os cabelos, chamuscados do ferro de frisar, estão secos e cor de rato, os beiços são como um velho bago de romã espremida, o nariz tem, na cartilagem que o liga ao rosto, um vinco escuro, toda a pele parece a de uma galinha cozida!... Ah! o velho Páris não lhe daria a maçã.
É a moda, dizem. — Cruel razão! A moda começa por ter isto de absurdo: não é ela que é feita para o corpo — mas o corpo que tem de ser modificado para se ajeitar nela A moda vem de fora, do figurino, feita pela fantasia burguesa de um desenhador de armazém: e aqui, depois, a pobre mulher precisa de reformar o corpo, obra do seu bom
Deus — para o acomodar ao figurino, obra do seu mau jornal. De modo que para susten-tar o chapéu deforma-se a cabeça; para obedecer ao puff torce-se a espinha; para satisfazer às botinas Luís XV desconjunta-se o pé; para seguir o chique das cintas baixas destrói-se o busto. Nunca como hoje, sob o domínio da democracia, se des-prezou, se deteriorou tanto o corpo humano. Não é com a intenção mística daquela santa que cortou o nariz para aniquilar as glórias mortais da sua beleza! Não! Hoje mais que nunca se glorifica a beleza, e o corpo é o fim supremo. Somente não se aceita o corpo que a natureza dá — e procura-se aquele que se vende nas modistas. Ah! onde estão os tempos em que a beleza era como uma santidade! em que a vida toda era uma educação e idealização do corpo! em que se erguiam estátuas às nudezas maravilhosas! em que o desfigurar um homem era punido com as velhas leis bárbaras do sacrilégio! e em que o ateniense, nas conversas dos pórticos ou nos peristilos dos banhos — se ocupava menos da invasão de Xerxes do que do corpo de Lais! Veja-se então que racional, bela, harmónica toilette. Uma larga túnica de Linho, de amplas pregas, que deixava o corpo livre, inoprimido, em toda a bela originalidade das suas linhas... Mas mesmo nos tempos bárbaros se respeitava a perfeição da forma. E era em pleno ascetismo, quando a carne se tornara o crime da vida. Vejam-se nos tempos merovíngios e carlovíngios — os vestuários daquelas rainhas sanguinárias e magníficas que brilham nas iluminuras dos velhos códices. Um vestido inteiro, branco ou negro, modelando o corpo como uma luva, o pescoço livre, os cabelos em duas tranças, ao comprido das costas.
A moda destrói a beleza e destrói o espírito. Um caixeiro desenha a lápis, em
Paris, um certo chapéu, um certo corpete, umas certas mangas — e todas, magras e gordas, as loiras e as trigueiras, as altas e as pequeninas, se introduzem, se alojam, se enfiam naquele molde, sem se preocuparem se o seu corpo, a sua cor, o seu perfil, a sua altura, o seu peito, condizem, harmonizam, vão bem com o molde decretado e chegado pelo correio. Abandonando-se servilmente ao figurino, abdicam a sua originalidade, o seu gosto. Aceitam uma banalidade em seda — e um lugar comum com folhos. Uma senhora que não inventa e não cria os seus vestidos — é como um escritor que não acha e não inventa as suas ideias. Ter a toilette do figurino, é fazer como os merceeiros que têm a opinião da sua gazeta. Desabitua o espírito da invenção, da espontaneidade, da liberdade. É uma confissão tácita de que se não tem espírito, nem fantasia. Seguir um figurino é aprender a elegância de cor, para a ir recitar na rua; é ter o gosto que se recebeu de encomenda; é alugar o chique, ao mês; é mandar vir as ideias pelo correio; é o bom tom por assinatura. Que falta de espírito! e os maridos pagam-no!
Depois da anemia do corpo, o que nas nossas raparigas mais impressiona — é a fraqueza moral que revelam os modos e os hábitos. Nada mais significativo, já notámos, que o seu modo de andar. Veja-se o andar de uma inglesa, elástico, firme, direito, sério: sente-se ali a saúde, a decisão, a coragem, a personalidade bem afirmada. Veja-se o andar de uma menina portuguesa, arrastado, incerto, hesitante, mórbido: sente-se aí logo a indecisão, a timidez, a incoerência.
