XXV
Abril 1872.
O dispensar o templo e o altar na prática dos sacramentos — eis uma nova doutrina teológica e católica, infinitamente original. É a radical inutilização do culto. Se um senhor missionário determina confessar na sua alcova — porque não há-de o senhor pároco dizer missa, na sua sala de jantar?
A Igreja e a sua santa decoração, as imagens consagradas e os vasos, as aras e os sacrários, tornam-se inúteis, e começam a ser como as árvores ou como os teat ros, um regalo da cidade, e um ornato do município. A religião abandona os templos — e hospeda-se na casa particular dos senhores padres. Suas senhorias tomam o culto uma ocupação doméstica. Pela manhã armam a mesa em altar para a missa, e à noite põem-lhe em cima, para a ceia, a caneca vidrada, com vinho. Penduram a toalha ao pescoço do devoto que vai comungar, e enrolam-na depois ao seu próprio cachaço para fazer a barba. Os utensílios da casa servem de alfaias do culto. Como a alcova é confessionário, o púcaro da água é cálice. Para os santos óleos emprega-se o azeite que se emprega para a pescada. Os cadáveres serão levados a casa de suas senhorias e responsados na capoeira ou na sentina. E a criança ao entrar na vida e no cristianismo, será baptizada na pia da cozinha do senhor abade!
Tal é a inovação dos senhores missionários. No Porto a opinião irritou-se porque viu, nesta ordem dos excelentes padres, um plano canónico para organizarem comodamente os seus prazeres.
O Porto equivocou-se. A recomendação inesperada, dos senhores missionários, é simplesmente a aplicação de um princípio que é hoje dominante no espírito do beatério.
O beato, a beata, na religião, não respeitam a divindade, respeitam o sacerdote.
Não prestam culto ao Deus, prestam culto ao padre. Para espíritos embrutecidos, tais como os forma a devoção fanática, Deus é alguma coisa de incompreensível, de vago, de perdido no fundo dos Céus: pelo contrário o padre é o sempre presente e o sempre visível. E o padre que os confessa, os comunga, os penitencia, os doutrina, os guia. De sorte que, lentamente, todo o poder, toda a sabedoria, toda a santidade a atribuem ao padre. Deus está num indefinido misterioso, na profundidade dos firmamentos: o padre está ali, na sua rua, ao pé da sua casa, sempre pronto, e torna-se assim um Deus ao alcance dos sentidos e ao contacto da mão. Veja-se uma beata ou um beato diante de um padre: beija-lhe a mão com temor, conserva os olhos baixos e aterrados, respeita-lhe a casa como um templo; se entra a porta faz mesura como diante do sacrário, não se atreve a contradizê-lo — como à mesma sabedoria; julga-o impecável, cândido e perfeito; e toda a filosofia, desta adoração profana, está no grito pavoroso daquela beata:
«ai! maldita seja eu, que sem saber, enxotei o gato do senhor abade!
Portanto os senhores missionários, costumados a serem tratados como Deus, fazem naturalmente das suas casas igrejas. Continuam logicamente a santidade que o beatério lhes atribuiu. O lugar que habitam julgam-no consagrado. E é com uma
No Porto os missionários têm ultimamente recomendado, às pessoas devotas que se vão confessar — a casa deles missionários! Sendo as mulheres as que mais beatamente se acolhem à direcção espiritual de suas senhorias, esta recomendação toma desde logo uma significação singular e diabólica. sinceridade ingénua que eles confessam nas suas alcovas — e dirão talvez missa na sua cozinha.
Somente, com todo o respeito, perguntaremos aos senhores bispos, se não têm, entre os direitos da sua autoridade, a interdição — e aos senhores governadores civis se não têm, entre os edifícios do seu distrito, a cadeia. E ficaremostranquilos. 0