A sua preguiça é um dos seus males. O dia de uma menina de dezoito anos é assim dissipado: almoça, vai-se pentear, corre o Diário de Noticias, cantarola um pouco pela casa, pega no croché ou na costura, atira-os para o lado, chega à janela, passa pelo espelho, dá duas pancadinhas no cabelo, adianta mais dois pontos no trabalho, deixa-o cair no regaço, come um bocadinho de doce, conversa vagamente, volta ao espelho, e assim vai puxando o tempo pelas orelhas, derreada com a sua ociosidade, e bocejando as horas.
Outro mal seu é o medo, um medo horrível de tudo; de ladrões, de trovoada, de fantasmas, da morte, dos corredores escuros, dos castigos de Deus, dos soldados e das máscaras. Não são capazes de atravessar uma sala apagada à meia-noite; se um rato corre no soalho, saltam para cima dos móveis; gritam só com ver um revólver; têm os terrores que têm os canários.
Não há nelas nenhuma decisão, um quase nada as embaraça. É necessário que tudo em roda na vida seja muito fácil, muito claro, muito pronto; de outro modo, hesitam, estacam, sucumbem. Um não, uma carruagem que falta, o relógio que parou, o tempo que mudou — e aí estão inutilizadas. Basta vê-las no Inverno, num grande dia de chuva. A inglesa, se tem que fazer compras ou visitas, põe o seu water-proof, calça as suas galochas, toma o seu guarda-chuva, e aí vai chapinando a lama. A portuguesa em casa, encolhida, amuada, inclusa (segundo a pitoresca expressão do nosso grande desenhista Manuel de Macedo), cai, por causa de alguns pingos de água, numa desolação maior que a de Job sobre o seu monturo.
É vê-la nas jornadas! se tem de montar a cavalo, que sustos, que gritinhos, que padre-nossos murmurados! A bordo de um paquete, a inglesa, a francesa, gostam de subir à tolda, ver o mar, sentir a brisa húmida: a portuguesa em baixo, geme, reza, e toma caldos.
Daqui vem a sua falta de acção, a sua infeliz «passividade». Uma menina portuguesa, não tem iniciativa, nem determinação, nem vontade. Precisa ser mandada e governada; de outro modo, irresoluta e suspensa, fica no meio da vida, com os braços caídos. Perante um perigo, uma crise de família, uma situação difícil, rezam. Têm a fé abstracta que só Deus as pode inspirar, dar-lhes a decisão, a ideia precisa: mas terminam quase sempre por seguir o conselho da criada.
Veja-se que companheira para a vida do homem — e do homem moderno que não
é um trovador ou um contemplativo, nem um sultão para ter aninhadas, em fofas almofadas, huris perfumadas; mas um trabalhador, que precisa ganhar o seu pão, arcar com todas as durezas da vida. Como há-de ele lutar com os braços sobrecarregados por estas criaturinhas que desfalecem e gemem, cheias de puff. de pó de arroz, de rabuge, e de mimos de romance!
Que diferença de uma francesa, uma alemã, uma inglesa! Quantas destas encontrou um de nós, nos mais remotos países, nas ruínas e nos desertos, nas montanhas de Judeia, nos desfiladeiros do mar Morto! Sofriam longas horas de sol e caminho, dormiam sob a tenda, comiam entre duas pedras no leito seco das correntes, e sempre alegres, vivas, rosadas, como o shake-hand franco, o riso fácil. Nunca ele se esquecerá de duas nobres e belas inglesas, que viu em Jerusalém.
Dezanove a vinte e dois anos, solteiras. Iam partir para o Jordão, pelo abrasado caminho de Mar-Saba. Uma sobretudo era admirável com a sua alta figura de Diana, um vestido de amazona verde-escuro, justo como uma luva, grandes olhos verdes inocentes e fortes, o pescoço de uma brancura de camélia húmida. Tinham ambas os seus chicotes, luvas de camurça, e à cinta os seus revólveres. Isto é: lutariam, e desfechariam também, se a sua cavalgada fosse atacada por beduínos de rapina. E eram duas crianças quase: se as fitassem de certo modo, corariam, se lhes pedissem a bolsa fariam fogo: tal
é a delicadeza da miss, tal é a sua força. Raça incomparável — de coração doce e de carácter rijo.
Vejamos, um pouco, como as nossas raparigas portuguesas se formam, lentamente, sob a educação interior. As mães põem nas suas pequerruchas todo o interesse que uma artista põe na sua glória: e tratam de dar a essa glória um relevo magnífico. Começam por as vestir como pequeninas senhoras! A pequerrucha de seis, oito anos, uma baby, um bocadinho de criatura, um nadinha de mulher, ei-la já com gravidades de dama, direita, seriazita, coberta de fitas, de rendas, de folhos! Na idade em que precisam de toda a liberdade de corpo e de movimentos para crescer, já trazem a cinta apertada num anel tirânico, a cabeça oprimida por duros penteados em que o ferro lhes cresta o cabelo, os pezinhos devorados pelo verniz, e anquinhas e puffs, e um grande aparato, que é o cárcere do anjo.
Ora a toilette, como a nobreza — obriga. E assim a pequenina pouco a pouco se penetra da influência dos seus vestidos. Aos oito anos olha-se ao espelho, tem perrices por causa de uma fita, põe pó de arroz conscientemente, quer a meia esticada e elástica para dar relevo a uma perninha mimosa. Todos os lábios da família peregrinam no claro, rosado rosto da Bebé; e a criaturinha, que é ainda uma argila santa, vai-se impregnando de vaidade como uma esponja de água. Vivendo na certeza da sua beleza como uma santa no seu altar, toda preocupada de vestidos, afogada em mimo, aclamada e beijada — começa a ter certos sorrisos, a espreitar com um certo disfarce malicioso, a ter umas ternuras de andar, um modo de se retrair, de se recusar, que há-de fazer corar por vezes o seu anjo da guarda. Desabrocham então as pequeninas simpatias, cheias de mistério.
Uma deu um dia a um nosso amigo um amor-perfeito, em segredo, pedindo-lhe que o guardasse. Tinha nove anos. São graças, leves como fios. Mas a vaidade infiltra-se na alma, gota a gota, e cria no fundo aquele lago imóvel, negro e resplandecente, onde, segundo os Místicos, habita e se move o Pecado.
Ao mesmo tempo vai-se-lhe ensinando o catecismo e a doutrina. É a educação moral. A pequerrucha aprende a persignar-se, a ajoelhar com gravidade, a recitar o padre-nosso. Depois, seguidamente, decora todas as orações da cartilha. E termina por papaguear a Doutrina correntemente, de cor, e salteada, como a tabuada ou como as capitais da Europa — mas sem a menor compreensão, sem ligar uma ideia sua às palavras mortas, sentindo através delas um certo terror — porque se trata de Deus e segundo lhe ensinam é Deus quem manda as trovoadas, as doenças, a morte.
Ora para que se ensina a religião a um homem ou a uma mulher? Para lhe dar um guia para a sua consciência e um guia para a sua inteligência; uma doutrina que lhe mostre o que deve pensar e que lhe aponte o que deve fazer: critério para bem-julgar e critério para bem-viver. O que se lhe ensina, porém, no Catecismo? Uma série de fórmulas e de palavras combinadas, cujo sentido lhe é tão estranho como uma língua ignorada. Aprende-a maquinalmente, à maneira de uma lição de escola que tem de 0 recitar a certas horas, depressa ou devagar, por obrigação, como se penteia e como trata as unhas.
De sorte que, tornada um exercício de recitação, uma fórmula trivial que se repete de joelhos, a Doutrina Evangélica fica na memória como uma toada que tem harmonia, mas não penetra o espírito como uma lei que tenha eficácia. A criança repete todos os dias que os pecados mortais são: 1º soberba, 2º avareza, 3º luxúria, 4º ira, 5º gula, 6º inveja e 7º preguiça, etc. Pois bem, qual foi a criança que, diante de um prato de bolos, hesitou jamais em lhe deitar a mão, por se lembrar que a gula é um pecado mortal? Qual foi a que deixou de adormecer sobre os seus livros, por temor de cometer o pecado da preguiça? Qual foi a que se coibiu de gritar para não cair em ira?
— E será porque contra a nossa natureza, fatalmente impregnada do mal, sejam impotentes, e se quebrem como bolas de sabão contra um muro as prescrições da religião? Não. É que para obedecer a um preceito é necessário compreende-lo — como é necessário que, para nos fazermos obedecer de um criado minhoto, não lhe falemos ale-mão.
Ora a criança, que recita maquinalmente, à flor dos lábios, o catecismo — não o percebeu. Declamava-se-lhe a vontade de Deus, sem lha explicar; de modo que às palavras que papagueia, ela não liga ideia que a prenda.
Desde que a criança sabe de cor o catecismo, supõe-se que ela tem religião. Mas se, chegando aos quinze anos, lhe perguntarem — «qual é o teu dever como esposa cristã? qual o teu dever de cristã como mãe? » ela ficará tão embaraçada, como se a interrogassem sobre cálculo diferencial. Da religião sabe a «reza», não sabe o dever: ou pelo menos o que ela supõe o dever é ouvir missa aos domingos, e não comer carne à sexta-feira. Princípios que lhe sirvam para se dirigir na vida, como filha, como esposa, como mãe, como mulher sociável — não sabe um. Sabe rezar o padre-nosso. Diante pois de qualquer circunstância da vida ela, religiosa, cristã e devota — como não se pode guiar pela religião que desconhece — guia-se pelo instinto ou pelo capricho. A religião de que tanto fala, e que tanto usa, aos domingos na Igreja, e à sexta-feira na cozinha, não lhe serve muito mais do que a um canário ou a uma rola. Porque no fim, o que a governa — é o instinto.
Contra as tentações da vida ela não terá no seu espírito conselho, força, resistência ou interesse superior. Uma ilusão, um momento de abandono podem-na perder: e toda a copiosa, aparatosa doutrina que lhe ensinaram e que não percebeu — não a pode salvar.
A pequerrucha Bebé, aos cinco anos, quando dispõe inteiramente da palavra e da frase — começa a mentir. Bebé mente. Uma senhora inglesa ou francesa ou alemã, se vê sua filha mentir, sente-se verdadeiramente ofendida. Uma só mentira contém duas culpas; deixamos de nos respeitar porque afirmamos o que é falso, e deixamos de respeitar os outros porque os induzimos voluntariamente em erro. Em Portugal a mentira da criança faz rir, é uma graça: prova o engenho, a faísca, a agudeza do pequenino cérebro. Bebé começa a mentir para ter triunfozinhos à mesa. No princípio nega o que faz — o que é o germe da covardia: depois conta o que os outros não fizeram
— o que é a semente da calúnia. De resto, entre nós, a mentira é um hábito público.
Mente o homem, a política, a ciência, o orçamento, a imprensa, os versos, os sermões, a arte, e o País é todo ele uma grande consciência falsa. Vem tudo da educação.
A criança cresce na mentira. — «E um cesto roto esta criança» — diz a família rindo. E não sabem que o «cesto roto» fará depois um intrigante, um falso, um caluniador, um intrujão. Às meninas sobretudo (como se supõe que elas não terão relações oficiais ou publicidade de vida em que a mentira possa prejudicar) consente-se a mentira, como uma vivacidade inofensiva! Inofensiva! como se não importasse menos que o homem minta na publicidade da rua — do que a mulher no recato da família. O caso é que Bebé, o loiro, o engraçado anjo — mente!
Além disso é curiosa. Não o diremos inteiramente como um defeito. A curiosidade tem sido muito caluniada: e este nobre impulso humano é quase sempre considerado como um simples vício de criado. No entanto da curiosidade proveio toda a civilização, a Ciência, a Filosofia, as invenções, as descobertas de continentes: toda a
História, toda a Crítica, é obra da curiosidade. Ela é a viagem perpétua que o homem faz através dos factos e das ideias. Grande instrumento de acção, decerto! Mas é necessário saber como a educação o dirige. Descobrir a América e escutar a uma porta — são dois factos de curiosidade. Toda a criança é curiosa; resta saber se os que a educam, pelos factos e pelas ideias que oferecem ao exercício da sua curiosidade, farão dela — uma descobridora ou uma mexeriqueira.
Em Portugal, as mulheres, excluídas da vida pública, da indústria, do comércio, da literatura, de quase tudo, pelos hábitos ou pelas leis, ficam apenas de posse de um pequeno mundo, seu elemento natural — a família e a toilette. Daqui provém que senhoras reunidas, conversando, giram — como borboletas em torno de um globo de candeeiro — em volta destes dois supremos assuntos: vestidos, e namoros. A criança — grande ouvido e grande curiosidade — absorve, como uma esponja chupa a água, tudo o que ouve dizer em redor, no conchego das saias juntas. Espírito nascente, ávido, trabalha principalmente sobre a ideia que contém mistério. Ver o que está dentro — e o ardor da criança, ou se trate de uma palavra que escutou, ou de um boneco que lhe deram. Ora quais são aqui os factos que oferecem à sua curiosidade as conversas da família, mãe, tias, amigas ou visitas? Que fulana casou, que aquela se separou do marido, que é inexplicável a riqueza de toilette de outra, que sicrano lhe faz a corte, mas que sicrano tem uma actriz. E sempre os namoros, os vestidos, os escândalos, os mexe-ricos, as histórias de paixões... O espírito da criança fita grandes olhos nestes mistérios pitorescos! E toda esta vida do mundo, de que lhe chega já nas conversas um sopro e uma vaga sensação, dá à sua pequenina alma uma palpitação ansiosa — alguma coisa do que produz o primeiro cheiro das madressilvas nas borboletas ainda afogadas na vida inerte do casulo.
Qual é depois o resultado? Que vemos aqui meninas, aos quinze anos, falando com grande autoridade sobre casamentos, dotes, adultérios, raptos, e afirmando que tal comédia é fresca ou que tal romance é imoral.
Uma das causas desta precocidade é a casa. Um grande agente na educação da criança é a casa. Em Lisboa as casas não têm quintais — e isto só explica muitos destinos. Num andar, com janela para a rua ou para o saguão, sem horizonte, sem
árvores, sem ar — a criança estiola. Estiolação lenta, que vai produzindo a sobreexcitação dos nervos, a propensão melancólica, a variabilidade de humor, a debilidade do carácter, etc.
Veja-se a criança educada numa quinta. Pela manhã já ela está solta, com um bibe, uns largos sapatos, um velho chapéu. Corre, visita os bois, luta com o carneiro, abraça o pacífico e grave jumento, preside à reunião das galinhas, conhece os ninhos, sabe de cor as árvores; cai, enlameia-se, arranha os joelhos, cura-se pulando, recebe os largos abraços do sol, penetra-se de ar, de vida, de viço; e inocente como um bicho, fresca como uma madressilva, com o bibe sujo, as mãos cheias de terra, o rosto vermelho como uma amora, as narinas palpitando de vida, sem sensibilidade e sem tristezas, com um cheiro de fenos e prados atravessados, espírito vivo da verde natureza, entra em casa aos pulos, berrando pela sua sopa. À noite, cheia de fadiga, dorme como um canário. —
E que educação superior, em verdade, não sai das árvores, das relvas, do pacífico mar-char dos regatos, das recolhidas sombras, das searas, dos milhos, de todos os tranquilos seres que cumprem nobremente, e sossegadamente, o seu dever de crescer!
Mas o melhor é o resultado físico: bom sangue vermelho, forte musculatura, ampla respiração, cabeça fresca, digestão de aço.
Em contraste veja-se uma menina de dez anos, aqui em Lisboa, nestas altas casas encarceradas: pálida, curvada, acanhada, com olheiras, lendo já o jornal, cheia de si, caprichosa, ardendo em vontades, em curiosidades — uma boneca de cera habitada por um bico de gás.
A pequerrucha na quinta habitua-se a estar sobre si, perde o medo, sabe defender-se, tem acção, decide-se. Na cidade são tímidas, gritam, encolhem-se, tremem, empalidecem, hesitam, rezam aos santos, e estão sempre prontas a refugiar-se nos primeiros braços que as acolhem. Mau hábito — dizia a ama de Julieta.
Além disso (grave consideração), no campo a criança está longe da sala, das suas conversações, e da sua malícia: — aqui, aconchegada nos mesmos quartos, penetra-se, aos oito anos, do espírito crescido, o que é deplorável. E por isso que elas aos quinze anos dizem, com um desdém que espanta e faz recuar — — que estão cheias de experiência!
Será necessário que penetremos nos colégios? — Espreitemos só pela porta. — Um dos grandes males do colégio é o tédio. O tédio enfraquece, anula o espírito, a vontade, e só deixa viva e exigente — a curiosidade. De quê? de tudo, do imprevisto, do que se não tem, do que está na rua quando nós estamos em casa, do que está no vício quando nós estamos no dever. Ora se alguém se aborrece é uma colegial. Presa, abafada, arregi-mentada, parece unia flor apertada entre as duas folhas de um livro. Nada a pode prender ao colégio: nem a serenidade de vida — porque não é o sangue buliçoso e sacudido dos catorze anos que aspira a repousar: nem o estudo — porque a mulher, pela simples constituição do seu cérebro, é adversa ao estudo e à ciência: nem a satisfação de cumprir o dever — porque a compreensão abstracta do dever não tem presa sobre o espírito feminino. A mulher, do dever, só compreende um lado, e esse admiravelmente
— o pudor. De sorte que, não a retendo a paz do colégio, nem o interesse da ciência, nem a influência do dever — tudo na sua natureza impaciente e curiosa a leva a desejar o mundo, o ruído, a vida exterior. E nesse estado de espírito que se encontra diante de horas regulamentadas, de lições, de costuras, o refeitório insípido, a uniformidade claustral. O refúgio são as conversas, as camaradagens, as grandes amizades, os segredos... Mas este mesmo regime mantém a imaginação perpetuamente excitada. O mundo aparece-lhes como alguma coisa de maravilhoso, de confuso e resplandecente que se balança indefinidamente, ao rumor das orquestras, e sob o esplendor dos lustres: concebem-se, com desproporções absurdas, os teatros, as salas, os bailes: mesmo as que são pobres, e sabem que na família estarão tão confinadas como no colégio, têm esperanças sobressaltadas, podem casar, ser ricas... E os grandes ímpetos dos sonhos partem em largos voos.
Tomam em desdém os livros e o estudo. Não há educação literária mais falsa, mais esterilizadora do que a dos colégios. Ensina-se à rapariga de oito a dez anos (além das línguas, francês e inglês, que só aprendem bem, depois nas famílias, pelo uso) — dois monótonos martírios de memória — a geografia e a história: a geografia com as suas listas de rios e montes, a história com a sua lista de batalhas e reis. Uma criança gasta meses numa luta áspera, a aprender de cor nomes geográficos e anedotas históricas — que dois dias depois de sair do colégio esquece voluntariamente, com gosto, como põe de parte o escuro vestido de merino do regime escolar. A geografia e a história ficam-lhe sendo assim duas recordações odiosamente colegiais, duas ciências caturras que lhe lembram os óculos da mestra e o seu dedo repreensivo e áspero.
Os colégios, pelos seus métodos fatigantes, repelem o espírito das mulheres dos livros e das coisas da ciência. E o que nos acontece a nós os homens, também, com o
Telémaco e com o Virgílio. Passamos sobre eles as compridas e sonolentas noites do estudo, tiramos-lhes, palavra a palavra, o significado duro, choramos sobre as suas páginas a dor das palmatoadas, de tal sorte que não voltamos mais nem às piedosas e moralistas ideias do puro Fénelon, nem ao grande Virgílio, à sua Geórgica, de profunda educação naturalista, nem à Eneida, primeira aurora do mundo moderno, poema genésico de uma transformação social.
Entre nós nenhuma senhora se dá às sérias leituras de ciência. Não da profunda ciência (o seu cérebro não a suportaria), mas mesmo dos lados pitorescos da ciência, curiosidades da botânica, história natural dos animais, maravilhas dos mares e dos céus.
Isso lembra-lhes a mestra, o dever, a monotonia do colégio. Depois acham vulgar, insípido. Querem ser impressionadas, abaladas — preferem o drama e o romance. As senhoras inglesas e francesas aos serões de família, lêem, ou para si, ou em voz alta aos irmãos mais pequenos ou aos filhos, livros de história natural, curiosas vidas de animais, viagens. Os livros de Michelet, tão profundamente sentidos, de uma tão grande harmonia moral, o Pássaro, o Insecto, o Mar, a Montanha, têm sido adoptados como livros de família, leituras de serão, doce ciência para espíritos delicados que amam a vida e os seres. Entre nós lêem Ponson du Terrail ou Dumas Filho e o seu bando de analistas lascivos. E, todavia, quanto a história e a vida das flores, a maravilhosa existência dos insectos, a narração de longas viagens, as regiões pitorescas da China, de
Sião, das Antilhas, dos povos bárbaros, contém mais drama e mais maravilhoso do que a descrição dos amores de Pedro e de Francisca, e como ele fitava uma estrela, e como ela arfava de voluptuosidade, e como ambos se perderam num caramanchão.
A imaginação que se desenvolve nos colégios tem outro mal — produz, entre as colegiais, uma vida sentimental precoce e falsa. Daí as mil pequeninas coisas que todos sabem, inocentes no momento, mas que influem mais tarde. As senhoras, mesmo depois de casadas, as contam rindo: são grandes paixões que têm umas pelas outras, com ciúmes, intrigas, vinganças, duelos: cartas que se escrevem em que uma assina João,
Pedro, ou conde de tal: o retrato de um primo que se obtém: o chapéu do mestre de música que se abraça às escondidas, etc., etc.
Depois, diante das mestras, é necessário que a rapariga esteja séria, correcta, fria — quando a imaginação palpita, arfa por voar e vencer. Para isto é necessário disfarçar. E nos colégios que se aprende a astúcia. As mulheres tornam-se aí hábeis em contradizer com o rosto a alma.
Tem dezasseis ou dezassete anos: ei-la entrando na vida. A educação vai-se completar agora por duas influências — uma interior, a família; outra exterior, a sociedade.
A impressão que nesta idade mais directamente lhe dá a família — é toda positiva: a necessidade de ter dinheiro para viver. A organização material da vida e o seu custo, dão-lhe logo a certeza de que sem dinheiro, sem um casamento rico, a vida moderna não
é mais que uma perpetua decadência e uma humilhação. Não falamos aqui nem das ricas, nem das santas — duas raras espécies. Na família a rapariga vê a constante influên-cia do dinheiro; começa a misturar-se no governo da casa, a entrar nas conversas económicas dos pais, a examinar contas, a comprar; — hoje o rol dos fornecedores, amanhã o da modista, depois o do estofador, e um chapéu, e um camarote de teatro, e as luvas. Tudo lhe mostra a vida aplicada, como uma bomba aspirante, à bolsa da casa. A ideia do dinheiro torna-se nela fixa. Além disso, embebe-se dela, nas conversas, nos jornais. Hoje, no fundo do pensamento ou do sonho, há sempre o dinheiro. A preocupação não é a religião, nem a Pátria, nem a Arte — é o dinheiro. O desinteresse é desprezado com uma ingenuidade bacoca. O mundo estende sofregamente a mão.
Primeira, profunda influência no espírito da mulher. — Daí o desejo de casar com dinheiro, casar rica; seja o marido velho, imbecil, rude ou trivial, contanto que traga o dinheiro, e o poder que ele dá.
Por outro lado a sociedade diz-lhe: goza! Ora na vida da mulher o que se entende por gozar? Ter um marido rico, grande luxo de casa, carruagem, camarote de ópera, toilettes magníficas. — É o que todo o pai em Portugal deseja para sua filha.
Casar rica para gozar: é em que se resolve a ambição de todo o destino feminino.
Dinheiro — e sensibilidade.
Courbet, o mais poderoso pintor crítico dos tempos modernos, fez um quadro: As duas meninas do segundo império. E uma paisagem magnífica: duas mulheres solteiras descansam ali, na frescura tépida das sombras. Uma, alta, loira, branca, está sentada; tem o perfil frio, seco, o olhar direito, e, com um dedo apoiado à face, calcula: — sente-se que pensa em dinheiro, juros, acções de companhia e jogo de fundos. A outra, deitada na relva, com os braços estendidos, como abraçando a terra, trigueira, de fisionomia nervosa e imaginativa, a testa curta, os lábios secos, cisma: sente-se que sonha festas, bailes, as grandes voluptuosidades, os encontros rápidos e perigosos no fundo de um parque, e todas as exaltações da sensibilidade. Hoje, pela educação moderna dos colégios, cidades, romances, teatros, música, moral contemporânea — as duas meninas do segundo império, estão em cada mulher: fria ambição de dinheiro, exaltado ardor de sentimentalismo.
Felizmente muitas há que — pela educação severa, ou pela simplicidade de espírito, ou pelo sentimento inteligente da religião, ou pela influência da existência recatada ao modo inglês — estão como numa redoma, não recebem o contágio do mundanismo, e perpetuam o tipo da mulher perfeita.
Julgamos inútil insistir nestes estudos de moral contemporânea.
Uma só consideração resumirá estas notas: a mulher na presença do mundo tentador — está hoje desarmada. Desarmada, inteiramente. A família, com a sua dignidade, enfraqueceu; a religião tornou-se um hábito incompreendido; a moral está-se transformando, e enquanto se transforma, não influencia nem dirige; a fé já não existe; a prática da justiça ainda não chegou: em que se apoiará a mulher? Isto poderá parecer vago. Um exemplo, pois, nítido e prático. Suponhamos uma mulher nova, educada em
Lisboa, com a educação contemporânea. Suponhamos que se lhe diz: «tu terás todas as elegâncias e triunfos da toilette; as tuas carruagens maravilharão a cidade; ninguém possuirá uma casa ornada com mais gosto e requinte; terás bailes, festas ruidosas e magníficas; amarás loucamente; serás doidamente amada por um homem, novo e belo; os vossos amores serão interessantes como uru drama; mas para isto serás forçada a enganar teu marido e descuidar teus filhos, e a tua existência será pecadora perante a religião, injusta perante a moral, indigna perante a família. — Aceitas? » Trata-se de saber se a moral contemporânea dá bastante força a uma alma, para que ela repila, sem mágoa, sem hesitação, com tédio — esta tentação cintilante.
Há muita gente ingénua que supõe que uma grande consideração para a mulher —
é o terror da catástrofe. Pueril ingenuidade. Nada tem um encanto tão profundamente atraente como a catástrofe. Ela satisfaz o desejo mais violento da alma — palpitar fortemente. O que se evita hoje, nesta excitação do mundo, é o terra a terra, o trivial, a chinela, a tranquilidade, o palito nos dentes, e a virtude plebeia. O que se pede é a comoção, a sensação, o sobressalto. Uns procuram-na na política, outros no deboche, outros nas conspirações, outros no amor, outros no dinheiro. Um negociante dizia um dia a Proudhon: Há um prazer horrível em um homem se sentir falir! Esta palavra monstruosa contém a explicação de um mundo. Toda a literatura, teatro, romance e ver-sos educam neste sentido: vibrar, sentir fortemente. Nós mesmos, que estamos aqui moralizando, escrevemos ambos um livro deplorável, que juntava à insignificância literária, a esterilidade moral — O Mistério da Estrada de Sintra. O que é esse livro? A idealização da catástrofe, o encanto terrível das desgraças de amor. Sobretudo do amor ilegítimo e culpado. Aí o perigo, o final trágico, atraem como um abismo delicioso. O marido que mata a mulher, pensando dar um castigo justo ao pecado, dá um relevo poético à paixão. O conde du Bourg, ultimamente, em Paris, mata sua mulher: ela não morre das feridas: e subitamente, torna-se uma espécie de anjo veemente dos amores ilegítimos, e a porta do hospital onde a recolheram à pressa para os primeiros socorros
(fora ferida em casa do amante) está apinhada de senhoras, de elegantes, de mundanos, que pedem notícias dela, deixam-lhe os seus bilhetes, e vão às igrejas pedir a Deus que a salve da morte.
Quem irá nunca orar às igrejas ou deixar o seu bilhete à mulher obscura e pacata, que no silêncio da sua casa cumpre prosaicamente, sublimemente o seu dever? E que a nós só nos excita, nos exalta, o drama! O drama, eis o nosso ideal. Fazer drama, eis a nossa perdição. Pelo drama desejamos a morte e cometemos o mal. Por ele nos lançamos nos destinos violentos. Ora o homem tem para fazer drama — a guerra, as revoluções, os duelos, os livros, e mesmo (infelizmente para muitos empresários) o próprio teatro. As mulheres, confinadas no mundo do sentimento — têm apenas o amor!